Livros 2016 [#5] - Para poder viver


Semana passada eu escrevi um post sobre curiosidades sobre a Coréia do Norte. Contei, entre outras coisas, sobre Yeonmi Park, a refugiada norte-coreana que conseguiu fugir de lá com a mãe e a irmã. E hoje é porta-voz dos milhares que conseguiram fugir desse país horrível, fechado e que faz as pessoas viverem vidas do jeito que vivem.

Comprei seu livro, chamado Para poder viver (In order to live, no original) na sexta passada, depois de ter passado por uma entrevista de emprego (a segunda desse ano, e sim, estamos em maio). Comecei a ler ainda na sexta, e terminei ontem.

De facto, a história dela é muito triste e sofrida. Mas ela conta de uma forma até relativamente leve, isso contando que a vida dela teve um pouco de todo tipo de sofrimento: fome, miséria, morte, prisão, estupros, sequestros e muitas agressões que Yeonmi sofreu na sua vida. Mas ela conta de um jeito que não a vemos como uma coitada, ela conta muito os fatos pelos fatos, conta sobre seus sentimentos, mas não apela pra pobreza de caráter pra passar o sentimento da sua vivência. Tem até um pouquinho de humor e ironia no meio, o que torna a sua escrita ainda mais atraente e vibrante.

Yeonmi nasceu na Coréia do Norte no início da década de 90. Sobreviveu à grande fome que a Coréia do Norte passou depois que a União Soviética ruiu e deixou de enviar recursos para eles. É inimaginável a pobreza que eles viviam, com dois sacos de arroz para quarenta dias, ou ás vezes nem mesmo isso, sem mal conseguir provar uma carne, fruta, ou qualquer outro tipo de alimento que não fossem grãos. Isso sem contar a falta de energia elétrica - que ás vezes durava semanas, e quando voltava mal durava algumas horas e a força caía de novo.

Os detalhes da vida na Coréia do Norte quando lemos é difícil de acreditar que exista um lugar assim. Havia tanto controle das pessoas, que diziam que até mesmo os ratos poderiam ouvi-los, e que o "querido líder", Kim Jong-il na época, poderia até ler a mente das pessoas. Yeonmi viveu em Hyesan, uma cidade perto da fronteira norte com a China, e muitas vezes tinham que sobreviver a temperaturas abaixo de zero sem nenhum tipo de aquecimento. Sua mãe era uma dona de casa e líder comunitária da área, e seu pai, pra tentar levar um pouco de comida pra casa, se arriscava como contrabandista, levando cobre pra China.

Tudo na Coréia do Norte parece que gira em torno de suborno. Não é um socialismo tão bonitinho. Era suborno pra estudar, pra que a polícia os deixasse em paz, para até mesmo um atendimento médico. Yeonmi conta que eles mal tinham alimento pras necessidades diárias, e sentia o cheiro de macarrão vindo do outro lado do rio que separava a Coréia do Norte e a China do outro lado, farta de alimentos.

A fuga dela é com muito mais detalhe do que em qualquer matéria ou vídeo que eu vi. Mal tinha passado um capítulo dela na China e a mãe dela já tinha sido estuprada quatro (!) vezes por atravessadores, que as pegaram pra serem traficadas pra chineses casarem com elas. Yeonmi explica que como na China uma mulher nascer é algo ruim, muitas vezes até abortada, existe um número muito maior de homens do que mulheres no país. Logo, norte-coreanas que caso fossem descobertas seriam deportadas (e depois executadas) de volta à Coreia do Norte, eram obrigadas e se instalarem em famílias chinesas rurais. E óbvio que não era uma vida boa, uma vida semi-escrava apenas para meios de procriação.

Yeonmi pra poder viver acabou aprendendo chinês e ela era obrigada a trabalhar de interprete para os traficantes humanos que compravam norte-coreanas que queriam fugir. Mesmo tendo 13 anos, acabou sendo estuprada pelo "marido" dela, numa das cenas mais chocantes que já li num livro. Isso até o momento em que seu "marido" acaba quase falindo e ela acaba se juntando com um grupo de missionários chineses cristãos ilegais que a ajudaram a atravessar o Deserto de Gobi, à noite, no inverno, pra chegar na Mongólia e buscar refúgio na embaixada sul-coreana pra ser enviada enfim pra liberdade.

O pior é que os soldados mongóis que as acham as ameaçam de devolve-las pra China, e todas ameaçam se matar ali mesmo, e os soldados filhos da puta desistem disso (cara, que agonia essa parte, cacete!).

E por fim o livro mostra como foi se acostumar como uma cidadã na nova terra: Coréia do Sul. Aprender palavras novas do vocabulário que não existia na Coréia do Norte (como handbag, shopping, e gangnam style), a luta pra poder estudar e conseguir chegar até mesmo na faculdade, e as coisas que aconteceram depois, inclusive o reencontro com sua irmã mais velha, que havia deixado a Coréia do Norte dois dias antes dela e acabou sendo traficada para o sul da China, sofrendo horrores na mão dos atravessadores, e o encontro das duas sete anos depois, na Coréia do Sul.

Enfim, esse livro foi sem dúvida um dos melhores que eu já li até hoje. Vai pra estante dos livros que mais me tocaram o coração. Não dá pra resumir num post, tem que ler mesmo.

E o melhor de tudo: tem um final feliz. Hoje Yeonmi faz parte da organização chamada LiNK (Liberty in North Korea), uma organização humanitária que luta pra ajudar outros refugiados norte-coreanos que estão na mão de atravessadores. Sua fuga, e as denúncias que ela fez sobre o que os norte-coreanos sofriam dizem que deixou o Kim Jong-un puto da vida. Esperamos, assim como ela, que chegue logo um dia em que a Coréia será uma só novamente, e não teremos mais tanto sofrimento do lado de lá do paralelo 38, que divide o país há mais de meio século.

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