Doppelgänger - Epílogo #2

Eliza Vogl havia perdido a avó. A pessoa que tinha sua guarda legal. Seu pai havia morrido, mas sua mãe ainda estava viva. Mas sua mãe era uma pessoa que havia abandonado a filha, e não a queria por perto sob hipótese nenhuma. E Eliza não queria voltar pra ela também. Havia descoberto o que era o amor de um seio familiar com Lucca. O homem sem passado, sem futuro, mas que havia criado um laço tão grande com a menina que queria mesmo cuidar dela, ser como o pai que ela nunca teve.

Lucca teve a ajuda de autoridades londrinas. Era o mínimo que poderiam fazer. Especialmente pois não havia mesmo interesse da mãe na filha, e Eliza não queria de maneira alguma ir para um orfanato. Com Lucca ela teria amor paternal e ele a criaria como sangue do seu sangue.

A mãe de Eliza Vogl não participou de nenhuma das audiências pessoalmente. Somente participou da última, e apenas pelo fato de que era estritamente necessário sua presença para assinar a transferência da tutela na frente do juiz.

Mieke Liebe tinha cara de poucos amigos. Era alemã, olhos azuis bem claros, e o cabelo castanho médio – mas não loiro. Já tinha muitas rugas no rosto, e andava como uma madame, acima de tudo. Não era jovem, mas também não era velha, devia ter por volta de quarenta anos de idade. Parecia ser alguém com dinheiro. Entrou calada na audiência, sentou-se na frente de Lucca e Eliza, ao lado do advogado.

“Onde eu tenho que assinar?”, ela disse, procurando o papel e caneta.

“Aqui, senhora”, apontou o advogado.

A senhora Liebe assinou e voltou a atenção pro juiz. Parecia que queria apressar aquilo. O juiz acelerou o processo, falou apenas por mais uns cinco minutos, formalizando e finalizando aquele processo de transferência da guarda para Lucca.

Lucca e Eliza não desgrudaram os olhos dela. Aquela era a primeira e última vez que eles a veriam. Mieke Liebe não olhou nenhuma vez pra Lucca. Mas depois que o juiz deu a palavra final e fechou a sessão, seu olhar se encontrou com o da sua filha. Foram apenas uns segundos, e a mãe estava séria como de costume. Foi o único contato que mãe e filha tiveram. Mieke não queria saber quem era Lucca, menos ainda se ele tinha condições de cuidar da filha, se ele tinha interesse, nada. Não que Lucca não tivesse, mas isso mostrava o quão pouco consideração a mãe de Eliza Vogl tinha pela sua filha.

Ao concluir, Mieke Liebe se levantou e saiu de lá, sem se despedir de ninguém. Até o juiz estranhou aquilo. Na saída da Corte do Conselho Tutelar Eliza estava dando pulos de alegria.

“Ufa! Que bom que acabou! Agora oficialmente eu posso te chamar de... Papai!”, dizia Eliza, super feliz.

Lucca estava distraído, lendo o documento. Seu olhar ficou fixo no nome da mãe da Eliza.

“Lucc... Quer dizer, papai? Aconteceu algo?”, disse Eliza, preocupada.

“Ah! Nada não. Apenas que eu reparei agora... O Vogl é por parte do seu pai?”, perguntou Lucca.

“Sim. Siegfried Vogl. Até hoje não sei direito o que aconteceu. Liebe é o sobrenome da família da minha mãe, mas como você vê, não combina em nada com ela...”, disse Vogl.

“Hã? Não entendi. Não combina?”, perguntou Lucca.

“Liebe significa ‘amor’ em alemão”, explicou Vogl.

Ouvir isso de uma menina tão jovem era de cortar o coração. E Lucca não negava que agora sua vida era em torno daquela menina, e ele moveria céus para dar tudo de melhor que essa menina nunca teve até aquele momento. Os olhos de Lucca se encheram de lágrimas e ele ajoelhou, colocando sua mão no rosto de Eliza, que ao ver seu mais novo pai chorando, não conseguiu conter as lágrimas.

“Olha, eu tô com muito medo, sabe? Acho que é normal a gente ter esse receio de não ser bom o suficiente pras pessoas que amamos. Mas eu juro pra você Eliza, que vou ser seu pai e sua mãe, seu amigo, seu professor e a pessoa que vai te contar estórias de contos de fadas pra você dormir. Eu tô morrendo de medo do que está por vir, e a coisa que mais me dá coragem de seguir em frente é saber que você vai estar lá, e vamos juntos crescer. Como pai, e como filha, tudo bem?”, disse Lucca, aos prantos.

Nessa hora Eliza pulou, abraçando Lucca com toda sua força. Ela também estava chorando.

“Papai... Ich liebe dich...”, disse Eliza, em alemão.

Lucca não entendeu direito, mas aquele gesto, aquela emoção, não era necessário nenhuma fluência em alguma língua em específica para entender. Aquilo era simplesmente amor.

- - - - -

Era final de dezembro. Lucca e Eliza foram viajar de férias, e o destino escolhido era o Canadá, na cidade de Vancouver.

Fazia muito frio nessa época, mesmo Vancouver sendo a cidade mais quente do Canadá, como o pessoal debochava. Eliza não sabia direito, mas o motivo de Lucca estar lá era bem óbvio. Usando o GPS do celular os dois foram atrás de um endereço em específico. Pagaram a carona e desceram do carro, decidiram completar o trajeto de poucos metros a pé.

“Não entendi direito ainda porque estamos aqui, papai”, disse Vogl.

“Haha! Nós vamos passear depois, eu prometo. Temos muitos dias de folga aqui ainda. Apenas eu queria vir aqui pra achar uma... Vamos dizer, peça do quebra-cabeça que eu preciso pra entender sobre o meu passado”, disse Lucca.

“Do seu passado? Do Lucca que você foi?”, perguntou Eliza.

“Sim. No fundo não conseguiram apagar todas as minhas memórias. Mas eu tenho muitas memórias estranhas que não se ligam a nada. E muitas vezes tenho sonhos que não fazem sentidos, com memórias estranhas, como se eu toda noite os revivesse de certa forma”, disse Lucca.

“Entendi. Por isso que estamos aqui? São parentes seus?”, perguntou Eliza.

“Melhor que isso”, disse Lucca, parando em frente de uma casa, na calçada, junto de Eliza.

Dava pra ver na grande janela do hall uma mulher, asiática, com roupas comuns e um cabelo negro bem longo. Tinha a pele branquinha como a neve, e olhos lindos, puxados. Ela estava montando uma árvore de natal, colocando os últimos enfeites. Sequer ela tinha percebido que havia alguém do lado de fora os observando.

“Nossa. Que bonita!”, disse Eliza, olhando para a mulher do outro lado da janela.

“Sim. Está um pouquinho mais velha do que nos meus sonhos, e esse cabelo tá grande. Mas esse rosto, é inconfundível. São mais do que parentes, Eliza. Essa mulher era a minha esposa”, disse Lucca.

“Meu deus! É a Noriko?”, gritou Eliza, com os olhos arregalados.

Nessa hora, de dentro da casa, a mulher asiática ouviu o grito da menina e olhou. Estava difícil ver as feições no meio da neve caindo, ela colocou uma jaqueta e abriu a porta. Lucca foi em sua direção, calmamente.

Quando os olhares dos dois se encontraram, ambos ficaram sem reação.

E assim ficaram, se olhando, descendo e subindo o olhar, especialmente a mulher asiática sem conseguir acreditar que era aquele homem que estava na sua frente. Já Lucca a observava com um olhar calmo, como se apenas aquela visão fosse como um sonho se tornando realidade. A mulher de tantas lembranças cheias de ternura, memórias essas que ele guardava no seu coração sem nem saber direito do que se tratava, tudo parecia bom demais pra ser verdade.

A primeira a quebrar o silêncio foi a mulher.

“Lucca! Lucca, por deus, você está vivo!”, disse a mulher.

“Noriko? É você, mesmo?”, perguntou Lucca.

“Claro que sou eu, seu bobo! Minha nossa, me dá um abraço!”, ela disse, dando um abraço apertado nele, “Vamos, entre, por favor. Deixe seus casacos aqui na porta. Tá quentinho lá dentro!”.

Lucca foi caminhando até a sala. Era muito linda a casa.

“Uau. Realmente é uma casa e tant...”, disse Lucca, sendo interrompido.

Noriko não estava aguentando mais, pulou e simplesmente deu um beijo na boca de Lucca. Um beijo daqueles, com muito amor. Um beijo que pra Noriko significava o reencontro com alguém que ela esperou por anos, alguém que somente ele havia preenchido seu coração daquela forma, alguém que ela nunca mais conseguiu encontrar igual.

E para Lucca aquele beijo era como se todos aqueles sonhos das memórias do antigo Lucca com ela do nada se tornassem realidade, e ele sentia aquela sensação dos braços se cruzando, as bocas se tocando, tudo aquilo era imensamente mais real do que qualquer sonho que tivesse tido.

“Eu... Esperei tanto por isso, querido. Mais de vinte anos... Vinte anos esperando por essa sensação de novo”, disse Noriko, encostando a testa nele, pra respirar um pouco depois do longo e apaixonante beijo.

Lucca apenas sorria, sem falar nada. Olhando pra Noriko. Os anos haviam passado, mas ela continuava uma mulher linda. Claro, estava com mais de quarenta anos, uns quilos a mais, mas ainda assim era uma mulher linda. Nenhuma ruga, nenhum cabelo preto, nada. Mas havia algo a mais nela. Um sabor a mais.

Olhando nos olhos dela Lucca se distraiu por um momento, quando viu um jovem rapaz descendo as escadas.

“Mãe, tudo bem por aí?”, disse o rapaz.

O olhar de Lucca se encontrou com ele. E o rapaz viu Lucca e Noriko, abraçados.

“Lucca, esse é meu filho”, disse Noriko, o apresentando.

“Puxa, você teve... Um filho?”, perguntou Lucca, surpreso.

Noriko soltou dos braços de Lucca e foi caminhando passos, chorando e sorrindo de felicidade por aquele momento. Ela foi em direção do rapaz, e o abraçou de lado, preparando-se para apresenta-lo.

“Sim, Lucca, querido, esse é meu filho”, disse Noriko, fazendo uma pausa e olhando pra ambos, “E seu filho também”, concluiu.

Os olhos de Lucca se arregalaram. Ele ficou sem reação.

“Foi pouco antes do expurgo e assassinato do Arch... Eu descobri que estava grávida. Depois que o Arch for morto você fugiu, pois queriam você morto, afinal você era o braço direito dele, e eu nem tive tempo de te contar que eu estava grávida. Agora, ele já é um homem, olha só! Tem mais de vinte anos, e esse ano termina a faculdade”, disse Noriko, se virando pro seu filho, “Filho, você lembra que eu contava do seu pai? Eu sabia que um dia ele voltaria. Seu pai teve problemas, esteve quase morto, mas por algum motivo, olha só, ele está aqui!”.

O rapaz estava com lágrimas nos olhos. Ele era a cara da Noriko, parecia um cara japonês mesmo, bem alto e forte, olhos puxados e cabelos arrepiados jogados pra trás.

“Lucca, eu te apresento seu filho, Hayden. Hayden Yamamoto”, disse Noriko Yamamoto.

Os dois se abraçaram. Hayden era grande e forte como o pai. Todos no recinto estavam profundamente emocionados, chorando de felicidade. Até Eliza Vogl. Que até tempos atrás havia perdido sua avó. Mas agora tinha um pai, uma mãe e um irmão mais velho. Uma família completa!

Ela não podia estar mais feliz!

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