Amber #57 - Tsai.

12 de setembro de 1939
16h45

O primo de Eunmi conseguiu que eles fossem dentro de uma carroça de um chinês conhecido dele, que estava levando mantimentos para vender na área de Changsha. Pela manhã do próximo dia eles chegariam lá, sem problemas. Eles estavam escondidos no meio das sacas cheias de diversos mantimentos, como frutas e arroz. O dia já estava se pondo e Schultz estava novamente ficando como fome, mesmo depois de ter comido tanto no almoço.

Puxa, vamos chegar lá só de manhã?, pensou Schultz, bebendo água. Ingerir um pouco do líquido ajudava a enganar um pouco o estômago. Ainda havia muito tempo até chegar lá, e a viagem no meio do interior da China era repleta de tédio e muito fria.

“Ei, coreana, será que vai pegar mal se eu pegar uma maçã pra comer?”, disse Schultz, chamando Eunmi.

Eunmi embora tivesse ouvido não respondeu logo de primeira. Ela estava no canto do bagageiro da charrete, sentada. Na hora que viu Schultz ela virou o rosto e puxou forte com o nariz, como se estivesse tentando engolir o próprio catarro. Schultz se aproximou dela sem entender direito o que estava acontecendo, dizendo:

“Opa, opa, opa! Não vai dizer que você pegou gripe só com esse friozin--“.

“Não, não”, disse Eunmi virando pra Schultz, tentando mostrar que estava tudo bem, “Não estou resfriada, estou bem”.

Eunmi estava com os olhos vermelhos. O nariz também estava bem vermelho. Ela se levantou, limpando com a mão os olhos e o nariz, puxando com a respiração o que teimava cair do nariz. Tentando mostrar que nada estava acontecendo, Eunmi foi até uma das caixas e abriu. Pegou uma maçã vermelha com a mão e passou na sua roupa, dando uma mordida depois. Por mais que ela tentasse mostrar que ela estava bem, era óbvio que ela estava ali chorando, pelos sinais no seu rosto.

“Acho que pode comer sim. Vai enganar um pouco o estômago. Come, vai”, disse Eunmi oferecendo uma outra maçã pra Schultz, jogando-a, “Tá docinha”.

Schultz nessa hora entrou num baita dilema. Eunmi sempre se mostrou uma pessoa forte, inabalável, que parecia que nada poderia abalar aquela garota. Mas é claro que não era doença, nem alergia, nem nada do gênero. Eunmi estava claramente em prantos. Chorando no canto, sozinha, quietinha, para não incomodar ninguém.

Nessa hora enquanto Schultz dava a primeira mordida na maçã olhava pra Eunmi. Ela agora estava inquieta com os olhos azuis do alemão a encarando, ficava fuçando em cada uma das caixas dizendo o que havia dentro delas, tentando achar algo pra fazer pra quebrar aquele silêncio que vinha de Schultz, que apenas a observava sem dizer nada.

Naquela manhã ela havia dito que não havia motivos para se preocupar, que ela estava bem. Ela havia dito que as lágrimas haviam se secado depois da morte do noivo horas atrás, mas aquela garota ainda assim quando tinha um tempo se isolava em suas lágrimas em algum canto para se livrar um pouco das péssimas memórias que a machucavam tanto. E depois voltava, mostrando força, como se nada tivesse acontecido.

“Vamos chegar pela manhã”, disse Eunmi, relembrando pela quinta vez naquele dia, tentando achar algo para falar pra tentar se livrar da vergonha do amigo tê-la vista chorando.

Nessa hora Schultz se perguntou da onde vinha a força das mulheres? Pensou que ela havia sido brutalmente estuprada há poucos dias, e só deus sabe o quanto de memórias tristes e doloridas da vida dela ela tinha na Coréia sendo controlada pelo truculento Império Japonês. Mas para os outros de fora tudo estava sempre “bem” com ela. Que o objetivo da missão era o mais importante. E que nada tiraria ela do seu objetivo. Mas por dentro Eunmi talvez revivesse aquilo tudo tantas e tantas vezes que talvez eram nesses raros momentos que ela se livrava um pouco do pesado fardo que carregava para poder continuar seguindo em frente com mais disposição.

“Sim. Você já me avisou, Eunmi”, disse Schultz, sério, mas por dentro extremamente admirado com a força da menina.

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13 de setembro de 1939
09h01

“Parece que chegamos. Changsha é logo ali”, disse Eunmi chamando Schultz, que estava sentado escondido.

“Puxa, enfim vou poder dar uma esticada nas pernas!”, disse Schultz, “Escuta, existe alguma casa de digamos... Moças bonitas que fazem serviços especiais em troca de dinheiro?”, nessa hora Schultz deu um sorriso amarelo.

“Quer dizer prostitutas?”, disse Eunmi, com cara de repreensão a Schultz, mas ainda mantendo o ar irônico.

“Poxa, seu alemão é bom mesmo. Como aprendeu a falar prostituta?”, perguntou Schultz, tirando sarro da amiga.

Mas aí soldados chineses apareceram, puxando a lona da carroça em que eles estavam escondidos. Schultz na hora se assustou, erguendo os braços. Eles gritavam algo que nenhum dos dois sabiam o que ele dizia, apontando suas armas para eles.

“E-eles são chineses! Não tô entendendo isso! Meu primo disse que sabiam que estávamos vindo!”, disse Eunmi, “Anda, Schultz, mostra o envelope!”.

Eunmi continuava de mãos pra cima com muito medo, apressando o alemão. Mas Schultz, apesar daquela gritaria toda em chinês estava calmo. Pegou o envelope na sua bolsa com tudo o que havia trago da Alemanha e mostrou o envelope, erguendo com os braços, mostrando-se rendido.

Os chineses diminuíram os gritos ao ver o envelope, mas continuavam apontando suas espingardas para os dois. Pareciam estar começando a ficar calmos. Do lado apareceu o chinês que havia conduzido a charrete, ele parecia falar algo em mandarim com os outros. Schultz e Eunmi se olharam, aliviados.

“Parece que ele tá explicando a situação. Ufa...”, disse Schultz, aliviado.

Mas aí o chinês da carroça sacou uma pistola e alvejou os dois soldados à queima roupa. Schultz e Eunmi se assustaram sem entender o que estava acontecendo e se correram para detrás das caixas para se protegerem dos disparos.

O chinês que os levou pra lá sacou outra pistola carregada e subiu no bagageiro da carroça com a arma em punhos, virando o rosto como se estivesse procurando por Schultz e Eunmi.

Merda! Agora tô fudido!, pensou Schultz. Mas de súbito os dois ouviram um som de uma submetralhadora sendo disparada, matando instantaneamente o chinês. Ao erguer o rosto Schultz viu apenas o vulto correndo, sem conseguir ver nenhuma feição. O corpo do chinês que os havia levado caiu pesadamente no chão, já abatido e morto.

Segundos depois outros soldados apareceram, incluindo uma mulher, que pelo que Schultz observava parecia ser a que comandava ali, pois ela foi na frente, subindo na carroça indo em direção de Schultz e Eunmi.

Ela viu no fundo Eunmi e Schultz sentados no chão escondidos atrás das caixas e sacas de mantimentos. Olhou rapidamente pra Schultz e depois se virou pra Eunmi. Disse algumas palavras em chinês para a coreana, mas Eunmi não sabia falar chinês, e respondeu algo em coreano.

E pra surpresa de todos ali, aquela chinesa sabia falar coreano fluentemente, pois prontamente respondeu á Eunmi. Schultz permaneceu apenas olhando a conversa das duas, e enquanto isso reparava naquela chinesa que estava na sua frente.

Ela era branquíssima, como neve. Tinha os olhos asiáticos característicos redondos e expressivos, e o cabelo bem preto amarrado num coque. Vestia uma roupa militar masculina adaptada com uma saia que claramente não devia fazer parte do uniforme original. Tinha uma arma junto do seu corpo e uma pistola na cintura.

Mas seu rosto, nas vezes em que ela virava o olhar pra Schultz enquanto falava em coreano com Eunmi, era uma das coisas mais bonitas que Schultz já havia visto. Era um rosto extremamente delicado e bem desenhado, seus olhos eram bem expressivos e negros, o contraste das linhas do cabelo desenhavam seu rosto como que tivesse sido esculpido em mármore, e seus lábios eram cheios, vermelhos e compactos. Apesar de tudo ela ainda parecia usar batom, sem deixar esse aspecto feminino se perder na macheza do seu uniforme militar.

Em uma das vezes que ela encarou Schultz, ainda sentado sem entender o que elas estavam falando, a chinesa disse algo que os dois ali entendiam muito bem.

“Fala alemão, então?”, disse a chinesa, com muito pouco sotaque.

Nessa hora Schultz arregalou os olhos, se erguendo. Inacreditável.

“S-sim, eu falo sim!”, disse Schultz, gaguejando, sem acreditar.

“Muito bem. Meu nome é Tsai Louan. Sou uma das líderes do exército nacionalista chinês por aqui. São vocês que trouxeram as informações dos espiões de Xangai?”, disse a chinesa.

“Sim, estão aqui”, disse Schultz entregando o envelope. Ela era bem séria. Tão séria quanto Eunmi. Mas Schultz pela primeira vez em muito tempo estava completamente sem graça estando ao lado da chinesa. Ela era realmente muito bonita.

Depois de entregar o envelope Schultz acabou tropeçando e se agarrou na lona da carroça, quase caindo de lá. As duas olharam sério pra Schultz e ele, sem jeito, voltou, ficando novamente em pé ao lado delas.

“Opa, quase! Bom, meu nome é Schultz, senhorita Louan”, disse Schultz, tentando jogar um pouco de charme na chinesa, mas ela sequer parecia ter captado o que o alemão tentou passar com seu olhar sedutor.

“Não me chame de Louan. É Tsai pra você”, cortou a chinesa, sem dar intimidades para o alemão, “Me acompanhem. Presumo que trouxeram o envelope, certo? Temos comida e um teto pra vocês. Daqui pretendem ir pra onde?”.

“Queremos ir para o norte. Para a Coréia”, disse Eunmi, saindo da carroça e seguindo Tsai.

“Vocês devem ser loucos. É um caminho sem volta ir pra Coréia. O exército japonês já dominou toda aquela região. Vocês dois nunca vão conseguir”, disse Tsai.

Schultz observava o corpo do chinês que os havia trago. Um oficial chinês chegou em Tsai e começou a falar com ela, apontando para Schultz, gesticulando com o cabelo. Schultz viu os dois observando ele e se aproximou, perguntando o que faziam apontando e encarando ele daquele jeito.

“Ele tá dizendo que o homem que atirou no chinês tinha o cabelo amarel...”, disse Tsai, corrigindo, “Quer dizer, loiro. Igual ao seu”.

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