Amber - Prólogo

15 de abril de 1937

“Fyodorov…”, disse um homem, quase num sussurro, como se estivesse nas suas últimas forças, “Você confia em mim?”.

O homem que disse isso estava amarrado em uma cadeira, na frente de uma mesa, com dois copos de gim na sua frente. Ele havia sido espancado bastante, e o sangue, já escurecido no seu queixo, mostrava que ele havia no mínimo um corte no seu lábio. Estava claramente sendo torturado. Era um homem que tinha um cabelo loiro médio com alguns fios brancos, bem baixo e jogado pra trás estilo militar, aparentando por volta dos quarenta anos, olhos azuis, mas seu corpo ainda estava em boa forma.

Seu olhar se encontrou com o de outro homem, que estava amarrado e jogado a poucos metros dali, com os braços atados em um laço forte, e essa corda amarrada numa pilastra da sala. A gangue dos torturadores estavam claramente em busca de informação. E estavam torturando um deles para que o outro revelasse tudo o que estavam procurando.

“Fyodorov, por favor”, disse o homem amarrado na cadeira, “Vamos logo, acaba com isso. Eu não aguento mais…”. Logo após terminar a frase um dos torturadores chegou e deu um forte soco no seu abdomen. Ele gritou de dor, mas antes que ele pudesse contorcer direito o seu corpo levou um chute forte no rosto.

“Boris!!”, gritou Fyodorov, “Por favor, não façam nada com ele, é a mim que vocês querem, deixem meu amigo ir!”.

Porém, os torturadores não pareciam estar ali para conversa. Toda a conversa já estava em curso há horas, e a paciência deles estava chegando ao fim. Boris, o espancado, estava quase desmaiando, totalmente debilitado e sangrando. E do outro lado, Fyodorov, estava completamente suado, com marcas da corda nos seus punhos, seu cabelo cinza totalmente desgrenhado, e seus olhos vermelhos de um misto de fúria e medo. Seu corpo tremia, e cada centímetro da sua pele estava arrepiada. Estava no limite.

Havia um grande espelho na sala. Um espelho grande que praticamente cobria uma parede inteira. Do outro lado desse espelho estava outro homem, alemão, com o cabelo loiro claro, jogado pra trás com um topete e olhos verdes, pele ligeiramente bronzeada e barba por fazer, prestando atenção em tudo aquilo sem que ninguém do outro lado visse que ele estava observando tudo do outro lado do espelho. Estava junto de mais três oficiais, mas era claro que todos eram simples subordinados. Aquele que estava sentado na mesa, com um microfone na sua frente, estava com várias fichas do seu lado. Estava tão fixado observando a cena que mal viu quando um dos seus funcionários colocou um prato do seu lado.

“Aqui estão seus amanteigados vienenses, senhor Schultz”, disse o subordinado.

“Ah, obrigado!”, disse Schultz, como que saído de um transe, colocando um na sua boca, “Puxa, estão fresquinhos! Mas acho que não vou poder comer tudo isso. Acho que falta pouco pra sair o nome”.

Schultz apertou o botão do microfone e disse através dele para os torturadores:

“Por favor, injetem novamente uma dose de tiopental em Fyodorov”, ordenou Schultz no microfone, e o áudio foi apenas escutado no retorno que os torturadores tinham no ouvido.

Boris estava praticamente inconsciente, lutando contra as dores amarrado na cadeira. Fyodorov, em pânico, do outro lado, amarrado na pilastra grosseiramente, observava a tortura que estavam fazendo com seu amigo e estava cada vez mais em pânico. Seu corpo mostrava que ele estava sob efeito de muita adrenalina, com dificuldades pra respirar, ansioso e com as pupilas dilatadas. O local parecia mesmo um cativeiro: uma luz incandescente fraca, local todo vandalizado, com cheiro de urina e sujo, muito sujo.

Tiopentall sódico. Uma droga descoberta em 1915 por um médico americano, doutor Robert House, que viu que grávidas sob efeito desse sedativo perdiam o controle de si mesmas e falavam várias coisas que lhes eram particulares. Não era uma droga 100% eficaz, e Fyodorov havia sido injetado com isso três vezes - e em nenhuma delas havia mostrado que iria ceder. Era realmente um soviético fora do comum em resistir tão bem à tortura do famoso soro da verdade. Porém sua fraqueza maior estava lá: realmente parecia ter um laço forte com o tal Boris. Amizade e confiança totais em seu amigo.

“Não… De novo não, por favor!”, disse Fyodorov ao ver a seringa sendo preenchida com o tiopental, “Não! Não! Não! Não!!”, gritava Fyodorov de desespero ao ver que o torturador com o rosto e o corpo inteiro coberto de preto estava se aproximando dele com a seringa erguida.

Nessa hora Boris, do outro lado, olhou com o rosto todo sangrando em direção a Fyodorov. Durou apenas alguns segundos, mas o seu olhar se encontrou com o de Fyodorov, que na mesma hora parou de gritar, mas continuava com a expressão de medo e espanto, com medo de injetarem de novo nele o que estava torturando-o por dentro.

“Fyodorov, por favor, a hora é agora. Dê a eles o que eles querem!”, disse Boris, e nessa hora o torturador, também com trajes pretos e rosto coberto sacou uma arma e apontou na testa de Boris, “Por favor, meu amigo… Vamos sair logo daqui. Eu te suplico! Eu te imploro!!”.

Eles iam atirar na cabeça de seu melhor amigo! Fyodorov, duplamente em pânico - tanto pela seringa com o soro da verdade, como do medo eminente de perder seu amigo - soltou um grito abafado e caiu em lágrimas. Isso assustou todos na sala.

“Isso, vamos meu amiguinho, fala logo!”, disse Schultz, na sala anexa, já com papel e caneta em mãos, ouvindo tudo do outro lado do espelho.

“Sarkin… Abner Sarkin…”, disse Fyodorov. Schultz não perdeu tempo e anotou num papel, e puxou as fichas ao seu lado e buscou rapidamente a letra ‘S’. Sem dizer nada abriu o arquivo e rapidamente achou. Sarkin estava logo numa das primeiras folhas.

“Bingo!”, disse Schultz, “Então é esse o cara que estávamos atrás!”.

Havia passado apenas alguns segundos desde que Fyodorov havia dito o nome. E Schultz já tinha tudo o que ele precisava. Calmamente ele apertou o botão e deu a próxima ordem na escuta dos torturadores.

“Ok, pessoal. Missão concluída. Podem botar o nosso amigo pra dormir”, disse Schultz.

Fyodorov viu o torturador deixando a seringa na mesa e voltando em sua direção. Ainda tomado pelo pânico sem entender nada, viu o homem na frente do seu amigo Boris erguer a arma pra aplicar no seu amigo uma potente coronhada. Foi a última imagem que Fyodorov viu, pois logo após ver isso, o torturador lhe aplicou um potente soco que o derrubou instantaneamente.

“Coronel!”, gritou Schultz, abrindo a porta apressado, “E aí meu amigo, tá inteiro?”.

“Óbvio que estou, cara. Pegou o nome que ele disse?”, disse o tal Boris, que estava amarrado na cadeira, sendo solto pelos falsos torturadores. Aquilo era tudo uma farsa, um teatro pra simular uma sessão de tortura para fazer Fyodorov revelar o que eles estavam buscando.

E o tal Boris, obviamente, não era Boris coisa alguma. Seu nome real era Roland Briegel.

“Sim. Estava na lista dos suspeitos. Já podemos entregar ao quatro olhos”, disse Schultz, se referindo a Himmler. A desmontagem da cena foi rápida, várias pessoas surgiram no local, e dois homens prontamente pegaram Fyodorov inconsciente e o levou embora, carregado. “Escuta, que atuação de primeira, hein! Pena que o Oscar já foi, senão eu teria gravado tudo e você ganharia com certeza!”.

“Ah, conta outra!”, riu coronel Briegel, “Aquele filme que ganhou esse ano, o ‘Ziegfeld - O criador de estrelas’, era um lixo mesmo. Eu dormi no cinema, acredita? Mas não acho que o nome ‘Roland Briegel’ soaria melhor que ‘William Powell’ no cartaz do cinema. Powell vende mais”. Ao terminar a frase, um dos seus agentes entregou a ficha do homem que Fyodorov havia revelado.

“Ótimo. Já temos o nome do nosso homem. Abner Sarkin”, disse Briegel, olhando pro papel, ”Bom, eu vou me limpar, esse gosto de sangue artificial é amargo pra cacete. E tirar esse disfarce de ‘Boris Ivanov’. Preciso levar janta pra Alice”, nessa hora Briegel olhou nos olhos de seu amigo Schultz e sentiu um cheiro de algo que ele conhecia bem, “Peraí, seu pilantra… Esse cheiro… Por acaso você tava comendo os Spritzgebäck que eu encomendei?”.

Nessa hora Schultz olhou pra cima e deu um gargalhada sonora. Eram os tais amanteigados vienenses que ele estava devorando na sala anexa.

“Ah, qual é! Só comi uns três só, hahaha! Ainda bem que você foi bem rápido e arrancou o nome logo, senão eu ia comer tudo. Tem uma caixa inteira lá. E outra, eu fiz um baita favor pra você! Eu experimentei pra saber se estava envenenado. E olha só!”, disse Schultz, apontando pra si mesmo com as duas mãos.

“Olhar o quê?”, disse Briegel, incrédulo.

“Eu estou vivinho da silva!”, disse Schultz, debochando. Briegel ficou apenas encarando Schultz, com olhar sério, e logo depois disso seu amigo o abraçou de lado e deixou a sala para os seus agentes terminarem a limpeza.

“Escuta, coronel, a Alice é crescidinha já. Vamos tomar uma breja, comer uns bitterballen, pra comemorar! Conheço um bar com umas holandesas garçonetes gatíssimas! E depois você vai lá ver a sua filha. Por minha conta! Quem foi que ganhou o Oscar mesmo esse ano de melhor ator? Foi o Mr. Deeds, não? Eu gostei desse! E você foi bem melhor, de verdade, cara!”, disse Schultz.

“Não, seu panaca. Quem ganhou foi o que fez o Louis Pasteur lá do… Ah, deixa pra lá. Esqueci o nome do filme…”, concluiu Briegel, enquanto saía abraçado da sala junto de seu amigo Schultz.

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