Amber #86 - A batedora (e assassina nas horas vagas).

28 de outubro de 1939
15h11

Jiujiang é uma cidade aos pés do Monte Lu. É uma área do interior da China povoada há milênios, e muito próspera, pois é o local onde, diz a lenda, nove rios se convergem. Mas hoje tudo o que se vê é o Rio Yangtzé, isso é parte do folclore local. Há exatos um ano e um dia, terminava uma batalha sangrenta que havia acontecido ali, parte da Segunda Guerra Sino-Japonesa. Apesar da vitória japonesa, as perdas foram imensas de ambos os lados. Mais de quinhentos mil mortos em pouco mais de quatro meses de batalha. Foi um golpe duro nas tropas nacionalistas e comunistas chinesas. Lutando em diversas frentes, o exército japonês expulsou as tropas chinesas para Chongqing, forçando-os a adentrarem ainda mais no interior da China.

“Poxa, eu passo semanas aprendendo a falar chinês. E quando enfim tenho uma boa chance de praticar, o povo aqui começa a falar outra língua!”, disse Schultz, revoltado para Chou, “Japonês não tem nada a ver com chinês! O que são esses caracteres estranhos?”.

“Ei, é bom ficar quieto. Não queremos chamar atenção. Você não estava praticando aqueles trava-línguas em chinês há uns minutos atrás?”, disse Chou.

Os dois estavam sentados em um banco, embaixo de um ponto de ônibus. Era o terminal rodoviário da cidade, que estava obviamente em ruínas. Mas poucos ônibus apareciam lá, e todos eles estavam sob forte vigilância do exército japonês, que havia dominado a cidade.

“Sim, mas eu já estou craque nesses”, disse Schultz, “Quatro é quatro, dez é dez, quatorze é quatorze, quarenta é ‘quarrenta’...”, errou Schultz, enquanto dizia o trava-línguas. Esse trava-línguas é bem famoso na China, pois brinca com os sons dos números que se parecem muito. Quatro é “sì”, com tom descendente, enquanto dez é “shí”, com tom ascendente. O som que Schultz fez seria algo assim: Sì shì sì (quatro é quatro), shí shì shí (dez é dez). shísì shì shísì (quatorze é quatorze), sìshí shì sìshí (quarenta é quarenta).

“Não, errou de novo! O quarenta desce e sobe o tom. Desce no quatro e sobe no 10”, disse Chou.

“Ahhhhh, mas que tédio, Chou! Tem certeza que era esse horário? Já faz uns quinze minutos! Você tem certeza que a reconhecerá quando ela descer do ônibus?”, perguntou Schultz, e Chou confirmou com a cabeça, sem dizer nada, concentrada nas pessoas que saíam dos ônibus, “Tá, mas porque raios escolher vir junto de ônibus? Eu pensava que vocês pensariam numa entrada triunfante, com uns corpos explodindo com impactos de bala, explosões, tanques de guerra. Eu duvido nada que essa tal de Li pode acabar sendo descoberta pelos japoneses. Aí a gente tá ferrado!”.

“Você não conhece a Li. E quer saber? Acho que não existe meio mais seguro que esse. A Li é tão poliglota quando a Gongzhu, ela vai se passar por japonesa sem problemas. E no final das contas o local mais seguro sempre vai ser embaixo do nariz deles. Uma coisa é segurança de fato. Outra é uma impressão de segurança”, explicou Chou, “Os japoneses querem fazer que esse local pareça estar sendo policiado, quando na verdade a maior patente que vejo aqui é um cabo. Isso é bem fácil pra alguém como a Li enganar e passar desapercebida”.

“Nossa, pelo visto ela deve ser bem inteligente. E ainda é poliglota?”, perguntou Schultz, mas Chou continuava esticando o pescoço, observando quem descia dos ônibus que paravam ali, “Mas a Tsai disse que ela estava no Oriente Médio. Ela fala a língua das esfirras e babaganuche?”.

“Possivelmente sim”, disse Chou, se erguendo, “Ah, ela chegou! Tá vindo pra cá, olha ela ali!”, apontou para uma chinesa que atravessava o terminal improvisado, olhando para todos os lados tentando buscar alguém, “Acho que a Gongzhu não contou. Mas a Li faz uns bicos como assassina”.

Schultz nessa hora ficou apreensivo. Viu que a tal Li os viu e estava indo em direção a eles. De primeira ela parecia séria, e Schultz realmente sentiu medo. Uma assassina? Mas ela parecia tão delicada! Ao contrário de Tsai e Chou que eram bem brancas, Li tinha uma pele um pouco mais bronzeada. Usava um cabelo curto, na altura dos ombros, amarrado num rabo de cavalo. Parecia realmente uma chinesa que havia passado um tempo fora do país. Andava com um artefato comprido envolto por panos nas costas, e carregava sem problemas uma mala de viagem nas costas. Vestia roupas ocidentais simples, parecia uma turista.

“Hello! Nice to meet you! Você fala minha língua?”, perguntou Li, em um inglês perfeito para Schultz, sem sotaque algum. Aquela feição séria foi deixada de lado, e até parecia simpática.

“Ah, eu falo mandarim, senhorita Li! Muito prazer, meu nome é Ludwig Schultz”, disse Schultz.

“Incrível! Seu chinês é muito bom! Posso te chamar de ‘Shu’?”, disse Li, muito simpática, “E corta essa de ‘senhorita Li’! Me chama só de Li que tá ótimo! Vocês vieram de carro?”.

“A Tsai pediu para virmos de carruagem”, disse Schultz, apontando para trás, “Ela disse que pensariam que somos moradores da área rural e pobres, isso não chamaria a atenção. Os japoneses tão torrando a paciência desde que dominaram aqui”.

“Entendi! Vamos indo então Shu, tô morrendo de fome!”, disse Li, indo na frente.

Schultz então virou os olhos pra Chou, que desde que Li havia aparecido estava quieta. Chou tentava olhar para Li, mas parecia que todo tipo de contato visual era cortado por ela. Então Schultz viu que tinha algo ali no meio das duas, pois Li sequer havia cumprimentado Chou.

“Nihao, Li...”, disse Chou, baixinho, mas num tom que Li conseguiria ouvir. Ela baixou a cabeça em respeito à Li.

Mas Li sequer virou o rosto. Menos ainda a cumprimentou de volta. Ignorou Chou completamente. Schultz percebeu que talvez as duas fossem brigadas, mas seguiu conversando com Li no caminho de volta. Ela era realmente muito simpática. Schultz sentou no meio das duas, e percebeu durante toda a viagem que Chou não falava quase nada na presença de Li.

“A Gongzhu disse que tinha um alemão que estava treinando com a gente! Não imaginava que ela mandar justo você pra ir me buscar! Eu pensava que os alemães eram sérios, mas você parece ser super brincalhão! Da onde você é?”, perguntou Li.

“Stuttgart! As pessoas de lá são bem mais espontâneas e despojadas! Acho que você gostaria de lá!”, disse Schultz, “Mas escuta, porque você não colocou essa caixa lá no fundo da carroça? Tem uma bomba aí?”.

“Hahahaha! Claro que não, seu bobinho! Essa aqui é minha melhor arma!”, disse Li, apontando pra caixa, “Eu não sei se a Gongzhu te disse, mas eu sou a batedora do grupo. Eu já acertei alvos a centenas de metros de distância. Minha SMLE Mk III tá lá atrás”, nessa hora ela mudou o tom de voz, para um tom de brincadeira: “Se aprontar algo com a Gongzhu, eu te acerto mesmo se você estiver no topo do Monte Lu, viu! Eu nunca desperdiço uma bala! Hahaha!”.

Schultz deu um sorriso amarelo.

“Ouvi falar que você faz uns trampos como assassina! Por isso que você estava no Oriente Médio?”, perguntou Schultz.

“Fui contratada pra acabar com alguns inimigos políticos de um árabe, chamado Amin al-Husseini”, explicou Li, “Eu terminei o serviço, mas enquanto fazia o serviço fiquei meio assustada com as coisas que ouvia. Esse árabe detesta judeus, ele é completamente antissemita. Se ele se juntasse ao Hitler, xi...”, nessa hora Li balançou a cabeça, como se não quisesse imaginar o que aconteceria, “...Eu é que não queria ser judia numa hora dessas!”, mas ao perceber que não havia respondido sua pergunta, antes mesmo de Schultz dizer algo, ela completou: “Mas se quer saber, sim. Dá um ótimo dinheiro! Batedores são sempre a melhor pedida para um serviço desses. Ninguém nos descobre!”.

“Incrível! Uma boa batedora é sempre útil”, disse Schultz, mas ele ainda queria saber o que havia na caixa, “Mas se o seu rifle está lá atrás, que arma é essa na caixa?”.

“Ah, sem essa, Shu! Uma vida boa é uma vida com mistério! Vou te deixar sem saber o que tem na caixa!”, disse Li, “Não vai descobrir minha arma secreta!”.

“A Tsai sabe, não é?”, disse Schultz, querendo confirmar. No fundo ele tinha medo do que poderia estar ali.

“É óbvio que sabe! Eu acho que quase todos do pelotão sabem!”, disse Li, empolgada, “Mas como você é novato, não vai ser fácil assim descobrir, mocinho!”.

“Hahaha! Cara, gostei de você, Li! Tenho certeza que vamos ser ótimos amigos!”, disse Schultz.

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“Gongzhu, já retornei”, disse Li, fazendo uma reverência de joelhos, “Me desculpe a demora”.

Chou, Schultz e Tsai ficaram mudos vendo aquela cena. Mas cada um teve uma reação diferente. Schultz ficou pensando que tipo de sentimento e obediências as pessoas do pelotão da Tsai tem por ela como líder, a ponto de Li se agachar como se estivesse reverenciando alguém da realeza. Já Chou viu aquilo com estranheza, pois era a última coisa que imaginava que Li faria. Não conseguia imaginar se havia uma outra intenção de Li nesse gesto.

“Li, sua engraçadinha, levanta logo!”, disse Tsai, que foi a única que realmente entendeu o que significava aquilo, “Eu não acredito que você cumpriu o que disse. Que memória boa você tem! Nem eu me lembrava que você tinha dito que me cumprimentaria assim na próxima vez que nos víssemos”.

“Oh, minha princesa, herdeira do trono, futura líder de nossas terras!”, disse Li, se erguendo, fazendo um draminha cheio de humor, “Obrigada pela sua compaixão! Obrigada, obrigada, obrigada!!”, ela foi até Tsai e se ajoelhou, como se fosse beijar seus pés.

“Chega disso, Li! Vai lá deixar suas coisas lá em cima, sua sem graça”, disse Tsai, “E Chou, será que você ir lá ver se o arroz pro jantar está pronto com o pessoal da cozinha? Logo logo vai ser hora da janta”.

“Entendi, Gongzhu”, disse Chou, saindo.

“Puxa, que saudade de comer um bom arroz! Os chineses do norte só comem macarrão, macarrão, macarrão. É bom, mas eu já estava enjoada disso todo dia! Bom, eu vou deitar! Foi uma viagem longa, mas enfim cheguei aqui. Lar doce lar!”, disse Tsai, subindo o morro e indo até a mansão, “Gongzhu, se precisar algo, só me avisar”.

Depois que as duas saíram, Schultz se aproximou de Tsai. Ela estava com duas armas numa mesa e algumas ferramentas, aparentemente as estava consertando.

“Ei, Tsai, me tira uma dúvida?”, perguntou Schultz se aproximando da Gongzhu, que ao ouvir virou seu olhar para Schultz, “É impressão ou as duas ali não se bicam?”.

“Sim, as duas são brigadas, há uns cinco anos. Não se falam desde então, exceto o mínimo de contato necessário no meio das missões”, disse Tsai, desmontando uma das metralhadoras.

“Eita! E isso não atrapalha na hora que vocês têm que trabalhar em grupo?”, perguntou Schultz.

“É claro que não. No meu time eu só tenho os melhores dos melhores. E elas nunca deixam essas coisas pessoais interferirem quando temos que trabalhar em grupo”, disse Tsai, “Se você reparar bem, a Chou tenta se aproximar da Li, mas ela tem uma mágoa muito grande, e não a perdoou. Por isso a ignora desse jeito”.

“E o que exatamente aconteceu entre as duas?”, perguntou Schultz.

Nessa hora Tsai virou o rosto para Schultz, erguendo uma sobracelha.

“Isso você vai ter que descobrir da boca delas”, disse Tsai, “Não vou ficar fazendo fofoca aqui”.

Schultz então se sentiu muito frustrado.

“Poxa, você não dá nada fácil, né?”, ironizou Schultz, “Mas escuta, mudando de assunto, só vi mulheres até agora. Você, Chou, a Li. Tem algum homem tirando eu?”.

“O que quer dizer com isso?”, perguntou Tsai, cruzando os braços, “Quer dizer que você acha que um bom pelotão só seria ‘bom’ se fosse composto apenas de homens?”.

“Não! Longe disso! Eu até gosto delas, são todas muito boas no que fazem, bem melhores que qualquer homem que estivesse no lugar delas. Perguntei apenas de curiosidade”, disse Schultz, sem jeito.

“Sim, somos em seis. Quatro mulheres e dois homens”, Tsai disse, ficando em silêncio depois que terminou, olhando pro lado como se estivesse revendo memórias, “Haviam mais dois rapazes, mas um dia eu te conto o que aconteceu com eles. Vamos aguardar notícias dos outros”, nessa hora Tsai se voltou para as armas que estava consertando, “Acho melhor você comer. Amanhã teremos treinamento com a Li. A Eunmi está quase pronta, acho que até metade de novembro vamos enfim para a Coréia”.

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