Amber #80 - Goin' places.

Liesl estava acomodada em uma carroça coberta levada por duas mulas. Haviam mais cinco pessoas, todas essas polonesas de idade, que por problemas de locomoção ficaram em uma das poucas charretes que ia junto daquela caravana. Ferida, Liesl ficava sentada dentro da carroça, e seu corpo, pedindo cada vez mais repouso, despertava e acordava em intervalos. A tarde passou, na noite acamparam mas ela decidiu continuar repousando na carroça ainda com as outras pessoas de idade.

Foi então que ao acordar na manhã do dia vinte, viu que a menina sem nome estava na sua frente, olhando a estrada e o caminho por onde estavam passando. Não haviam muitas pessoas. Não passavam de trinta no total. Uma caminhada mais discreta rumo à liberdade. O paraíso que naquele momento se chamava Romênia.

“Enfim acordou”, disse a menina, do mesmo jeito, sem expressar muita coisa, “Durante a noite conversei com várias pessoas. Eu tinha ouvido aquela mulher negra dizendo que iria com a polonesa na direção sul. Era onde tinham conseguido pistas sobre o paradeiro de Briegel”.

“Sim. É isso mesmo. O que exatamente você estava conversando com as pessoas?”

“Disse que estava em busca de uma mulher negra que andava com uma polonesa de óculos”.

“E então?”

“Uma família que mora por aqui diz ter visto uma mulher negra a uma polonesa de óculos, e ao conversar com elas, elas indicaram que iam na direção de Chernivtsi, na Romênia. É bem perto da fronteira polaca com a romena, provavelmente estão em um acampamento. Disseram que se tudo correr nesse ritmo cruzarão a fronteira antes do entardecer. Então será antes disso que vamos passar no local onde estão”.

“Como vamos saber que chegamos?”

“Ele vai nos avisar”.

“Escuta, quem é você?”.

Novamente ela ficou em silêncio. Seu rosto não expressava nada, ela nem parecia ignorar, parecia simplesmente não ter ouvido, olhando pro nada. Liesl insistiu.

“Eu te fiz uma pergunta! Quem é você?”

“Você não me conhece. Porque saber meu nome iria mudar algo?”.

“Ora, eu não sei. Mas é isso que pessoas normais fazem!”.

“Quem eu sou não tem importância”.

Liesl suspirou. Arrancar alguma informação pessoal daquela menina era mais difícil que ela pensava.

“Eu tô com fome. Meu estômago tá roncando”.

“Coma isso. Trouxeram alguns pães”, disse a menina, passando um pedaço de pão meio velho pra Liesl. Apesar de duro, ela comeu e achou delicioso, “Tem um pouco de leite também. Tá frio”, e junto do leite Liesl comeu aquele pão com muita vontade. O descanso havia feito ela acordar muito bem no outro dia, agora preencher seu estômago com algo ajudou ainda mais a se sentir melhor.

“Hoje estou bem melhor que ontem. Não me sinto bem em fazer esforços, mas também não estou sentindo tantas dores. Deu realmente pra descansar. Acho que até conseguiria caminhar, sem precisar ser carregada”.

A menina continuava em silêncio, com o olhar perdido.

“Escuta, porque você sumiu? Quer dizer, a gente te achou, vivendo naquela casa abandonada pela Brigitte, sozinha. Você não tem pais?”.

“Não entendi. Você fez duas perguntas. O que quer que eu responda?”.

“Pode começar por ‘onde estão seus pais’, se quiser”.

“Minha mãe faleceu quando eu era menor. Nunca conheci meu pai”.

“Mas você tem um nome, certo?”.

“Tenho”.

“Certo. Entendi. Mas porque você sumiu? Tenho certeza que a Alice te daria tudo do bom e do melhor. Você teria uma vida boa na Alemanha com a gente”.

“Não sei”.

“Hã? Como assim ‘não sabe’? É só isso que você tem pra responder?”.

Novamente a menina ficou em silêncio, cutucando umas casquinhas de ferimentos cicatrizados que ela tinha no braço, parecendo dar a mínima pra Liesl.

“Mais uma pergunta então: O que você está fazendo no meio da Polônia”.

“Eu vivo por aí. Ando pelos lugares”.

“Nossa, suas respostas também não ajudam muito”, disse Liesl. A menina sem nome apenas ficou em silêncio diante do comentário de Liesl, “Andando por aí, sem rumo. Uma criança de rua completamente nômade, vivendo sozinha, comendo quando tem comida, dormindo no relento, enfim. Muito estranho”.

Em silêncio a menina apenas ouvia Liesl. Parece que ela só interagia de volta quando faziam uma pergunta direta pra ela.

“Você disse que precisava de um favor meu. O que é?”.

“Quero que ache umas pessoas pra mim”, a menina vasculhou nas coisas de Liesl e achou um pedaço de papel e um lápis, onde anotou três nomes: Flavia Anzanello, Frédérique Beaudoin, e Jérome d’Uston de Villeréglan, “Os dois primeiros eu preciso que você ache tudo o que puder sobre. O último eu o quero morto”.

“Morto? Você acha que eu seria capaz de matar alguém inocente?”, perguntou Liesl, sem acreditar no pedido que ouvia de uma criança.

“Você vai achar uma maneira. Trato é trato. Te levarei ao Briegel, preciso que faça isso por mim”, disse a menina, sem dar maiores explicações.

“Tudo bem. Assim que voltarmos pra Alemanha irei atrás disso. Mas como vou te encontrar pra te entregar?”.

“Não se preocupe. Eu te encontro”.

“Tudo bem então”, disse Liesl, calmamente colocando o papel com o nome na sua mochila, “Quando eu e o coronel te vimos pela primeira vez, você disse que era uma ‘garota sem consequências’. Quando te vi matando aquela pessoa daquele jeito, fiquei abismada. Você não achou errado aquilo que você fez?”.

“Não”.

“E... Só isso? ‘Não’?”.

“É”.

“Nossa, você deve ter a empatia de uma porta”, disse Liesl, pensando alto, “Não consegue se colocar no lugar dos outros e ser solidário com o sofrimento do próximo. É como se a coisa que mais nos fizesse ser humanos estivesse com defeito dentro de você. Isso é bizarro, nunca vi uma pessoa assim”.

Mas a menina sequer reagia. Ficava tirando sujeira acumulada entre os dedos dos pés e cheirava depois. Sempre tinha um ar perdido, respostas vagas, e não expressava nenhum tipo de emoção. Liesl ficava em silêncio observando a menina. Aqueles olhos cor-de-mel ficavam de olho em todas as direções, pra cima e pra baixo. Muitas vezes o olhar encontrava com o de Liesl, que continuava sem entender quem era aquela menina.  Mas sempre que os olhos das duas se encontravam, Liesl sentia um misto de vazio com o mais profundo terror. Na realidade um era originário do outro. Não era possível prever o que ela garota faria. Ela poderia matar todos ali naquele local sem problema algum. Ou poderia simplesmente agir conforme dizia. Essa dúvida a matava de ansiedade. Ao mesmo tempo não conseguia desgrudar os olhos daquela menina sem nome. Qual era sua história? Quem eram seus pais? Porque agia desse jeito? Porque vagava sozinha naquele palco de guerra?

Mas a menina simplesmente não respondia. Ela não parecia esconder, não reagia de maneira que se auto preservasse ao ouvir as perguntas de Liesl. Parecia mesmo que não tinha noção das respostas para as perguntas que lhes eram feitas. Mas como uma pessoa poderia não saber seu próprio nome? Ou pior: seria possível aquela menina não ter um nome?

Assim ela ficou refletindo consigo mesma durante um bom tempo. Tanto tempo que ela nem percebeu passar. Então, Liesl sentiu que a carroça parou bruscamente.

“Hã? Porque paramos?”, disse Liesl, espiando por uma fresta do comboio. Ao ver o que havia do outro lado simplesmente paralisou da cabeça aos pés. Ela reconhecia aqueles uniformes militares. “Aqueles são... É o exército vermelho!”.

Ao virar para a menina sem nome, Liesl percebeu que ela sequer mexeu uma sobrancelha. Continuava calma, no seu mundo. Desesperada, Liesl foi até ela, a segurando pelos ombros, dizendo de maneira bem firme, olhando nos olhos:

“Ouviu o que eu disse, menina? São os soviéticos! Tem uns dez lá fora, todos eles armados! Temos que fugir daqui agora, pega logo suas coisas!”.

Mas a menina, depois de manter os olhos em Liesl, disse apenas uma coisa:

“Não adianta fugir”, disse a menina, virando o olho para a abertura que Liesl havia deixado ao espiar, “Eles vão entrar logo”.

Agora Liesl estava perdida. Não sabia se naquele momento o exército vermelho a caçaria por, mesmo que na aparência, estivesse do lado dos nazistas. E mesmo que conseguisse explicar suas reais intenções, não havia garantia nenhuma que seria compreendida. Todas as pessoas naquela carruagem estavam tensas. Liesl era obviamente a que mais estava, a ponto de ir até a ponta do outro lado e tentar abri-la, sem sucesso. Todos estavam amedrontados, menos obviamente aquela menina. Ela parecia ser o tipo de pessoa que mesmo momentos antes de perder a vida é capaz de manter a calma, como se até mesmo ameaças contra sua vida fossem insignificantes.

“Pfeiffer. Liesl Pfeiffer”, disse o soldado russo, falando em alemão, adentrando no comboio da carroça, “Estamos em busca de uma menina loira de cabelos encaracolados de aproximadamente quinze anos. Se a acharmos liberaremos o resto”, o soldado dizia enquanto passava o olho em todas as pessoas, inclusive na menina anônima. Ao perceber que ela era muito nova pra aparentar quinze anos, disse a ela: “Não... Você parece ter uns seis ou sete”, nessa hora o soldado viu Liesl no fundo, com a cabeça coberta, tentando se esconder, “Ei, você aí! Vire seu rosto pra cá”.

Era tudo ou nada. Liesl nessa hora lembrou que a Frommer Stop estava em um coldre que andava sempre com ela. Poderia tentar render o soldado e trazê-lo para dentro e toma-lo como refém. E caso ele se mexesse, ela atiraria, e seria uma luta contra o tempo até que ela pudesse ir para um lugar a salvo.

Mas não havia tempo de pensar em nenhuma outra opção. Em apenas um movimento rápido sacou a arma e apontou pro soldado soviético, que tomou um susto com a cena.

“Entra agora”, disse Liesl. Mas o soldado ao ver Liesl parecia ter uma expressão de alívio, como se a estivesse procurando há tempos. Não estava com uma expressão de medo por ter alguém apontando uma arma para ele. Ainda com um sorriso tímido no rosto ele virou-se para o lado e desceu da carroça, gritando calorosamente, “Kapitan Aleksandrovna!! Kapitan Aleksandrovna!!”

“Merda! Preciso sair daqui agora!!”, disse Liesl indo até a entrada da carroça. Mas antes de sair trocou um olhar com a menina anônima, sem dizer nada. Seu rosto mostrava um misto de dúvida com incredulidade para com ela. A menina obviamente apenas recebeu o olhar e continuou com aquela sua cara de que não dava a mínima, sem esboçar nada em especial.

Ao espiar pela fresta do pano viu que os soldados estavam conversando não muito longe dali. Rapidamente desceu sorrateiramente e se agachou, para tentar passar desapercebida. Porém não percebeu que havia uma pessoa caminhando ao lado da carroça. Era uma mulher, vestia um sobretudo cor de cáqui, clássica cor usada pelos soviéticos, e tinha um quepe com uma estrela vermelha estampada no centro, com um martelo e uma foice dourados no centro. Já aparentava ter certa idade, mas não aparentava ter mais do que cinquenta. Seus cabelos loiros dourados amarrados num coque, os olhos azuis profundos e poucas rugas na sua pele eram as coisas que mais chamaram a atenção de Liesl enquanto era pega fugindo.

Porém ao dar de cara com a russa, ambas se assustaram. Rapidamente pegou sua arma e apontou para a mulher.

“Escuta aqui. Finge que não me viu e me deixa passar”, disse Liesl, com a arma engatilhada, “Eu não quero ser obrigada a disparar. Ainda mais contra outra mulher!”.

A mulher ao ver Liesl apontando a arma para si permaneceu plácida e calma. Parecia estar de alguma forma no controle daquela situação.

“Você não atiraria em mim, garota. Estamos a procura de você, na realidade”, disse a mulher, calmamente. Ela apontou o dedo para atrás de Liesl, onde ao virar-se esta viu que havia uma barraca militar montada, “Alice Briegel e Anastazja Maslak estão te esperando logo ali”, nessa hora Liesl, toda machucada, ficou tão aliviada que seus olhos encheram de lágrimas. Ela tinha esquecido que estavam chegando perto da fronteira com a Romênia e, como a menina anônima havia dito, era lá que haviam ouvido falar que Alice e Anastazja a esperavam. Mas o melhor ainda estava por vir. A próxima coisa que a oficial disse realmente fez Liesl derrubar muitas lágrimas de felicidade, pois lhe tirava um peso ainda maior das suas costas:

“Briegel também está lá. Achei que iria gostar de saber disso”, disse a oficial russa.

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