Doppelgänger - #20 - Mestre.

23 de novembro de 2012

Uma pequena barraca no meio da estrada. Al estava no interior da Colômbia, na América Latina. A viagem tinha sido cansativa, mas não havia tempo para perder. A barraca vendia vasos de cerâmica, e tinha um jovem lá terminando de fechar o caixa. O sol estava se pondo. Não havia mais tempo a perder.

"Estou procurando o senhor Alejandro Gutierrez. Ele se encontra?", disse Al, arranhando no seu espanhol com pouca prática.

O rapaz apontou a cabeça pros fundos da barraca, onde havia uma estradinha de terra, muito mal iluminada que dava numa casa simples, com aparência antiga e de interior, no fundo dessa estrada, escondida no mato. Lá tinha uma fogueira, e um homem, sentado, tomando uma xícara de café, e olhando para o fogo.

"O meu mestre dificilmente seria um mero oleiro no interior da Colômbia", disse Al, enquanto o homem apenas virava levemente o semblante em direção de Al, olhando-o com o canto dos olhos, "Mestre Vincent".

"Não sei de quem está falando. Mas se chegou até aqui, poderia ao menos se apresentar, forasteiro".

"Mestre, sou eu, Al. Sei que passaram quase vinte anos desde que saí da sua tutela, mas vim aqui implorar para que o senhor conclua o treinamento comigo", disse Al, se ajoelhando no chão, fitando Vincent.

O oleiro se ergueu com seu cobertor todo cheio de pó e se aproximou de Al. Ele realmente não tinha nada daqueles tempos de glória na inteligência: vestia singelas roupas velhas e cheias de mancha de barro, mãos ressecadas, barba por fazer e cabelo desgrenhado. Se fedesse mais um pouco, seria confundido com um mendigo, certamente. Ele se aproximou de Al e ficou olhando-o, dando voltas e mais voltas ao redor dele.

"Depois de anos você volta atrás de mim. Depois de anos que você simplesmente virou as costas para mim e deu no pé. Você deveria estar agradecendo que eu estou ao menos dirigindo a palavra a você, porque pra alguém que abandonou seu treinamento como você, eu não faria questão nem mesmo de olhar o rosto!".

"Mestre!", disse Al, agarrando na manta, "É algo urgente. Infelizmente criei um grande problema, e sei que só existe um jeito de enfrentá-lo, que é se o senhor me permitir terminar meu treinamento aqui. Infelizmente, eu não conseguirei no meu atual estado!".

O mestre olhava atentamente para Al. E ele se foi pra dentro da casa, virando de costas friamente para Al. Nem mesmo olhou pra trás. Aquilo parecia mesmo o final de tudo, Al não teria outro jeito a não ser enfrentar Ar com o que ele tinha naquele momento. Aquilo era impossível. Viajar quilômetros e depois dar de cara com isso? Um não que não poderia ser negociável? Foi aí que parado na porta o mestre olhou pra trás:

"Entre e venha tomar um café. Me conte o que aconteceu que pode ser que mude minha ideia... Discípulo tolo".

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"Depois que eu abandonei sua tutela na adolescência, fiquei vagando por aí tentando descobrir quem tinha feito aquilo com o meu irmão", disse Al.

"Imagino que tenha descoberto, não?", disse o mestre.

"Sim. Mas foi um tempo depois. Por volta do ano 2000. Entrei na Inteligência, desobedecendo a ordem do meu falecido irmão de nunca entrar pra esse ramo. Comecei a caçar as pessoas que trabalharam no Sector 9 com o meu irmão, mas alguns que conheci não eram tão maus como pensava. O antigo mestre dele, o senhor Schultz me ajudou muito, e em 1995 encontrei-me com Lucca, o braço direito do meu falecido irmão".

"Lembro dele", disse o mestre.

"Ele foi internado em 1995 com uma pneumonia grave, mas o deixamos sob custódia da equipe médica nossa, porém essa equipe era militar. E como você sabe, mestre, a equipe médica militar não tem nada a perder com os avanços no campo bélico: também recebe muitos recursos dos governos mundiais, porém muitos dos tratamentos são mantidos em segredo, e tentaram um procedimento médico audacioso na época com nano-máquinas para manter Lucca vivo. Porém isso teve um custo".

"Então ele sobreviveu?"

"Sim. Ele no processo perdeu muitas das suas memórias, logo o maior objetivo que era manter o gênio investigativo dele perdemos, mesmo que ele tenha depois recuperado toda sua capacidade física. Lucca não era o mesmo, e o batizamos de Nataku, o deus mitológico chinês Nezha, que não possuía alma. Ele ficou encubado durante anos, e foi liberado apenas agora. Porém ele não se lembra de nada".

"Incrível mesmo", disse o mestre, enchendo a caneca de café.

"Quando entrei oficialmente na inteligência conheci 'ela'. Uma outra agente com que fui obrigado a conviver e trabalhar junto, mesmo que fôssemos muito diferentes. Ela era fria e calculista, cabelos cor de beringela, aquariana. E eu, emotivo, como o senhor sabe. Juntos, nós dois começamos uma odisséia atrás de todas as pessoas que haviam trabalhado com meu irmão. Alguns tinham se envolvido com o tráfico de armas (Agatha), outros ainda estavam firmes no serviço (Rockefeller) e uma outra fez uma vingança sem sentido contra mim, pensando que havia matado Émilie, que era sua irmã mais velha (Victoire)".

"Qual o nome dessa mulher que você chamou de 'ela'?"

Al relutou por um momento. Falar o nome dela depois de tanto tempo lhe trazia na memória todas as coisas boas que viveram juntos. Aquilo doía forte no peito, pois era a coisa que nunca havia superado. Tinha sido a única mulher que havia amado, a mulher que ele sonhou durante anos a fio, a mulher que lhe tornou um homem.

Depois de anos se referindo a ela apenas como "ela", ou "garota do cabelo cor de beringela", era hora de quebrar o tabu. E por se submeter ao treinamento, deveria expor todas as suas dificuldades e anseios pro seu mestre.

"Val... Pode chamá-la de Val", disse Al, com os olhos cheios de lágrimas e saudades do seu grande amor, "Depois dessa caça às pessoas que trabalhavam com o meu irmão recebemos uma ordem da Velha. Ela disse que deveríamos viver uma vida comum e acabamos nos apaixonando, afinal éramos homem e mulher, e havíamos convivido durante um longo tempo juntos. Nos casamos, e em 25 de maio de 2006 ela morreu... Por minha culpa".

"Você a matou?"

"Não. Eu a enganei. Eu a decepcionei profundamente, e justo eu que era tudo o que ela tinha. Joguei os argumentos dela contra a parede e a interroguei sobre uma besteira, mas que abalou completamente nossa confiança. Ela tinha sérios problemas depressivos, e foi na nossa relação que ela voltou a sorrir, a se amar, e a se olhar no espelho. Foi no dia 25 de maio. Desde então todos esses dias são difíceis pra mim, pois tenho muitas saudades dela, e me arrependo profundamente de ter feito isso".

"Entendo. Mas você está muito acabado fisicamente. Estresse?"

"Não. A chefe da equipe médica, Victoire Blain, me acusou de ter assassinado Émilie. Ela é a irmã caçula dela, porém, isso tudo era mentira. Émilie se suicidou em 2012 com seu marido, um milionário que entrou em falência depois da queda do Lehman Brothers. Como chefe da equipe médica, ela tinha diversos meios de me matar sem produzir nenhuma prova contra ela, e por isso que há mais de dez anos atrás ela injetou em mim um vírus, produzido e pesquisado por ela mesma, que me fez contrair a Síndrome de Werner. Envelhecimento precoce, por isso estou cheio de cabelos brancos e dificuldades no corpo, estou envelhecendo de maneira muito mais acelerada".

"Estranho, mais de dez anos? Não era pra você já estar morto?".

"Pois é. Pior que não. Quando Victoire descobriu que eu não havia matado sua irmã ela desenvolveu um estranho afeto por mim. Temos um affair desde então, mas jamais conseguirei amá-la. Meu coração é da Val, mas ela está morta. Victoire deu a minha sentença de morte apenas. Ela está estudando um jeito de retardar o envelhecimento, mas a única coisa que ela fez de fato foi me fazer passar protetor solar pra evitar rugas".

"É... Pelo visto sua vida foi um bocado ativa depois que você abandonou o meu treinamento. Mas porque está aqui?"

"Ar, meu sobrinho, e o único filho de Émilie e Arch está solto por aí. É o meu Doppelgänger. E ele busca vingança, e quer me matar. Porém o moleque me conhece como ninguém, e uma luta contra ele é uma luta contra o meu passado. Eu sei que não completei o treinamento, e sei que a única pessoa no momento que pode me fazer pensar na frente de Ar é apenas o senhor, mestre. Por isso, vim aqui implorar para que conclua o treinamento comigo!".

O mestre olhou atentamente para Al. Era agora ou nunca.

"Muito bem então!", disse o mestre, "Vou concluir o treinamento com você, como a última coisa que farei pra esses calhordas da Inteligência. Seu coração é puro e sua motivação nobre. Temos poucos dias, então se prepare, discípulo tolo", disse o mestre, nutrindo a determinação de Al como nunca.

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