Amber - Kaisertreue (2)

3 de julho de 1916

Se a morte tinha um cheiro, definitivamente era aquele cheiro que exalava na região do rio Somme, naquele julho de 1916. Ver corpos de soldados na vida real não tinha nada a ver com o que se vê no cinema. A começar pelo fato de nenhum deles morrer numa posição, vamos dizer, “pacífica”: seus olhos esbugalhados pareciam congelar a última emoção que aquele soldado havia sentido no seu momento derradeiro. Embora seu corpo não emitisse um som, a boca escancarada parecia soltar um grito de terror que não parecia se calar. A segunda coisa era que ninguém morria com o corpo reto, como se fosse dormir: os corpos em grande parte estavam todos retorcidos. Isso é, quando ainda havia algum corpo reconhecível, no meio das dilacerações, falta de membros, e impactos dos disparos que os furavam de todos os lados. Como se não fosse suficiente a feição paralisada de pânico e horror no rosto, o corpo também estava frio, duro, fixado muitas vezes na posição mais grotesca possível: braços pra um lado, pernas para outro, ferimentos por todos os lados.

“Ei, Horvath!”, disse Schwarz, pegando a placa de identificação do soldado, “Mais um inglês aqui!”.

Mas o que de mais horrendo que havia naquela cena depois daquele primeiro dia tão sangrento em Somme, era o que Schwarz e Horvath estavam inconscientemente sentindo, pelo fato de ter que carregar tantos corpos de lá para cá.

“Poxa, vivos eles não pareciam tão pesados, correndo por aí”, disse Horvath, colocando em suas costas mais um ferido e levando seu corpo para ser levado embora mais tarde pelos ingleses, “Quando se está vivo a gente anda por aí sem problemas, pessoas parecem tão leves. Mas quando morrem a gente vê como essas pessoas são pesadas”.

“É, meu amigo... É o peso da morte”, disse Schwarz, agachado, tomando um ar. Ao virar para Horvath, que estava carregando o soldado morto nas costas, percebera que duas placas, uma poligonal e outra circular, bem pequenas, caíram do pescoço do soldado, “Ei, espera aí, os disquinhos desse soldado caiu!”.

Nessa hora Schwarz viu que, apesar do uniforme, o soldado não era inglês. Seu nome e sobrenome eram franceses. Jean Auguste Martin.

“Você ao invés de ficar aí olhando seria bom dar uma ajuda. Eu tenho quase o dobro da sua idade, seu cara de pau”, disse Horvath, vendo Schwarz colocando de volta no pescoço do soldado as plaquinhas de identificação, “Vocês jovens são todos uns preguiçosos, deixando até o trabalho pesado para um velho como eu”.

“Ei, será que foi esse o carinha que o Pfeiffer disse que atirou na cabeça pra salvar o capitão? A cara dele tá toda desfigurada, e pelo tamanho do buraco, parece saído da Frommer Stop”, disse Schwarz, mas Horvath não deu a mínima. Encarando seu amigo de forma irônica, Horvath parecia querer chamar a atenção para a pergunta que ele havia acabado de fazer. Percebendo isso, Schwarz consertou a fala: “Ah, e eu tô a lombar toda fudida!”, disse Schwarz, passando a mão na sua lombar e depois que Horvath virou, com uma cara de quem não gostou nada da desculpa esfarrapada, Schwarz deu um tapa na bunda do amigo, “Ao contrário de você, que tem essa lombar dura como pedra! Essa bunda deve estar dando trabalho, hein! Ou você é o que passivo da relação?”.

Horvath levou o corpo até o local onde haviam outros corpos amontoados de soldados ingleses mortos em combate, e despejou o corpo do soldado ali.

“Eu não sei como vocês, héteros, ficam imaginando como um casal gay faz sexo. A gente não é igual homem e mulher. Não tem um ‘mulherzinha’ da relação. Tem dia que é a gente atrás, mas tem dia que é a gente na frente, simples”, disse Horvath, sentando numa pedra e acendendo um cigarro.

“Poxa, deve ser vantajoso assim. Ficar só recebendo na bunda deve ser um saco”, brincou Schwarz, sentando na pedra ao lado do amigo, “Pensando bem, deve ser bem vantajoso namorar um homem. Não tem essas mudanças hormonais das mulheres, TPM, e quando quer trepar é só chegar e fazer. Homens são bem mais tranquilos, menos trabalho, menos chiliques, enfim. Homens falam a língua dos homens”.

“É tocante ouvir isso”, disse Horvath, apenas encarando de maneira séria Schwarz, “Porque não vira homossexual então?”.

“Rapaz, eu acho que tenho tudo pra ser viado. Só tem um problema. Eu adoro buceta e um par de peitos”, disse Schwarz, dando um risinho. Horvath continuava sério, apenas prestando atenção no que o amigo dizia, “A premissa de ser homossexual é sentir atração sexual por pessoas do mesmo sexo. E homem é tudo fedido, peludo, barbudo e tem uma piroca lá embaixo. Sou muito mais uma gatinha depilada, com um par de seios durinhos, e uma bundinha pra colocar a mão e fazer assim, olha”, e Schwarz fez o gesto de como estivesse trepando na frente de Horvath.

O húngaro Horvath olhava para aquela cena com um certo nojo, na verdade.

“Eu nunca senti atração por isso aí... Vaginas”, disse Horvath, tragando o final do cigarro, “Coisa feia, formato estranho, sem contar que fede”.

“Ah, qual é, Horvath!”, disse Schwarz, tirando sarro do amigo, “Fica falando essas coisas, vão ficar na minha cabeça quando encontrar minha esposa pra fazer um amorzinho gostoso com ela!”.

“É verdade, não é mesmo?”, disse Horvath, se erguendo. Ele estava vendo ingleses vindo do outro lado para buscarem os corpos, “Nessas pausas da batalha dá pra gente pelo menos bater um papo. Como tá a Brigitte? Afinal você teve bolas pra casar com a filha queridinha do capitão”.

“Ela está bem”, disse Schwarz, com ternura na voz, se lembrando de sua amada, “Eu nunca tive dúvida que era ela a pessoa certa pra mim. Mas a cada dia que passa eu tenho mais certeza disso. Cada segundinho com ela eu faço valer a pena, afinal, estamos no meio de uma guerra. Nunca sabemos o que nos pode esperar na próxima batalha...”.

Nessa hora soldados ingleses chegaram para buscar os corpos dos seus compatriotas. Estavam com uma carroça, puxada por mulas, e a expressão do rosto deles era do mais profundo pesar. Não pareciam ter a mesma expressão de empolgação dias atrás, quando avançavam no fronte.

“Muito obrigado, senhor, por estar nos ajudando”, disse o inglês, ajudando a preencher a carroça com os corpos dos camaradas mortos, “São nesses momentos de trégua que percebemos quem são os verdadeiros soldados com honra”.

O mundo muda depois que sofremos uma perda. Era visível que o número de soldados ingleses mortos era infinitamente maior que o número de alemães abatidos. Semanas depois, quando os dois ouviram que o número total de perdas foi de trinta mil, os dois não se espantariam ao saber que dezenove mil desses eram ingleses. Horvath e Schwarz tinham plena noção disso enquanto ajudavam a tirar os corpos naquela pequena trégua da batalha.

“Poderia ser a gente aí. Acho que no mínimo deveríamos tratar os outros da maneira que gostaríamos de ser tratados”, disse Horvath, que se ofereceu pra ajudar a colocar os corpos na carroça, mas o soldado inglês fez um gesto para que deixassem com eles. Haviam mais quatro colegas do fronte ao seu lado, e ver pela última vez o rosto daqueles que lutaram bravamente ao lado deles era como se fosse uma última homenagem que eles não queriam deixar de prestar.

Horvath e Schwarz, vendo que o trabalho estava feito, voltaram para seus postos.

“Essas pausas na batalha parecem um choque de realidade pra gente”, disse Schwarz, e nesse momento uma nostalgia imensa da vida com sua esposa veio à sua cabeça, “Ah, como eu gostaria de estar abraçadinho com a Brigitte! Ela é tão doce, e eu estou contando os dias para a próxima folga para ir reencontrar com ela!”.

“Com certeza uma cama transformada num ninho de amor deve ser melhor que esse lugar úmido, fedido e com esses ratos indo de lá pra cá”, disse Horvath, com sua lógica impregnada em suas palavras, “Eu fico imaginando o que andam escrevendo sobre feitos heroicos, sobre guerreiros sobre cavalo avançando com suas lanças nas linhas de frente. Mas na real essa guerra basicamente é ficar protegido numa dessas trincheiras, dormindo com ratos, fedendo a côco, todos com medo de avançar na terra de ninguém, e absolutamente nada de heroísmo”.

“Tudo um bando de cagão!”, brincou Schwarz, mas Horvath não sorriu. Mas Schwarz sabia que esse era o jeito sério dele, e que não queria dizer que ele não tivesse gostado, ou algo do gênero, “Cara, você é um gay muito sério!”.

“E você tem uns estereótipos bem limitados”, disse Horvath, como se não fosse a primeira vez que ele explicava isso para seu amigo, “Não é porque sou gay que tenho que ser afeminado”.

“Tá bom, tá bom! Eu só tava brincando!”, disse Schwarz, dando um tapinha nas costas do amigo. Nessa hora ao virar o rosto pra frente, viram Ozal, com algo na mão e vendo seu reflexo numa poça no chão, “Ih, olha o quibe ali!”.

Ao perceber que seus amigos estavam chegando, Ozal ergueu o rosto. Ele estava estranhamente branco, com a pele homogênea, totalmente artificial. Horvath e Schwarz estranharam, e quando perceberam, o otomano estava com um pote de pó de arroz na mão.

“E então? Disfarçou um pouco a cicatriz?”, perguntou Ozal, mas Schwarz caiu na risada. Horvath ficou calado, tentando entender o que havia de estranho no rosto do amigo turco.

Ozal tinha uma cicatriz enorme do lado esquerdo do rosto. Era um corte, e pelo visto era bem profundo. Era um ferimento antigo, quando o conheceram, ele já tinha. Seu olho esquerdo era branco, e ele detestava essa marca no seu rosto. Deixava a barba crescer na tentativa de esconder ela, pelo menos na parte do pescoço e da bochecha, mas a cicatriz cobria da testa até o pescoço, marcando toda sua pele.

Vendo que seus amigos estavam tirando sarro, Ozal jogou uma água no rosto e depois secou com sua camisa.

“Ah, vocês são uns xaropes mesmo!”, disse Ozal, sem graça por ver todos rindo dele, “Poxa, eu tava louco para experimentar, pra ver se escondia um pouco isso, mas pelo visto é melhor sem!”.

“Melhor mesmo, quibe!”, brincou Schwarz, “Ei, chega mais que ouvi falar que tem um pouco de comida lá no acampamento. Tem uns dois dias que não tenho uma refeição decente, e tô louco pra beber uma cerveja!”, nessa hora Schwarz parou, quando uma lembrança de um prato excelente que Ozal fazia lhe veio à mente, “Ou melhor ainda: o babaganuche que você fez aquele dia, Ozal! Cara, eu sonho com aquilo até hoje!”.

“Aquele homus também era excelente”, disse Horvath, mas ao ouvir Schwarz caiu na gargalhada. Horvath sabia que vinha uma piada infantil depois disso.

“Rá! Viu só! Seu homus foi aprovado!”, disse Schwarz, apontando o dedo para Horvath dando risada, “Um homus aprovado por um ‘homus-sexual’!”.

“Eu já vou! Vou só guardar isso lá nas minhas coisas”, disse Harun Ozal, se levantando, “Vê se guarda um pouco pra mim, seus mortos de fome!”.

No caminho até onde estavam suas coisas, Ozal ouviu algo como se fossem pessoas discutindo em voz alta. Tomou um desvio em uma trincheira, pegando um caminho que passava na frente do local de onde ouvia as vozes. Eram gritos de alguém tirando sarro, acompanhado de risadas. Por um momento ficou tranquilo, mas quando passou pelo lugar de longe viu do que se tratava.

Um grupo de soldados alemães estavam fazendo maltratando e humilhando o mensageiro, aquele que havia trago a mensagem para Briegel, dias atrás, e que tentou aquele “feito heroico”, que quase custou a vida de todos, inclusive do Kaisertreue.

“Alemão, você? Alemão o caralho!”, disse um dos valentões. O mensageiro, calado, tentava correr dali, mas sempre o puxavam para o centro da roda, na base dos chutes e xingamentos, “Fica se achando porque ganhou essa Cruz de Ferro, mas essa merda aqui dão pra qualquer cuzão! Nem vai pro fronte lutar, fica só lá na parte segura levando papel pra cima e pra baixo!”.

“Me deixa em paz, por favor!”, implorava o mensageiro.

“Quer ser um herói? Um herói de verdade tem cheiro disso aqui!”, disse um soldado, pegando que parecia um monte de terra e esfregando na cara do mensageiro, “Um herói tem cheiro de bosta! Bosta cagada em trincheira!!”, mas aquilo obviamente não era terra.

“Ei, moleques. Deixem esse carinha em paz, deem o fora daqui”, disse Ozal, e nessa hora todos olharam fixamente para ele. Ao reconhecerem que era um Kaisertreue, todos ficaram sem graça, “Querem que eu repita o que disse? Anda logo! Caiam no mundo!”.

Ozal se aproximou do mensageiro e lhe estendeu a mão, para ajuda-lo a se levantar, dizendo: “Vem cá, deixa eu te ajudar”. Mas quando o mensageiro de ergueu, simplesmente tirou um pouco das fezes grudadas no seu rosto e saiu correndo, sem nem agradecer ao Ozal.

“Puxa, nem agradeceu?”, disse Ozal, vendo o mensageiro dando o fora sem dizer nada. Ele viu um balde de água e foi até lá lavar suas mãos, “Pft... Deixa pra lá”, disse Ozal, pensando alto. Depois de enxaguar as mãos, ficou fitando seu rosto, e a imensa cicatriz nele. Sequer havia percebido que alguém havia chegado do seu lado.

“Ei, é verdade que você é árabe?”, perguntou um dos soldados alemães que estava maltratando o mensageiro. Ozal olhou pra ele e por um momento ficou em silêncio, sem responder, com a cara fechada. Como eles tinham a cara de pau de aparecer depois daquilo?

“Não sou árabe. Sou turco”, respondeu Ozal, depois de um breve silêncio e de olhar com desdém para os soldados.

“Então você deve ser muçulmano!”, disse outro soldado que estava junto do que havia feito a pergunta, “Tô ligado no quanto muçulmanos odeiam judeus. Será que você poderia nos dar uns contatos? Queríamos fazer uma aliança para eliminar os judeus, esses imigrantes podres, que andam roubando nossos empregos na Europa! Mandar eles pro fim do mundo e dá-los de bandeja para que vocês, muçulmanos, possam fazer o que quiserem com eles!”.

“De preferência, que os matem logo!”, disse o soldado que puxou a conversa.

Mas Ozal apenas se ergueu de súbito, dando um pequeno susto neles. Pela sua cara, ele não havia gostado nem um pouco do que tinha ouvido. Balançou negativamente a cabeça, antes de responder os alemães:

“Não tenho nada contra judeus. Inclusive sou grande amigo de um deles”, disse Ozal, que ao terminar a fala fitou os alemães, dando um riso amarelo, “Albert Pfeiffer é judeu, e um dos meus melhores amigos. E é parte do Kaisertreue, que salvou seus traseiros, e ainda vai salvar muitas outras vezes”. Ao dizer isso os alemães ficaram atônicos. Ficavam se encarando sem graça, sem acreditar no que Ozal dizia. O turco então concluiu: “E eu abandonei há muito tempo o islã. Jamais eu seria bem vindo de volta à minha terra natal”.

E assim Ozal vira as costas e os deixam lá. Ainda demoraria décadas até que a Nacional-Socialista se fixasse definitivamente, levando a Alemanha para a Segunda Guerra Mundial. Mas aquele era o embrião de algo tenebroso que ainda estava por vir...

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“E aí, seu frouxo!”, disse Heinrich Briegel, ao se aproximar do leito onde seu amigo Albert Pfeiffer estava, num hospital de campanha montado perto de Somme, “Faz meses que você não toma um tiro, não? E ainda tomou pra proteger um zé-ninguém. Só você mesmo, Pfeiffer”.

“Bah! Cala a boca, Briegel. Vou te dar a bala que arrancaram da minha perna pra você enfiar no seu cu”, disse Pfeiffer, brincando com Briegel.

“Sabe, eu gosto disso. Sem as formalidades do campo de batalha. As pessoas estranham quando veem gente do nosso esquadrão brincando uns com os outros quando estão fora de combate. A gente é tão centrado e focado quando estamos no fronte, mas no fundo nosso segredo mesmo é a amizade que existe fora dele”, disse Briegel, e Albert deu um sorriso, confirmando o que o amigo dizia. Vendo a perna toda enfaixada, Briegel prosseguiu, perguntando: “E essa perna aí? Foi feia a coisa?”.

“A única coisa feia foi tirar a bala lá de dentro. Mas já vai ficar bem, não acertou nada importante”.

“Ainda bem. Vai que acerta suas bolas. Você tá ficando velho e ainda não achou uma esposa. Sem um ou dois filhos pra cuidarem de você na velhice, você vai estar ferrado!”, disse Briegel, tirando sarro. Nesse momento uma jovem enfermeira apareceu na frente de Briegel, para checar como Pfeiffer estava.

“Senhor Pfeiffer, vim lhe dar seus remédios, para evitar infecção”, disse a enfermeira, entregando os comprimidos para Albert. Ele prontamente os engoliu com o copo d’água que ela lhe havia trazido. A enfermeira então prosseguiu: “O doutor disse que a recuperação está ótima, e em tempo recorde o senhor poderá voltar para seus deveres”.

Albert sempre via aquela enfermeira todo dia. Ela claramente era alemã, era loira, olhos claros, e por ser bem jovem tinha uma beleza magnífica. Ele ficava apenas sorrindo pra ela, praticamente hipnotizado, sem dizer nada. Muitas das instruções que ela passava, Pfeiffer simplesmente não fazia, por não prestar atenção um único momento no que ela dizia.

“Senhor Pfeiffer? O senhor entendeu?”, perguntou a enfermeira. Albert então voltou a si, e estava com uma cara de dúvida no rosto.

“Não tem problema não, senhorita...”, disse Briegel, vendo o crachá no peito da donzela, “Natalia... Braun. Natalia Braun. Tenho certeza que meu amigo entendeu tudinho que a senhora falou”, nessa hora Briegel se voltou para o amigo e deu uma piscadela, “Amputar a perna será algo difícil, mas ele com certeza vai aproveitar a dispensa do serviço militar para se dedicar a cuidar do seu jardim”.

“O QUÊ?”, perguntou Albert, gritando. Era possível ouvir os “shhh” das enfermeiras nas redondezas, pedindo silêncio. Natalia Braun deu risada vendo a cena, e pediu licença, deixando Briegel e Pfeiffer a sós.

“É brincadeira! Sua perna está ótima, e logo você vai ficar bem”, disse Briegel, depois que a enfermeira saiu, “Mas mudando de assunto, achei ela bonitinha! E pela sua cara de besta com um sorriso de orelha a orelha, você também achou ela bonitinha. Poderia tentar chamar ela pra sair, pega o contato dela!”.

“Acho melhor não. Sei lá. Ela deve ter acabado de fazer dezoito. E eu tô com quarenta e seis, e solteiro”, disse Pfeiffer, “O que eu vou fazer com uma menina de dezoito anos?”.

“Ah, é bem capaz que ela te deixe sem ar mesmo. Mas tenta fazer de quatro, não deixa ela montar em você não! Essas novinhas vão te deixar em ar se fizerem isso contigo”, brincou Briegel, mas depois de tirar sarro, voltou a falar um pouco mais sério: “Está mais que na hora de você se casar, meu amigo. Você é só três anos mais novo que eu”.

“E por que você não se casa de novo?”, disse Pfeiffer, provocando.

Nessa hora Briegel ficou em silêncio, virando o rosto levemente pra baixo. Por mais que a situação parecesse constrangedora, Albert percebera que seu amigo estava com um leve sorriso no seu rosto.

“Eu não me caso novamente porque já tive um amor. Um grande amor”, disse Briegel.

“Dominique...”, disse Albert, lembrando da falecida esposa do amigo.

“Mas infelizmente, a vida quis que eu a perdesse”, disse Briegel, que embora estivesse profundamente emocionado, não derrubava uma única lágrima, “E nenhuma mulher do mundo seria um porcento do que a Dominique foi pra mim”.

Nessa hora Briegel tirou seu relógio de bolso, o mostrando, ainda fechado, para Albert. Pela feição no rosto de Heinrich Briegel, havia algo lá dentro que ele queria lhe mostrar. Uma coisa que ele guardava como um segredo. Uma coisa que até então Briegel nunca havia revelado.

“Eu nunca te mostrei isso. Na verdade eu nunca mostrei isso a ninguém, mas eu carrego a Dominique comigo a cada momento”, disse Briegel, balançando o relógio de bolso, “E acho que é por isso que nunca nada me aconteceu no campo de batalha, por mais dura que a luta fosse”.

Albert Pfeiffer ficou em silêncio, observando o amigo. O relógio de bolso era dourado, e do lado de fora era liso, muito bem cuidado, apesar do intenso uso. Ao liberar a trava, de modo que pudesse ver os ponteiros que marcava a hora do lado de dentro, Briegel voltou o relógio para o amigo. De primeira ele não entendeu, o relógio apenas dizia onze e cinquenta. Mas ao reparar na tampa, vira um baixo relevo, muito bem gravado, e extremamente realista, na parte de dentro. Ele não tinha nenhuma dúvida de quem era aquela pessoa.

“Não acredito! Dominique?”, disse Pfeiffer, assustado com a verossimilhança com a falecida esposa de Briegel.

“Nos momentos de desespero, quando preciso de coragem, é esse sorriso cravejado nesse relógio que é meu porto seguro”, disse Briegel, fechando o relógio, e o pressionando contra seu peito, “Dominique foi a mulher que eu mais amei no mundo, e viverá eternamente dentro do meu coração...”.

Continua...

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