Merecer. Merecia.

"Seu imbecil! Filho duma puta!"

Acordei com o baque forte na porta. Entrou no meu quarto aquela que eu menos imaginava que iria aparecer. Como sempre, nervosinha. Parecia meio cansada, talvez por causa da viagem sem escalas direto - mais de dez horas de voo. Veio me agarrando pela camisa e me puxando forte. Definitivamente, em seus olhos mostravam uma grande raiva.

"Tentou se matar de novo, idiota? Qual foi agora? Adora fazer draminha heim?", ela olhou meu braço enfaixado. "Quero ver o que você vai dizer quando alguém ver essas cicatrizes. Você tem por acaso alguma noção? Fica aí se lamentando na vida, vou lhe dar na cara igual quando eu fazia quando éramos moleques!". Por um momento realmente pensei. Lembrei daquela menina chata que cresceu comigo e era valentona. Levantou o braço e veio pra cima de mim e de fato me deu um soco bem forte, mas manteve agarrada na minha camisa, me erguendo da cama.

"Já te falei, sua vida não é mais apenas sua. Como sempre é muito egoísta, certo? Nem pensou como ficariam as pessoas aqui sem você, acertei? Iria deixar os amigos, a família e eu ficaria sem alguém pra descontar minha raiva. Somente pensaria em ficar numa boa mortinho, um defunto, certo?" Ela deu um berro estridente e me puxou ainda mais. Cerrou o punho e veio pra cima. Só que dessa vez eu a segurei.

"Filha da puta é você, sua desgraçada! Me solta agora!", gritei.

Ela deu um risinho cínico. Coisa dela mesmo, e me soltou. Caí na cama e soltei o braço dela. Olhando ainda pra mim, continuou nas patadas verbais: "A velha quer falar com você. Só eu tenho que ficar lá aguentando aquele blábláblá dela, e isso sem contar que o Charlie anda muito filho da égua também... Mas gostei de ver que continua ágil, defendeu fácil fácil de mim, heim? Tá vendo muito essas merdas asiáticas, daqui a pouco vai virar mestre desse kung fu de cartilha."

"Não enche", respondi. "Já disse que estou bem, não foi dessa vez. De novo. Fica calma, eu não sou fácil de cair".

Na hora a fitei sem querer.Vou admitir que eu estava com raiva, mas quando olhei seus olhos, estavam lacrimejando. Naquela hora aquele pequeno estado de raiva sumiu e meus olhos começaram também a marejar. Ficaram pesados, mas quando a primeira lágrima ia cair ela virou e me segurou pelos ombros com firmeza.

"Não chora! Eu disse pra não chorar!", ela disse, já chorando. "Lágrimas é coisa pra nós mulheres que somos sentimentalistas e burras mesmo. Você me prometeu que nunca mais iria derramar uma lágrima, lembra? E que mesmo que derrubasse, só iria derrubar por alguém que merecesse muito, mas realmente muito mesmo, não por qualquer pessoa. Agora vai, limpa isso.", mas eu de teimoso não limpei e deixei algumas lágrimas caírem.

"Mas ela... Ela merecia...", respondi já chorando.

"Idiota. Quando penso que cresceu um pouco, ainda continua aquele moleque... Passa o fim de ano lá pelo menos. Tenho certeza que o povo lá vai te receber bem ainda, mesmo depois de tanto tempo e do rolo do seu irmão. A velha também diz que quer falar com você, e que você prometeu que ia ligar, mas só ficou na promessa, seu desnaturado. Ainda mais depois de tudo o que ela te fez de bom".

Quando estava saindo eu a chamei num último momento. "Fique em paz, sou forte como o Rambo! Fico todo machucado, intoxicado, mas sou duro na queda. E o seu noivo? Tá te enrolando ainda pra casar?"

"Óbvio né? Mas queremos nos mudar de lá. Provável que eu venha morar por aqui também. Estamos estudando as possibilidades. Aliás, mandaram cremar o corpo do seu irmão mais velho. Mas a velha pegou as cinzas, e quer usar de chantagem pra você ir lá pegá-las, hehe..."

Coloquei a mão na cabeça, em sinal de descontentação. Foi aí que ela veio voando em cima de mim me abraçando. "Você é muito bonzinho! Não devia ser assim. Tá certo que quando você é mal você não tem limites nem escrúpulos, mas você nunca é malvado, poxa. Só aquela vez né? Assim qualquer vaquinha vai pular em cima de você e vão abusar, exatamente como todas fizeram! Ânimo, garoto! Você tem que achar uma mulher como eu, hahaha... Simplesmente perfeita!"

Dei uma grande gargalhada. Já estava me sentindo até melhor. "Puxa vida, só você mesmo. Se eu achar uma mulher como você aí que eu estarei em apuros! Você é violenta, autoritária, dengosa, maquiavélica, quase do meu tamanho e ainda usa saltos pra ficar maior que eu! E continua com um excelente gancho de direita, hehe..."

Ela fez aquela cara de raiva. Mas é aquela cara de raiva com um misto de alegria em me ver melhor, sabe? Parecia que no fundo estava segurando um riso. Até a minha tristeza já havia passado.

"Mas... Se mesmo assim eu achar uma mulher que seja um terço do que você é, estarei feito na vida, isso pode ter certeza!". Ela parou e olhou firme pra mim com cara de dúvida. Mas no fim, deu uma boa risada.

"Poxa, um terço de mim? Então ela terá uns sessenta centímetros, e olhe lá!"

Maldito humor inglês... Mas também não consigo viver sem!

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