Amber #66 - Emboscada.

12 de setembro de 1939
13h27

Entrar na Polônia não foi problema, o nome do coronel Briegel era capaz de abrir portas até mesmo aqui, inclusive a porta (e o porte) de um carro militar que Alice e Liesl usavam para cruzar o território polonês. As cenas que elas viam ali eram muito piores do que elas sequer poderiam imaginar. Essa batalha não era nada do que elas haviam ouvido falar sobre aquela guerra de trincheiras que havia acontecido anos atrás, onde nenhum dos exércitos avançavam e muitos acabavam morrendo. Usar o método da Blitzkrieg não permitiu nenhuma resposta a tempo do exército polaco, que estava sendo invadido pelas frentes nazistas pelo norte, oeste e sul.

“Minha nossa, olha aquilo, Liesl!”, disse Alice, freando o carro, apontando para os escombros de um edifício. Liesl não sabia que Alice ficaria tão aterrorizada com as cenas que elas veriam na Polônia sendo totalmente aniquilada. É verdade que Liesl também ficava abalada, não seria humano se não ficasse minimamente transtornada com o que via. Aquela era a sexta pausa desde que elas haviam cruzado a fronteira. E Alice apenas parava completamente o carro quando ficava realmente abalada com algo que via.

Liesl viu o edifício completamente destruído no vilarejo, e no chão, destruída, havia uma placa. Liesl tinha uma pequena ideia da língua polonesa, e apesar da destruição da sinalização, era possível ler algo como “szkoła”.

“Não é possível. Uma... Escola?”, disse Liesl, sentindo uma pontada dentro de si, tomada pela emoção, “Nem mesmo escolas eles pouparam?”.

“Parece que guerras hoje em dia tem esse objetivo mesmo. Não poupar nem mesmo civis. Nem mesmo escolas, onde haviam crianças estudando. Ninguém”, Alice nessa hora virou o olhar para Liesl, a fitando nos olhos, “Guerras estão se tornando cada vez mais e mais cruéis. Eram famílias, Liesl, famílias!”, Alice pegou na mão de Liesl, apertando com força, “Não eram soldados que saberiam se defender. Tudo isso para causar terror, causar mais e mais derramamento de sangue. De mulheres, crianças e idosos, todos mortos, da maneira mais covarde possível”.

Por mais que Alice tentasse segurar suas lágrimas, ver aquela escola em escombros, com fumaça saindo por conta de inevitáveis incêndios, foi a maior prova de força até então. Segurando no máximo as lágrimas, Alice acabou inevitavelmente derrubando uma lágrima, que escorreu pelo rosto, borrando a maquiagem no rosto que havia colocado para parecer uma pessoa branca.

Liesl pegou um lenço de bolso que limpou a lágrima de Alice. Deu pra ver um pouco da maquiagem saindo no pano, e Liesl então a mostrou. Aquele era o momento que Liesl deveria ser forte, e por mais que ver aquela mulher que era como uma irmã pra ela ficar abalada, viu que era a vez dela ser o ombro que seguraria a amizade.

“Acho que é hora de limpar todo esse pó branco da sua cara, certo?”, disse Liesl, sorrindo, tentando mudar de assunto para ajudar Alice, “Essa não é a sua cor. Sua cor é muito mais bonita que essa cor branca morta, sem graça”.

As duas ouviram passos vindos da parte de frente do carro. Estava indo em sua direção enquanto Alice esfregava o rosto com um pouco de água do cantil, tentando tirar aquela maquiagem. Ao virarem o rosto por conta do barulho viram que era uma menininha, de talvez uns quatro ou cinco anos, correndo até elas.

Por um segundo aquela cena as alegrou. A criança parecia estar perdida ou algo do gênero, e Liesl abriu a porta e a pegou no colo. Não chorava, nem nada do gênero, era uma menina extremamente dócil. Estava cheia de baba, com o nariz escorrendo, e tinha um pequeno chocalho na mão que ela não soltava. Ao ficar no colo de Liesl ela, que estava bem inquieta, ficou calma.

“Minha nossa, olha só isso!”, disse Liesl, enquanto segurava a menina no colo, “Da onde saiu esse anjinho?”.

Alice sorriu ao ver como Liesl sabia segurar bem a criança e acalma-la. Mesmo sem nunca ter tido filhos, Liesl parecia mostrar uma excelente aptidão para tal.

“Nossa, me veio uma visão linda na minha cabeça agora vendo você com essa bebê no colo. Você tem jeito pra ser mãe, Liesl”, disse Alice. Nessa hora Liesl ficou corada, olhando pro bebê, “Será que ela é órfã? Onde está a mãe dessa menininha?”.

Do nada saiu de um lugar que elas não viram uma mulher, correndo e gritando algo que soava como “Naziści! Naziści!”. Liesl ficou mais assustada com o grito do que com o que a mulher dizia. Claramente ela parecia ser a mãe da menina, pois ela parecia querer ir pro colo da mulher ao vê-la se aproximando.

Liesl estava pronta para entregar a criança sem problemas, e quando a mulher enfim teve a criança em seu colo empurrou Liesl com violência para trás, que, tomada pela surpresa, acabou caindo pesadamente no chão de terra suja, ao lado do carro. Ainda assustada Liesl ficou observando a mulher até perde-la de vista, enquanto ela corria com a criança no colo, abraçando-a firmemente. Com certeza era uma polonesa que havia descuidado da criança e a perdido.

“Nossa, não precisava tanto”, disse Liesl, se erguendo, batendo na sua roupa para tirar o excesso de terra, “Se bem que esses trajes não ajudam muito. Ela não hesitou em nenhum momento. Não há nazistas que segurem uma mãe desesperada, não é mesmo?”.

“Infelizmente as pessoas não conseguem ver nossas reais intenções. É apenas um uniforme. Não estamos de forma alguma apoiando Hitler, ou seus preceitos idiotas”, disse Alice, tentando acalmar Liesl, “Não foi culpa dela, Liesl. Ainda bem que fomos nós que encontramos a criança. Esses soldados marcham com tanto ódio que acho que poderia acontecer o pior se fossem outros. Por mais que fosse um bebê, por ser polonesa veriam algo pior que um animal”.

Liesl subiu no carro e Alice continuou dirigindo. De acordo com seus cálculos estavam já perto de Cracóvia, apenas alguns minutos de viagem até lá. Na descida depois de passar de um pequeno aclive Alice estacionou o carro. Elas sequer haviam dormido, ambas estavam exaustas.

“Vamos fazer uma pequena pausa? Não temos muita gasolina. Se acabar no meio do caminho e estivermos cansadas acho que vamos ter problemas se precisarmos correr”, disse Alice, preocupada, tirando a chave da ignição, “Acho que tenho alguns sanduíches que preparei e um pouco de cerveja pra viagem. Vou preparar nosso almoço aqui, sim?”.

“Tudo certo então. Vou patrulhar a vizinhança. Venho já!”, disse Liesl, armando seu rifle Martini-Henry. Ela buscou um lugar alto, e achou um sobrado em ruínas perto dali. Não era muito alto, mas estava no topo de um morro. O céu cinzento não parecia iluminar com muita vida a paisagem morta na sua frente. Com seus binóculos Liesl viu Cracóvia ao fundo, completamente em ruínas, alaranjada por conta das imensas labaredas que a consumia. O cheiro de cadáveres ao redor era péssimo, muitos já em estado de decomposição inicial. Muita poeira vindo dos escombros, pedaços de madeira e fragmentos de paredes espalhados.

Minha nossa. Eles destruíram absolutamente tudo, sem dó nenhuma de nada nem ninguém, pensou Liesl. Na sua frente era possível ver um celeiro, e ela viu uma donzela loira de cabelos presos, trajando um vestido preto com babados em branco e óculos redondos entrando num celeiro abandonado. Ela parecia estar levando um pão e um pote na mão, possivelmente geleia. Liesl presumiu que ela fosse polonesa.

Do seu lado direito viu um pelotão de quatro soldados nazistas caminhando. Eles pareciam estar falando alto de propósito, como se estivessem amedrontando a já fragilizada população local, mostrando que eram os reis daquele local.

“...E aí eu peguei ela pelas costas e foi bem no cuzinho!”, disse um dos soldados, fazendo gestos obscenos, “A menina chega chorava, mas eu não tava nem aí! Vocês deviam ter visto! Essas polonesas são todas umas biscatinhas!”.

“Ei, mas o comandante não disse pra não misturarmos sangue ariano com polonês?”, disse o outro soldado.

“Mas foi anal, cara! No cu não engravida!”, disse o outro, tecendo um comentário machista e desnecessário.

Liesl fez um olhar de nojo para aquele grupo de nazistas falando alto e virou seu olhar para o outro lado, o lado esquerdo do celeiro central. Viu então que uma mulher estava correndo junto de uma criança. Pareciam desesperados. Mas uma coisa incomodava ainda mais Liesl: havia outro pelotão atrás da senhora, três armados na frente e outros dois no fundo que ela não conseguia ver o rosto.

O celeiro tá bem no meio dos dois pelotões! Se os dois pelotões se encontrarem no meio vai sobrar para aquela mulher que está escondida lá! Vamos Liesl, pensa... Você tem que fazer alguma coisa!, pensou Liesl, enquanto tentava traçar algum plano. Ela tinha ambos os pelotões na mira, mas se provocasse um provavelmente seria difícil impedir o outro, o tempo estava passando e ela tinha que fazer algo!

Enquanto isso Liesl com seus binóculos viu uma cena de carnificina de desenrolar na sua frente: O filho que corria junto da mãe depois de tropeçar foi brutalmente baleado, e a mãe, completamente em estado de choque, arrastava o corpo da criança como se ainda houvesse uma esperança de revivê-lo. Liesl não viu, mas ouvia os gritos da mulher desesperada enquanto ela batia na porta do celeiro. Aparentemente ela não estava conseguindo entrar. Liesl viu o momento em que um dos três soldados da frente despejou balas contra a pobre mulher que devia estar na porta.
Liesl viu então que o pelotão da direita, que não havia visto que havia outro pelotão de nazistas na frente ficaram assustados ao ouvirem os tiros vindo do outro lado. Rapidamente colocaram umas armas em punho e foram caminhando na direção do celeiro.

Droga! Não posso perder mais uma vida! Vou ter que arriscar na sorte, pensou Liesl que, com o rifle Martini-Henry em mãos mirou na cabeça do soldado que estava falando que havia estuprado uma polonesa antes. Foi um tiro certeiro, bem na nuca, ele caiu morto na hora. Os homens olharam assustados na direção de Liesl, mas o som foi tão alto que os soldados do lado esquerdo foram avançando em direção do pelotão da direita.

Liesl se apressou e foi até outra janela, uma que não era possível que o pelotão da direita pudesse a enxergar. Mirou em um dos três soldados da esquerda e novamente disparou, acertando-o na cabeça também, com precisão quase que cirúrgica. A Martini-Henry era um rifle antigo, que praticamente ninguém usava mais naquela época, apenas um disparo poderia ser feito por vez. Ao disparar contra o pelotão da esquerda, Liesl se abaixou e ficou apenas torcendo para que seu plano desse certo.

Eles com certeza estão com medo. Esses soldados alemães mal devem ter entrado em uma guerra, não devem ter muita experiência, e acham que os poloneses escondidos em todos os cantos estão com emboscada para mata-los. Se eles forem burros o suficiente vão avançar depois do celeiro e vão começar a trocar tiros entre si, pensou Liesl, e foi exatamente o que aconteceu.

Soldados alemães ainda não tinham realmente tanta experiência em combate. E poloneses sempre se escondiam deles a todo custo, e embora o ódio contra esse povo era imenso, era mais que justificado quando eles estavam em seu território: ao contrário dos judeus, os poloneses sempre que viam uma chance de criarem emboscadas contra soldados alemães eles o faziam, deixando os soldados nazistas achando que estavam sendo perseguidos e observados por poloneses à espreita em cada esquina.

Um tiroteio então começou, os soldados sequer tiveram tempo ou cabeça para se darem conta que estavam atirando em seus próprios compatriotas. Apesar de um pelotão estar com um soldado a menos, os quatro entraram num combate feroz, atirando contra eles mesmos. Até que talvez dois ou três, feridos, olharam pro outro lado e viram que não eram poloneses. Estavam atirando contra eles mesmos. Mas estavam já feridos e baleados no chão, incapazes de fazer qualquer coisa.

Ainda haviam outros dois soldados do pelotão da esquerda, os dois que estavam caminhando em separado do resto do pelotão. Ainda estavam a uma distância grande, Liesl observou e pensou que se corresse conseguiria entrar no celeiro e tirar a mulher de lá.

E foi exatamente o que ela fez, indo pela porta na posição oposta daquela que era trancada, nos fundos do celeiro. Curiosamente a porta estava aberta. Ao entrar no local viu a mulher encostada no cantinho, abraçada com suas pernas, sentada no chão.

“Vamos, vamos, vamos logo, por aqui!”, disse Liesl, sem saber se ela falava alemão, “Rápido, rápido, rápido!”.

A mulher a segurava, desesperada achando ela estava querendo a matar. Chorava e esperneava com a boca aberta dizendo coisas em polonês que Liesl não tinha a mínima ideia do que ela queria dizer. Liesl tentava a acalmar com gestos, falando para saírem rápido de lá.

“Eu vim te salvar, vamos logo! Por aqui!”, disse Liesl, puxando a mulher, que apesar de ser mais alta que ela, era muito mais fraca fisicamente que ela, que havia passado por treinamento, “Fala alemão? Me entende?”.

A polonesa balançou positivamente a cabeça, mostrando que havia entendido. Mas já era tarde. Os gritos haviam atraído os dois soldados até aquela porta aberta. E Liesl ficou ainda mais assustada quando viu que conhecia o rosto de um deles muito bem.

“Sundermann? É você?!”, disse Liesl, assustada ao reconhecer o rosto de um dos soldados.

Comentários

Postagens mais visitadas