Amber #70 - Com a chave, Alice viu um lindo jardim, mas ao virar viu uma garrafa escrito "Beba-me".

13 de setembro de 1939
15h28

Anastazja quase não abria a boca. E mesmo quando abria a boca, ela sempre falava primeiro com Alice, e nunca se dirigia para a Liesl, que por sua vez essa pensava á todo momento se havia feito alguma coisa. Seu corpo ainda estava dolorido por conta da luta travada com Sundermann, especialmente o pescoço. Pegou nas coisas de Alice um pequeno espelho para ver seu reflexo. Por meio dele viu o ferimento no lado superior esquerdo da sua testa. Alice havia usado uma agulha do kit médico que elas haviam trazido e dado alguns pontos. Parecia um trabalho de um profissional da saúde, havia ficado excelente. Liesl levou sua mão e tocou o curativo, sentindo um frio no estômago com o que veio na sua mente: com certeza aquilo iria deixar uma cicatriz. E justamente no seu rosto, o que pra uma mulher era algo terrível.

“Ei, já disse pra não tocar nos pontos! Vai acabar soltando!”, gritou Alice, vendo Liesl no retrovisor. Anastazja, que estava sentada no banco da frente do jipe com Alice virou o rosto e olhou pra Liesl, que também a olhou nos olhos. Vermelha, tomada pela timidez virou o rosto pra frente. Aquilo nos olhos de Liesl parecia uma forma que a polonesa havia encontrado pra superar a timidez entre as duas.

“Ok, perdão, então, ‘mamãe’ querida”, brincou Liesl, chamando Alice de mamãe. Liesl pôde ver o sorriso dela no retrovisor, “Mas e você, Anastazja? O que você faz mesmo?”.

“E-eu sou u-universitária”, disse Anastazja, gaguejando de timidez, “M-meus pais são de Varsóvia”. Anastazja estava vermelha como um pimentão.

“Entendi. Desculpa fazer essas perguntas, é que dá pra entender que você esteja tímida. Quantos anos você tem?”, perguntou Liesl.

“Dezenove”, respondeu Anastazja, praticamente sem gaguejar.

“Poxa, que furada que eu fui me meter!”, disse Liesl, virando a cabeça pra baixo e balançando com descrença, “Eu sou a mais nova daqui e tenho que defender vocês duas, mais velhas. Fala sério!”, na hora que Liesl brincou Alice deu gargalhadas enquanto estava na direção do carro. Liesl depois deu algumas risadas e todas enquanto riam olhavam pra Anastazja. Começou com um pequeno sorriso, mas em pouco tempo a polonesa estava mais à vontade, e também estava dando risada com as duas. Foi um dos poucos momentos de descontração nessa viagem pela Polônia, e as duas se sentiram mais leve depois disso. Depois que o silêncio imperou depois das risadas, Liesl prosseguiu: “Estamos indo pra Varsóvia, podemos deixar você com seus pais, se estiverem por lá. Estamos buscando um cientista tcheco que vive daqueles lados, talvez você o conheça, já que você é universitária também”.

Liesl vasculhou as suas coisas, buscando a pasta de Briegel que tinha os dados e endereço do Tomas Kovač, incluindo uma foto dele. Entregou então nas mãos de Anastazja, que leu tudo, fazendo uma cara pensativa.

“Sinto muito, Liesl. Não tenho ideia de quem seja, nunca ouvi falar dele em Cracóvia. Eu normalmente só vou de vez em quando pra Varsóvia, e tem muita gente, não tenho ideia de quem seja esse Kovač”, disse Anastazja, devolvendo a papelada para Liesl, que tratou de guardar de volta.

“Sem problemas! Foi apenas um palpite mesmo. Melhor perguntar do que ficar na dúvida e eventualmente você saber. Aí sim seria complicado, uma falha miserável!”, explicou Liesl. Ao terminar, viu que Anastazja novamente sem dizer nada virou o rosto pra frente, vendo a estrada. Liesl sentiu que devia falar algo, e disse: “Pode confiar em nós, Anastazja. Nós somos as heroínas dessa história”.

Anastazja viu a sinceridade no olhar de Liesl. Alice, dirigindo o carro apenas observava. A polonesa sentiu que era a vez dela dizer algo também:

“Eu te devo desculpas, Liesl. Você tá se esforçando bastante pra ser gentil. É que isso tudo é tão diferente. Eu nunca vi uma arma antes, e vendo você com esse rifle de atirador de elite imenso, nossa, é mais aterrorizante do que imaginava. Mas eu juro que vou me esforçar. Não quero ser um estorvo pra vocês, eu sou toda atrapalhada!”.

“Ei, sem essa, Anastazja! Você não é estorvo coisa alguma. Se a gente pudesse a gente ajudaria todo mundo, mas infelizmente a população daqui está muito abalada pra confiar em qualquer pessoa. Em poucas semanas o país está sendo dizimado por um povo intolerante e burro. Por isso nem que seja apenas pra uma única pessoa, nós queremos fazer a diferença”, disse Liesl, com empolgação na voz, “Vamos te levar pra Varsóvia e você vai ficar com seus pais, segura. Prometemos isso. E quanto a isso aqui”, nessa hora Liesl pegou seu rifle Martini-Henry, e tirou uma lenço grande branco, enrolando a arma nele, “Finge que tô carregando, sei lá, um atiçador de lareira! Acho que se você não tiver que encarar toda hora o cano da arma vai ficar mais confortável”.

Era óbvio que Anastazja sabia que a arma estava por debaixo daquele pano. Mas essa atitude da Liesl a fez ganhar ainda mais confiança na austríaca. Era a forma dela de tentar fazer ela se sentir mais confortável, e só essa intenção já era mais do que o suficiente. Esse esforço para ser gentil era envolto de sinceridade, como o pano que cobria aquele rifle tão poderoso. Liesl poderia ser uma verdadeira guerreira mil vezes mais forte que Anastazja, no ponto de vista dela. Mas esses atos de bondade eram como o lenço que envolvia e escondia a arma: mostravam que essa força que Liesl tinha era para proteger os outros.

As três continuaram a viagem pelas estradas praticamente destroçadas. Muitas vezes tinham que passar com muito cuidado por conta dos soldados, evitando tanto poloneses quanto alemães, desviando rotas e usando outras táticas. A viagem na Polônia era para ser fácil, mas elas não deixavam de ziguezaguear dentro do país, tornando as curtas distâncias tão longas quanto desbravar um continente.

Acharam uma pequena vila com três casas ainda de pé, abandonadas. Se refugiaram em uma casa, onde arranjaram um pouco de comida e até uma lareira, onde puderam se sentir mais confortáveis depois que o fogo foi aceso. Liesl e Alice foram dormir, e Anastazja viu que uma das casas havia diversos aparelhos fotográficos antigos, e ficou lá fazendo algo que as duas, de tão exaustas, não puderam acompanhar, indo dormir antes, deixando Anastazja sozinha.

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14 de setembro de 1939
06h58

Alice segurava em sua mão a chave da casa abandonada em que estavam alocadas. Na mesma gaveta havia encontrado um mapa com todas as rodovias e caminhos da Polônia, uma coisa extremamente útil dado o momento que elas estavam passando. O sol já havia raiado, e ela, ao passar a chave na porta, abriu um pouco, o suficiente para que pudesse espiar o lado de fora. Viu o sol nascendo no leste, e um grupo de pessoas caminhando, provavelmente de umas dez ou quinze pessoas, junto de alguns dois soldados poloneses, numa espécie de caravana.

Ao consultar o mapa e a bússola viu que a direção que eles iam era o sul. Liesl havia acabado de acordar e viu Alice lá, encostada na pequena abertura da porta, verificando a bússola e o mapa. Ao se aproximar viu que ela observava a caravana de pessoas caminhando. Alice a viu se aproximando, e ao ver Liesl sorriu.

“Bom dia, Liesl. Dormiu bem?”, perguntou Alice.

“Bom dia! Puxa, nada como não precisar acampar. Nem lembrava mais como era ter passar uma noite deitada numa cama confortável”, disse Liesl, se aproximando de Alice, “Sabe pra onde aquele povo ali tá indo? Aliás... Viu a Anastazja?”.

“De acordo com o mapa e essa bússola estão indo pro sul. E a Anastazja chegou meio tarde, ficou até de madrugada com um lampião fazendo alguma coisa na casa vizinha. Mas ainda tá dormindo, não tive coragem de acorda-la”, disse Alice, consultando sua memória em resposta à Liesl, “Essa estrada que eles vão tomar é em direção da Romênia”, nessa hora Alice olhou pra Liesl e voltou sua cabeça pra cima, pro céu que estava na direção da onde aquele povo todo caminhava, “Parece um sinal dos céus. Que naquela direção está a liberdade deles”.

“Sim. Atrás da gente, nessa direção, está Varsóvia”, Liesl colocou a mão nos ouvidos, como se tentasse ouvir algo que estivesse longe, “Explosões. Não imaginava que começariam tão cedo. Daquele lado está o verdadeiro inferno, e na nossa frente um caminho para a liberdade, para fora daqui”.

Alice suspirou, olhando pra Liesl.

“Gostaria de encolher, ser uma mosca, e ir voando junto com eles. Dá muito medo ficar aqui e do que possa acontecer se irmos para aquela direção”, disse Alice, apontando para o outro lado da casa, na direção de Varsóvia.

“Bem, acho que isso talvez possa te fazer esquecer um pouco”, disse Liesl, tirando uma garrafa de cerveja, a última que Alice havia trago da Alemanha com os suprimentos, “E não quero ouvir que você não vai querer virar essa garrafa, vou até fazer uma coisa pra garantir que você beba ela todinha”, disse Liesl, pegando um pincel e molhando num guache que estava largado em uma mesa, “Pronto. Não dá pra deixar de obedecer algo que está tão imperativo”.

Ao pegar a garrafa Alice viu que Liesl havia escrito em letras garrafais: “Beba-me”.

“Que piada, só você! Entregando pra uma Alice uma garrafa escrito ‘beba-me’, só você mesmo, sua tonta!”, disse Alice dando risada, tirando a rolha e dando dois longos goles, direto da boca da garrafa. Após soltar um sopro de alívio, Liesl fechou a porta sem fazer barulho.

“Melhor deixar isso fechado, eles podem acabar vendo que tem gente aqui. E eu não conseguiria levantar uma mão contra poloneses que acham que somos nazistas”, disse Liesl, após fechar a porta, “A referência na garrafa é por conta minha! Pra descontrair um pouco!”.

“Uma pena que depois de beber eu não diminuí de tamanho como no conto”, disse Alice, e as duas caíram novamente na risada.

Anastazja ao caminhar para a entrada da casa e ver as duas deu um sorriso sincero e profundo. No meio de toda aquela destruição e tristeza as duas haviam conseguido arranjar uma situação em que podiam sorrir e por aquele ínfimo momento esquecer de tanta desgraça que haviam ao redor delas. A polonesa já imaginava que havia tido muita sorte de encontrar com aquelas duas, mas agora ela tinha ainda mais convicção disso. Segurando algo com suas mãos atrás Anastazja surpreendeu as duas no meio da risada, ficando parada na frente delas, como uma criança que havia aprontado uma surpresa.

“Ah, Anastazja! Desculpa se te acordamos com nossa risada!”, disse Alice, se desculpando.

“Não tem problema!”, disse Anastazja, altivamente, sorrindo.

“Puxa, enfim superou a timidez! Que bom!”, disse Liesl, feliz em ver que ela estava bem, “Mas o que você tem aí atrás de você?”.

“Eu passei a noite fazendo isso. Acho que vai te ajudar se você acoplar naquele seu rifle de atirador de elite”, Anastazja disse, mostrando o que havia atrás dela, “É um escopo. Eu achei umas câmeras velhas na casa vizinha, provavelmente era um fotógrafo. Desmontei, achei alguns canos velhos, colei tudo e fiz. Tem uns imãs pra segurar ele no cano da arma, assim você vai acertar bem de longe!”.

Liesl não acreditou no que viu. Ao colocar aquilo, apesar do acabamento caseiro, era extremamente eficaz. Ao montar no cabo da sua Martini-Henry e apontar para o longe, conseguia ver até mesmo os aviões sobre Varsóvia, prontos para mais uma investida.

“Minha nossa, você é um gênio, Anastazja!”, disse Liesl, ao ver o quão genial ela havia sido com materiais que havia encontrado por acaso, “Ficou perfeito! Pode deixar que usarei sim, vou guardar com todo o carinho!”.

Anastazja sorriu. Era a forma dela agradecer depois de tanta ajuda que havia recebido das duas. Não queria ser um estorvo, e depois de fazer um escopo para um rifle de atirador de elite com suas próprias mãos não havia dúvida: aquela garota era realmente um gênio.

“Eu fiz um outro negócio também que pode nos ajudar!”, disse Anastazja, indo até a mesa da cozinha. Lá havia um negócio estranho, parecido com um rádio. Duas antenas, um auto-falante, tudo colocado em uma caixa de metal, não tinha mais do que uns dez ou quinze centímetros, era extremamente portátil, “Eu precisava de umas pilhas pra ligar ele, mas fiz um captador de código morse, para interceptarmos a comunicação dos nazistas, e sabermos o que eles estão tramando!”.

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