Amber - Encontros sob a sombra da aveleira (1)

23 de setembro de 1883

O cintilar do copo com bebida refletindo a luz do lustre daquele salão de festas era ofuscado pela imensa cara de tédio que o jovem Heinrich Briegel sentia naquele momento. Nem ele sabia direito o porquê de estar naquele baile. Era a comemoração do aniversário de uma parente, de um amigo, ou sabe lá quem era. Não importava quem fosse, e ele não fazia questão nenhuma de saber. Sentado esparramado numa cadeira, de frente para os talheres e o prato sujo na sua mesa, de gravata praticamente desatada, ele via todo o movimento das pessoas à sua frente, dançando no salão.

E sua expressão emburrada deixava estampada na sua cara que nada daquilo o convinha.

Ao longe Heinrich via seu pai, Baldur Briegel, dançando com sua mãe, Ruth. Eles pareciam felizes. Dançavam de um lado para o outro, sorrindo, ao som da música, como se não houvesse amanhã. Volta e meia seus pais olhavam para seu filho ali sentado, com aquela cara de poucos amigos. Eles definitivamente estavam em uma excelente maré.

A família Briegel aproveitou a unificação da Alemanha, que já havia ocorrido há mais de dez anos até então, e expandiu os negócios. Baldur Briegel saiu de um mero criador de ovelhas para um grande empresário têxtil e tal poder o fez ser levado para dentro dos maiores círculos de prestígio da Alemanha e de toda a Europa.

Definitivamente aquele era um grande momento que eles viviam, talvez o ponto mais alto que os Briegel havia chegado. Porém nada disso parecia fazer seu jovem filho Heinrich Briegel sorrir. Com a cara fechada, ele nem reparou que uma donzela acompanhada de uma menina haviam aparecido do seu lado com uma cestinha de doces.

“Com licença? Você está me ouvindo?”, disse uma jovem criança, devia ter uns dez anos. Heinrich Briegel virou o rosto, encarando a menina com um ar de profundo tédio, enquanto ela prosseguia: “Lembrancinhas da festa para que o senhor leve para a casa, são amanteigados vienenses”, disse a jovem, pegando um da cestinha e oferecendo para Briegel.

“Tá. Deixa aí”, disse Briegel, sem nem pegar na mão a caixinha de papel delicada e de muitíssimo bom gosto que a jovem criança a ofereceu.

Nesse momento, a mulher adulta que estava junto da criança ficou indignada com a indiferença que aquele jovem alemão havia expressado. E Briegel então, sequer percebera que havia uma outra pessoa ali atrás, cuidando da criança. Ele se assustou ao ouvir uma voz adulta vindo de alto.

“Querida, por que você não vai lá guardar essa cestinha com o seu papai? Já entregamos para todos os convidados da festa!”, disse a mulher, sorrindo. A garotinha confirmou com a cabeça e foi saltitante até seus pais levando a cesta com os doces. A mulher puxou uma cadeira ao lado de Heinrich Briegel e se sentou próxima dele.

“Seu perfume…”, disse Heinrich, coçando o nariz.

“Algo de errado com meu perfume?”, perguntou a mulher.

“Faz meu nariz coçar”, disse Briegel, que continuava a coçar o nariz, dando algumas fungadas.

A mulher mesmo ouvindo a reclamação, não moveu um centímetro, e continuou ao lado de Briegel, pousando os olhos no alemão, que conforme o tempo ia passando ia se sentindo cada vez mais incomodado com a presença daquela mulher o encarando.

“O que foi? Tem alguma coisa na minha cara?”, perguntou Heinrich, já sem a coceira no nariz.

“Você parou de coçar o nariz. Talvez o cheiro só deu coceira no começo, agora você parece mais acostumado”.

“Ainda acho fedido”, disse Briegel, se sentando direito na cadeira, e fingindo coçar o nariz, para mostrar incômodo. O nariz dele não tinha ardido a ponto de coçar, era apenas uma birra por parte dele.

“Pois para o seu conhecimento, esse perfume que uso é caríssimo”.

“Foda-se. Achei fedido”.

No fundo aquela mulher sentiu uma boa franqueza nas palavras daquele jovem. Estava acostumada com as pessoas sempre preocupadas com a aparência, com a etiqueta, ou com as palavras. Ao ver aquele jovem revoltado daquele jeito, sem dar a mínima para a opinião dela, a fez se interessar para saber de quem se tratava. Afinal eram poucas as pessoas que naquele momento conheciam aquela família de novos ricos que os Briegel eram.

“Você é um menino falastrão. Gostei disso. Normalmente pessoas se tratam de maneira tão falsa, sem profundidade. Mesmo que para os outros alguém que fala empregando as palavras como você empregou pareça rude, pra mim é diferente. Acho que parece autêntico”, disse a mulher, com palavras polidas e uma postura elegante.

“Estou nem aí para o que você acha”, disse Briegel, sem ainda nem olhar para a mulher sentada do seu lado. Ele já estava se sentindo incomodado, olhava para as janelas, para a porta. Definitivamente ele estava querendo sair correndo dali o mais rápido possível.

Mas a mulher insistia em ficar ali:

“Você parece revoltado. Um jovem revoltado. É muito bom ter revolta enquanto se é jovem. É uma ótima forma de firmar a personalidade. Ser adulto não é nada fácil”.

“Ser adulto não é nada fácil? Você parece uma velha falando”.

“Infelizmente para você não sou tão velha quanto você presume. Tenho vinte e nove anos”.

“Vinte e nove? E onde está seu marido?”.

“Eu não sou casada”, disse a mulher, “Papai só me fixou uma única regra para o meu casamento: que eu encontre alguém que ame. Não importa o tempo que isso levar”.

Briegel olhou para ela dos pés até a cabeça. Definitivamente não era alguém de se jogar fora. Era bonitinha. Uma mulher atraente, apesar da idade que, para a época, já havia passado do tempo.

Os dois eram bem diferentes. A mulher tinha um cabelo castanho e olhos escuros, que contrastavam com a pele branca. Era uma mulher magra, estatura alta para a época, e a presença de sardas a fazia parecer até um pouco mais jovem do que realmente se dizia ser. Já Briegel era um típico jovem alemão, um cabelo bem loiro, olhos azuis meio cinzentos, alto, mas como não havia nem servido o exército ainda, ainda era bem magro. Ainda parecia uma adolescente, não apenas na personalidade, mas na aparência também.

“Você parece ter menos, eu te daria no máximo uns vinte e dois”, disse Briegel, depois de passear os olhos nela da cabeça aos pés, “Tenho certeza que deve ter muitos homens interessados em ter você como partido”.

“Talvez sim, mas nenhum me interessou. Parecem todos homens sem conteúdo, sem um pingo de cérebro ou personalidade. Pessoas iguais sempre me cansam”.

“Por isso que está aqui desperdiçando seu tempo comigo?”.

“Não, não, não diga isso. Eu já disse, essas pessoas comuns me entediam ao extremo. E eu gosto de conversar, gosto de conhecer novas pessoas”.

Briegel ficou quieto, e ela prosseguiu:

“E você não tem cara de ser um revoltado sem razão. Você parece muito focado naquele casal dançando todo feliz. Eu pressuponho que sejam seus pais. E pela sua cara enquanto você os encara, eu aposto que deve ter algo neles que o incomoda. Algo que você não consegue aceitar”.

“Pois então você pressupôs corretamente, dona”.

“E você pode me dizer o que é? Sou uma mera desconhecida, nem o seu nome eu sei. Tudo o que confessar, morre aqui”.

Briegel tomou um ar, e seu primeiro pensamento era se erguer daquela cadeira e ir embora. Quem era aquela mulher chata? Mas havia algo nela que também o fazia querer ficar lá. Uma coisa invisível, que o jovem Briegel não entendia exatamente o que era. Ela o dizia que ele era diferente das pessoas, mas ele também sentia que ela era igualmente diferente também. Ela parecia querer fazer o que quase ninguém queria fazer com ele: ouvi-lo. E isso era algo que o mantinha lá, apesar da vontade imensa de querer sair dali também.

“São meus pais”, iniciou Briegel, “Não aceitam o que quero fazer da vida”.

“Entendi. E o que eles gostariam que você se tornasse, e o que você realmente quer?”.

Briegel resmungou, mas a respondeu:

“Meus pais são empresários. Eles querem que eu continue nos negócios como um comerciante, que eu continue os negócios da família”, disse Briegel, com uma voz triste e sem empolgação, “Mas eu não quero. Quero entrar para o exército. Quero seguir carreira militar”.

“Uau. Esse é um momento bem turbulento para tomar uma decisão assim”.

“Por quê?”.

“Ora, porque todos os países da Europa estão se industrializando. Até a Alemanha, que demorou bastante comparado com outros vizinhos, está investindo bastante na indústria, e tudo está sendo produzido numa velocidade incrível como nunca antes viram”, disse a mulher, “Tenho um mal pressentimento quanto a isso”.

“E isso não é bom? Indústrias são o futuro do mundo”, disse Briegel, convicto.

“O que eu temo é um conflito global. Agora está tudo bem, é divertido mostrar que seu país é um excelente fabricante de tecido ou máquinas. O problema é quando começarem a produzir armas, e usarem isso para oprimir ou ameaçar os países vizinhos. Como todos ao redor também possuem indústrias, o estopim de um conflito global na minha opinião é meio iminente”.

Talvez aquela mulher poderia ser taxada como agourenta ao afirmar algo assim em 1883. Mas a verdade é que essa tímida e humilde industrialização crescente da Europa aumentaria cada vez mais a cada ano, a escalas nunca antes imaginadas, o transformando em algo possessivo e agressivo por parte das nações. O mundo mudaria drasticamente, todos os países da Europa teriam um imenso poderio em suas mãos, e tudo isso culminará na Primeira Guerra Mundial, anos mais tarde, em 1912. Uma guerra que o próprio Heinrich lutará. Mas essa é uma uma outra história.

“Você é bem inteligente. É difícil uma mulher assim que não fique apenas preocupada com amenidades”, disse Heinrich, e nessa hora a mulher deu um sorriso sarcástico.

“Não seja esse tipo de homem que menospreza as mulheres. A gente está de olho em tudo, nós sabemos de tudo o que acontece”, disse a mulher, dando uma piscada com os olhos, “E quer saber de uma coisa, depois de ouvir sua história, quero te ajudar. Quero te ajudar a entrar no exército”.

“O quê?”, perguntou Heinrich, assustado, “Mas você tem contatos no exército? Sua família é de lá?”.

“E isso importa?”.

“É claro que importa! Apenas uma pessoa de dentro, uma pessoa que tivesse contatos, ou uma pessoa influente poderia me colocar no exército!”, disse Briegel, enfim mostrando interesse na conversa, “Vamos, me diga! Você conseguiria mesmo me colocar lá?”.

“Eu consigo te colocar sim, moço”, disse a mulher, e nesse momento Heinrich ficou preenchido de esperanças dos pés até a cabeça, “Mas eu sou não tenho contatos no exército, e tampouco sou uma pessoal de tal influência”, e quando Heinrich ouviu isso fechou a cara de novo, e sentiu como se recebesse um balde de água fria na cabeça, e ela concluiu: “Eu quero te passar uma coisa, te ensinar uma coisa valiosa que vai fazer com que você alcance qualquer coisa que desejar na vida. Você é jovem, se você nutrir essa mente nesse momento, com certeza você vai conseguir ser o que quiser na sua vida”.

Heinrich se sentia como um idiota. E essa última falha da mulher causou nele a impressão de que essa mulher era quase como se fosse seus pais com aquelas lições de moral idiota, dizendo para ele ser isso ou ser aquilo, e nunca ouvindo o que ele realmente queria ser. Sua cara estava realmente emburrada, e tomado pela ignorância, ele se ergueu da mesa sem dizer nada, sem nem ao menos se despedir, ou olhar para a simpática donzela ao seu lado.

E então a mulher ao ver Heinrich Briegel se erguendo bruscamente da mesa para sair em silêncio, agarrou o braço dele. Briegel virou o rosto e a olhou de canto, com as sobrancelhas arqueadas de raiva. Porém aquela mulher era alguém tão decidida, que nenhuma cara de Briegel fizesse aquele momento a faria se abalar.

“Por favor, me ouça. Dê uma chance para si mesmo, eu prometo que não vou lhe tomar muito tempo, garoto. Eu já disse, eu gostei de você. Existe uma diferença de dez anos entre a gente, mas falamos a mesma língua. O que eu gostaria de te ensinar é algo que você vai levar pro resto da vida, só queria que me desse essa chance”, disse a mulher, sem soltar o braço de Briegel, que continuava de costas para ela, “Você tem tudo o que precisa para ter sucesso em qualquer coisa da vida, só precisa de uma injeção de autoestima. Olha, me encontre no campo da Universidade de Heidelberg. Lá existe uma árvore de avelãs, te espero lá, depois de amanhã, às treze da tarde. Prepararei um chá e biscoitos para conversarmos. Vai ser interessante!”.

Mas Heinrich continuava intransigente. Ele não queria mais saber de conversar com aquela mulher de jeito nenhum, mesmo depois da insistência dela. Então o jeito era cortar aquela conversa logo:

“Me solta. Vai me deixar ir se eu disser que sim?”

“Sim. Mas por favor, venha mesmo sem falta depois de amanhã”.

“Tudo bem, eu irei. Estarei lá. Agora, por gentileza, me solta”, disse Heinrich, mas ele mentiu. Ele não tinha o menor interesse em perder seu tempo com aquela mulher. Seu único objetivo era entrar no exército, e ao se abrir sobre seu desejo com aquela estranha, e recebendo o balde de água fria por ela não poder lhe dar o que queria só aumentava a antipatia que sentia por aquela dama.

Heinrich Briegel nem se virou para se despedir. Foi andando até a saída daquele salão, com a certeza de que não iria de forma alguma perder seu tempo batendo papo com aquela desconhecida.

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