Quando a COVID19 bateu na porta ao lado.


"Sabe a dona Zizinha? Ela faleceu essa noite. Corona Vírus".

Engraçado que eu estava pensando nela dias antes de eu receber a notícia, acho que é uma dessas premonições estranhas que tenho que muita gente diz que é "coisa da minha cabeça". Acho que na própria terça eu me peguei pensando nessa senhora. Foram algumas poucas lembranças, mas essas coisas quando acontecem comigo eu não tenho controle. Elas apenas vêm. Sem explicação, sem aviso, como se algo sussurrasse no meu ouvido.
Mas eu não sei quem é, o que quer, ou o porquê.

Foi assim que meu pai me disse, acho que na última quarta-feira.

Minha maior lembrança é de quando eu tinha uns sete ou oito anos, e ela me chamou para comer bolo do aniversário do neto dela, não lembro de quem era. Eu fui e comi o bolo, conversamos um pouco, ela dizia que eu o filho do "Dinei" (o nome do meu pai é Claudinei), e eu lembro que por conta de eu estar um pouco resfriado e ela só ter guaraná gelado ela esquentou no fogão um pouco até ficar frio, mas ficou horrível (nunca tente aquecer refrigerante no fogão, fica realmente um gosto horrível).

Volta e meia quando eu a via, ela me cumprimentava. Acho que ela devia já passar dos oitenta. Não sei exatamente sobre a saúde dela, mas independente disso é parte do grupo de risco.

Mas no dia seguinte dessa memória ter brotado espontaneamente na minha cabeça ela veio a falecer.

Eu estava um pouco tranquilo, mas a reação de outras pessoas aqui de casa foram bem diferentes. Meu pai, trinta vezes mais hipocondríaco do que eu, passava o álcool gel na mão várias vezes, mesmo sem sair de casa. O número de cigarros que ele fuma também aumentaram consideravelmente, e eu passo muito mal só quando ouço o barulho do isqueiro sendo aceso e o mesmo sendo jogado na mesinha da cozinha. Segundos depois o cheiro maldito do tabaco sobe aqui para o meu quarto, enquanto ouço a porta sendo aberta e batida para ele fumar lá no quintal. Toda santa vez.

Em dias tranquilos meu pai fuma os cigarros rotineiros dele: um logo quando acorda, outro por volta das nove ou dez da manhã, outro de sobremesa depois do almoço, outro antes de levar a Magali (nossa cachorra) para passear, outro depois da janta, e um último sentado na privada antes de tomar banho. Mas ele, que é excessivamente ansioso, quando escuta alguma notícia do gênero fuma praticamente um a cada hora. E junte isso ao trabalho de consultor, que tem muita responsabilidade, mais a quarentena sem pode sair de casa... Está indo mais de um maço por dia tranquilamente.

E naquele dia quando soubemos desse caso tão próximo de morte do novo Corona Vírus ele fumou muito.

Se existe algum Deus, eu sei que ele já desistiu de tentar livrar meus pais desse maldito vício que é o cigarro. Eu não acredito mais que serei ajudado e já me conformei com isso. Isso não vai acontecer. E a cada cigarro eu vejo a morte se aproximando, é uma sensação horrível. Eu, que desde o estado fetal aspiro fumaça de cigarro, tenho talvez um pulmão de um fumante mas que nunca colocou um único cigarro na boca. Tenho problemas de fôlego, sinto que meus pulmões não absorvem a quantidade certa de oxigênio por conta da má formação, culpa do tanto de tabaco que aspirei.

E eu sei como cigarro é uma válvula para ansiedade: o meu era roer unhas, e tenho que admitir que é bem difícil largar o vício — mas ele é nocivo para nós, então é melhor sofrer livre do vício, do que ficar lá, tranquilo no vício, mas fazendo um mal ainda pior para seu corpo por conta do consumo excessivo, seja ele de unhas ou tabaco.

Porém, naquela noite, após assistir um episódio de Westworld, eu fui até a varanda do meu quarto e vi a luz da lua sendo projetada no chão. Aquele azul bem fraquinho, pensei até que era lua cheia, mas era ainda crescente. Mas talvez pelo fato de não usarem tanto os carros, e a poluição ter diminuído, era possível até ver algumas estrelas no céu. A lua crescente brilhar daquele jeito no meio de São Paulo é rara.

Nesse momento um pensamento veio à minha mente: o que vamos deixar nesse mundo?

Fiquei imaginando que, sei lá, assim como nós estamos aqui hoje desenterrando ossadas de dinossauros e tentando entender como foram esses seres que dominaram todo o globo terrestre, como vai ser daqui a alguns 500 milhões de anos quando forem nos desenterrar? Será que acharão esqueletos dessa estranha espécie de primata bípede que ocupava todos os centímetros do planeta Terra? O que será que eles deixaram? Como eles viviam? Iriam saber reconstruir nossos narizes?

Me veio à cabeça que também as pessoas ao nosso redor nos deixam heranças. Essa vizinha me deixou essa boa memória, não apenas um lembrete de nunca ferver o refrigerante pois fica horrível, mas também essa gentileza de ter me oferecido aquele bolo gostoso, mesmo com "gosto de geladeira" que eu detesto, e boas recordações daquela casa com piso marrom e paredes amarelas. Ficou um carinho de recordação na minha mente, algo dela que vai viver em meu coração para sempre.

O Homem (e aqui é com "h" maiúsculo, no sentido antropológico da palavra) é muito frágil. Estamos à beira de extermínio a cada momento. Estamos nesse planeta há alguns milhares de anos, isso é um piscar de olhos na história desse planeta. Os romanos, por exemplo, um império que dominou toda aquela faixa do mundo conhecido na época, construíram uma sociedade com diversos avanços tecnológicos simplesmente foi quebrada em pedaços quase que subitamente com as invasões bárbaras. O que parecia indestrutível caiu por terra. E isso se deu com outros diversos impérios ao longo do curso da história da humanidade.

Não é difícil acabar com a raça humana. Um vírus, possivelmente de um morcejo, fez uma mutação e resolveu atacar humanos. Se não há guerras mundiais, o planeta tem seus mecanismos para atacar. Será isso algo para nos fazer refletir? Para tocar naquele arquétipo místico dessa estranha linha invisível que une todos os seres humanos e de voltar dar um passo que havíamos regredido nesse mundo tão mesquinho e voraz?

Olha como somos insignificantes! Nem conseguimos ver a curvatura da Terra de onde estamos!

E quanto a nós? Será que é tão importante pensar no presente? O que deixaremos para o futuro? Será que conseguiremos mudar algo para nossos filhos? Ou repetiremos os erros de nossos pais?

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