Amber #95 - O culpado e o inocente.

13 de novembro de 1939
03h30

Chou saiu da sala, tirando o avental branco cheio de marcas de sangue. A cirurgia havia sido muito cansativa. Puxando as luvas e as jogando de lado, junto da máscara, ela parecia exausta. Ela não esperava jamais ter que naquela hora da noite realizar um procedimento tão complicado e cansativo. Era para tudo ter terminado bem. Era pra a essa hora eles estarem com Chou Xuefeng e fazendo trilhões de perguntas para ele. Não era para nada disso estar acontecendo.

Li, agora é contigo. Vou continuar de olho em você, claro, mas preciso que você faça um esforço e fique bem logo. Não vou deixar que nada aconteça com você, pensou Chou, enquanto olhava para a porta da sala fechada onde Li com Tsai ao lado cuidando dela.

Elas estavam em uma casa que havia sido improvisada como hospital, a poucos quilômetros de Nanquim. Essa casa era usada por chineses que haviam sido feridos em batalha contra japoneses, mas por conta da discrição que era exigida, não podiam nunca hospedar mais do que cinco ou seis feridos. Era realmente para emergências prioritárias e nada mais.

Exausta, Chou caminhava se apoiando nas paredes. Respirava com dificuldade, talvez tudo o que ela queria naquele momento era cair em uma cama e dormir. Mas queria ver como estavam os outros. Ao passar na frente da cozinha para pegar algo para beber, encontrou Yamada e Eunmi, sentados na mesa.

“Chou! Finalmente! Como está a Li? Ela vai ficar bem?”, perguntou Eunmi, se erguendo.

Mas Chou ficou apenas encarando Yamada. Seus olhos foram ficando cada vez mais cerrados, sobrancelhas arqueadas e os dentes pareciam ranger. A chinesa era como se fosse um vulcão, prestes a explodir a qualquer momento.

“Eu vou te matar agora, seu japonês filho duma puta!!”, disse Chou, enquanto prensava Yamada contra a parede pelo colarinho, “Pensei que você era todo bobo e idiota, mas pelo visto você se aproveitou disso pra fazer essa maldita emboscada que quase custou a vida da Li e de todos nós!!”.

Yamada estava aterrorizado. Ele podia sentir a decisão e a força que Chou tinha em seus punhos enquanto praticamente o erguia contra a parede. Não que fosse difícil fazer isso com ele, já que ele media menos de 1,60m e era bem magro. Ele nem tinha coragem de lutar contra aquela força de Chou. Se ele havia sobrevivido por sorte no dia do ataque contra o seu pelotão, com certeza naquela madrugada seria o dia que ele seria morto.

“Chou, espera!! Solta o Yamada!”, pedia Eunmi, tentando puxar o braço de Chou, mas por mais força que ela empregasse, sentia que nada tiraria Chou daquele estado. Se alguém poderia para-la, definitivamente não era mais ela quem estava ali.

“Maldito!! Não tem coragem de dizer nada agora, não é?”, gritava Chou, encarando furiosamente Yamada enquanto aproximava ainda mais do seu rosto, “Eu sempre desconfiei que você fosse um covarde. Agora tenho certeza que você é o maior covarde dentro dos covardes! Você não tem caráter!!”.

Nesse momento Yamada não sentia mais o chão. Chou estava o erguendo pelo pescoço com muita raiva contra a parede.

“Não, por favor, não me mata! Eu juro que não tenho nada a ver com isso!”, disse Yamada, com os olhos cheios de lágrimas. Nessa hora ele começou a sentir uma dor crescente no pescoço e uma dificuldade maior e maior em respirar a cada segundo que passava. Os olhos de Chou continuavam a o encarar repletos de fúria e nojo, e pela força que ela estava empregando naquele momento, e pela determinação em fazê-lo expresso em sua feição, Yamada percebeu que talvez ali seria o fim de tudo para ele, “Chou, ah, para!! Você tá me enforcando!”.

“Chou! Por favor, solta o Yamada! Você vai acabar matando ele!”, pedia novamente Eunmi, mas Chou estava em um estado que parecia impossível de trazê-la de volta. Por mais que tentasse puxar seu braço, parecia que Chou não ignorava suas palavras, mas também sua força. Todo esforço era em vão enquanto a coreana puxava o braço da chinesa, gritando: “Chega!! Me ouve!!”.

“Cala essa sua boca, coreana! Vou com minhas próprias mãos acabar com a vida desse merda de ser humano!”, disse Chou, olhando para Eunmi. Nesse momento ela recuou, pois nunca imaginou que veria um olhar assim numa pessoa. Não era Chou quem estava lá. Era quase que um demônio querendo fazer justiça com as próprias mãos a qualquer custo. E isso a fez realmente tremer de medo. Ao recuar, tropeçou na cadeira, e mesmo assim continuava com os olhos congelados sobre Chou, enquanto Yamada entre tossidas cada vez mais fracas tentava se debater pra se desvencilhar da chinesa que o estava enforcando.

“C-Chou...”, dizia Yamada, tentando usar suas últimas forças, “...Não foi... Não fui eu... Eu juro... Me deixa... Deixa explicar”.

“Explica no quinto dos infernos, seu lixo maldito!”, gritava Chou. Yamada quase que não conseguia ouvir, seus sentidos estavam começando a se apagar, um após o outro, “Morra, filho duma puta!! MORRA!!”, Chou gritava ainda mais alto, completamente tomada pela fúria.

Só havia uma pessoa que poderia para-la de cometer um assassinato ali naquele momento.

“Chou!! Solta o Yamada, por favor!!”, disse Tsai ao entrar na cozinha. Schultz chegou logo atrás dela, com os olhos arregalados pela cena que via se desenrolar.

“Eu vim correndo, ouvi os gritos e...”, nessa hora Schultz viu que Chou estava tentando matar Yamada ali mesmo, “Minha nossa, Chou, solta ele! Isso não é do seu feitio, menina!”.

Mas nessa hora Tsai virou o rosto para Schultz, ainda na frente dele, e fez um gesto para que ele parasse. Schultz a obedeceu. Talvez ela sabia exatamente o que fazer numa situação daquelas.

“Chou, solta o Yamada. Por favor”, disse Tsai, calmamente, se aproximando de Chou.

Estranhamente as palavras da Gongzhu pareciam ser ouvidas diretamente dentro do coração de Chou. Por mais que Schultz ou Eunmi gritassem e tentassem com todas forças colocar alguma razão na cabeça da Chou, Tsai sem elevar nem um pouco a voz havia conseguido fazer não apenas que ela a ouvisse, mas que até virasse o rosto, parando de encarar Yamada, embora continuasse empregando força no enforcamento do japonês.

“Ele quase matou a Li, Gongzhu!! Esse desgraçado tem que morrer!”, gritava Chou, batendo Yamada contra a parede.

“Olha, eu sei que você quer fazer justiça. E que realmente faz sentido culpar o Yamada, afinal fomos atacadas por oficiais japoneses. Mas Chou, você não está sendo justa. Você está sendo levada pelas emoções. E a verdadeira justiça é baseada em fatos e provas”, disse Tsai, se aproximando de Chou. Nessa hora ela tocou no ombro da amiga. Aquele toque parecia absorver toda a raiva e falta de controle de Chou, e a jogar em um lugar inalcançável por meio da canalização de Tsai. Era incrível como ela rapidamente conseguiu trazer Chou de volta, “Você tem alguma evidência que o Yamada estava envolvido? Ele não saiu do seu lado, nem de perto da gente. Raciocina bem, Chou”.

Yamada estava quase apagando. Mas depois das palavras de Tsai, sentia que o aperto no seu pescoço estava ficando cada vez mais frouxo. Sua cabeça, que estava quase batendo no teto, estava junto do seu corpo descendo. Ele nem conseguia acreditar que estava conseguindo tocar o chão com os pés.

“Não. Não tenho nenhuma prova contra ele”, disse Chou, ainda segurando Yamada. Era possível ver a força que ele fazia para tentar voltar a respirar.

“Ótimo, então solta ele”, disse Tsai, calmamente, “Se o Yamada for realmente o culpado, pode ter certeza que a justiça recairá nele. Mas enquanto não tivermos provas, não vamos estar agindo de maneira justa e correta. E lembre-se que todos estão nos olhando. Pessoas nos têm como inspiração, por isso temos que sempre dar o exemplo. O que acha que pensarão da gente quando virem que uma das nossas melhores soldados manchou suas mãos de sangue tomada pela emoção do momento?”

Chou então soltou Yamada, que caiu no chão, tossindo. Seus olhos estavam vermelhos, derrubando mais e mais lágrimas. Ele fazia esforço para puxar o ar, mas continuava tossindo mais e mais conforme fazia força para tal. Levou suas mãos ao seu pescoço, tentando massagear a área em que foi apertado. Conforme o ar ia preenchendo seus pulmões e seus sentidos voltavam pouco a pouco uma certeza ele tinha: não foi dessa vez que ele morreu. Ele ainda estava vivo. Chou foi até uma torneira e encheu um copo com água.

“Escuta aqui, japonês”, disse Chou, se agachando na frente de Yamada. Ela pegou o copo com água e jogou seu conteúdo com violência contra o rosto de Yamada, que levou um susto. Depois disso, ela prosseguiu: “Se foi você mesmo, pode ter certeza que vai ser eu quem vai te punir, e vou fazer isso com muito gosto, seu verme imundo”.

“Não foi o Yamada, Chou. Disso eu tenho certeza. Eu sei quem foi”.

Nessa hora todos se voltaram para Eunmi, que havia acabado de dizer as palavras. Suas palavras pareciam arranhar o silêncio que havia dominado o local, tirando a atenção do clima pesado instaurado por Chou, conforme Yamada ia recuperando seu fôlego no meio das tossidas depois da ameaça tenebrosa que Chou o havia feito.

“E quem você acha que foi, Eunmi?”, perguntou Tsai, curiosa pra saber quem estava na cabeça da coreana.

“Foi o meu primo, Jin-su. Eu não gostaria que isso fosse verdade, mas parece que tudo converge pra ele. E tenho uma pessoa como testemunha”, disse Eunmi, olhando um a um. Mas antes de terminar sua frase, pousou seu olhar sobre Chou, que ainda estava agachada na frente de Yamada, com o copo vazio na mão, “Mas para isso, preciso que a Li acorde”.

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16 de novembro de 1939
08h47

Os tímidos raios de sol daquele inverno entravam pela janela, iluminando o rosto de Li. Funcionando como um despertador natural, aquela luz toda parecia dissipar o sono. Ela não tinha a mínima ideia do que havia acontecido. E menos ainda por quanto tempo dormiu.

Conforme abria os olhos, tentava reconhecer o local. Parecia um quarto comum adaptado como leito de hospital. Levantou o cobertor e vira que estava cheia de pontos no abdômen. E nesse momento lembrou da dor dos tiros.

“Ah, que merda. Passa ano e vem ano e eu nunca consigo me acostumar com essa dor do cacete”, disse Li, baixinho, sem acreditar que realmente havia sido baleada, mais uma vez. Por mais que havia levado uma bala ou outra em combates antes, sempre a cada nova vez parecia doer o triplo da anterior. Não era algo que ela conseguia se acostumar. Cada vez parecia ainda pior.

Mas percebeu que havia sido tratada. E que apesar de tudo, estava bem. Seu estômago estava roncando de fome, na verdade. Ao se erguer da cama e virar o rosto pra direita, viu que Chou estava lá, sentada numa cadeira, dormindo. Do outro lado da sala estava Eunmi, também adormecida. As molas da cama fizeram barulho com esse movimento todo, e quando percebeu, Chou havia despertado com o barulho.

Então Li, sem nem fazer contato visual com Chou, se jogou de volta na cama. Na sua cabeça apenas passava uma coisa: entre todas as milhões de pessoas daquele país, tinha que ser justamente ela?

Chou também não sabia como proceder. As duas não se falavam, e apesar de Chou tentar sempre criar um contato, ou ao menos dar um “bom dia”, Li sempre a ignorava, como se ela não existisse. Apesar da raiva que esta tinha, conseguiam trabalhar juntas quando se fazia necessário. Muralhas que não existiam graças à imensa qualidade apaziguadora da Gongzhu. Pois se dependesse das duas, Li viveria em guerra contra Chou.

“Ah, que bom que você acordou. Você deve estar com fome, vou pedir para trazerem algo pra você comer, só um segundo!”, disse Chou, se erguendo. Mas quando ela tocou na maçaneta da porta, vira que havia algo que a impedia de gira-la para abrir. Algo pesado. Algo não resolvido. Algo que lhe dava medo. Ainda de costas para Li e encarando a porta fechada, Chou começou: “Eu sei que você não vai me responder. No seu lugar eu também morreria de raiva de mim. Mas nesse meio tempo em que você esteve entre a vida e a morte, o meu maior medo foi que nesse momento você partisse, e eu não tivesse como dizer uma coisa que deveria ter tido há muito tempo, independente se você me ouvisse ou não. Era algo que me faltava uma coragem imensa para fazer”.

Nessa hora Chou se virou e olhou para Li. Ela estava com o rosto virado para a janela, nem sequer a olhava. Mas Chou sabia que não tinha como ela a ignorar nesse momento. Talvez ela só teria aquele momento agora para fazer isso, então era melhor tentar do que esperar o futuro, afinal nunca se sabe o que o futuro reservaria. E poderia ser realmente tarde demais para tal.

“Me desculpa, Li. Eu te devo desculpas por todos esses anos, e mesmo que eu tenha que passar o resto da minha vida pedindo desculpas, eu continuarei assim”, disse Chou, fazendo uma reverência, baixando a cabeça com todo seu tronco, na posição mais respeitosa possível, “Eu e meu pai fizemos o possível e o impossível para salvar seu irmãozinho da varíola. E achei que seria algo simples, mas infelizmente ele não suportou. Infelizmente a responsabilidade era nossa, e não é possível voltar no passado para te devolver seu irmão mais novo que você tanto amava. Nós erramos. Eu errei. E mesmo que isso signifique a vida inteira lutar pelo seu perdão, eu continuarei pedindo desculpas sempre, sempre e sempre”.

Nesse momento Li, ainda com aquela expressão de asco quando ouvia a voz de Chou, virou seu rosto para ela. Talvez fazia anos que ela sequer trocava um olhar com Chou. Esta virou o rosto pra cima e percebeu que Li a olhava. É verdade que não era o olhar mais amigável do mundo, ainda expressava o nojo e toda repulsa que Li sentia por ela. As duas não disseram nada uma pra outra depois disso. O olhar durou apenas alguns segundos, e depois Li voltou o olhar para o outro lado, de volta à janela. Nenhuma palavra foi proferida naquele momento.

É verdade que Li não havia aceitado o pedido de desculpas ainda. E que as duas não voltariam a ser amiguinhas do nada. Ainda havia muita coisa a se superar. Mas foi a primeira troca de olhares em anos, e isso definitivamente era um passo enorme depois de anos de puro e simples desprezo e rejeição por parte de Li. E isso significava realmente um passo imenso.

“Li? Não acredito! Você enfim acordou!”, disse Eunmi, que despertou com a conversa que ouvia no quarto, “Como você se sente?”.

“Bom, por incrível que pareça, com fome!”, brincou Li, “Quanto tempo será que ainda preciso ficar aqui? Esse quarto tá cheirando a hospital!”.

“É bom ver que você está bem! Que alívio! Acho que talvez você tenha que ficar de molho mais alguns dias, mas é melhor para que você tenha alta e saia daqui cem porcento!”, disse Eunmi, com uma expressão leve no rosto. Ela parecia realmente aliviada.

Tsai entrou pela porta, trazendo uma bandeja cheia de comida. Ela não havia reparado ainda que Li havia recuperado a consciência.

“Meninas, eu não sei o que vocês queriam comer agora, então eu trouxe um pouco de macarrão de arroz e tofu, além de chá verde e...”, disse Tsai, entrando com a bandeja. Quando ela viu que Li havia despertado, um sorriso de alívio preencheu seu rosto do lado ao outro, e ela disse: “Li, minha nossa!! Você acordou, finalmente! Puxa, vou buscar uns baozi pra você comer, sei que você não gosta de macarrão de arroz!”.

“Que isso, Gongzhu! Eu tô com tanta fome que eu como o que tiver aí! Meu estômago tá me matando aqui!”, brincou Li, e Tsai levou a bandeja até Li, a ajudando a se sentar para que ela comesse, passou também um par de hashis para que ela comesse. Li não perdeu tempo e começou naquele momento a devorar a comida toda. Todos observavam em silêncio com um sorriso no rosto aquela cena, e Li fingia que não estava vendo aquilo, pois no fundo sentia vergonha com todo o carinho que estava recebendo. Já depois de alguns minutos comendo, foi ela quem quebrou o silêncio: “Ei, escuta... Descobriram algo sobre a bomba na casa do Chou Xuefeng, e esse ataque repentino daqueles oficiais japoneses contra a gente?”.

“Nada muito concreto”, disse Tsai, voltando o olhar para Eunmi, “Apenas sabemos que o Yamada não está envolvido”.

“Ah, mas isso eu sabia!”, disse Li, depois de dar alguns goles de chá verde depois de engolir uma boa quantidade de macarrão. Todas ficaram abismadas pelo fato de Li saber que Yamada não estava envolvido, e Li não entendia a surpresa. Vendo que aquele silêncio todo era também um pedido de explicações do que ela sabia, Li prosseguiu: “Eu vi pelo escopo do meu rifle que a Eunmi estava conversando com alguém que estava em um beco lá. E se eu pudesse arriscar que se havia alguém que sabia de tudo, seria essa pessoa. Eu me lembro claramente se segundos antes ter visto umas duas pessoas: uma que presumo ser um sequestrador e a outra o próprio Chou Xuefeng, saindo da casa, se aproveitando do fato da Eunmi estar distraída naquele momento”, e nessa hora Li vira que as pessoas continuavam atônitas ouvindo o que ela dizia. Especialmente Chou, que estava igualmente espantada, e com vergonha de si mesma por quase ter matado uma pessoa inocente. Como ninguém respondia, Li terminou seu pensamento: “Se eu pudesse arriscar que havia alguém por detrás de tudo, arriscaria que era essa pessoa que estava lá, distraindo a Eunmi. Vocês tem ideia de quem era essa pessoa?”.

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