Amber - Kaisertreue (3)
15 de agosto de 1916
03h14
Quase dois meses haviam passado, e cada vez mais aquela batalha pelo domínio da região do Somme parecia mais e mais distante de acabar. O dia havia sido difícil, e as imagens da batalha não deixavam a mente de Heinrich Briegel. Acordado no meio da noite por conta de um pesadelo, Briegel não conseguia mais agarrar no sono. Fazia semanas que não tomava banho, ou dormia numa cama confortável. Isso unido ao estresse inevitável da guerra, refletia em seu corpo. Suas mãos tremiam, mesmo longe da batalha.
Caminhou por entre as trincheiras e observou o lado inimigo. Refletores rasgavam os céus, e era possível ver uma parca luz da claridade das fogueiras vindo de lá. Nesse momento Briegel pegou um cigarro, o colocou na boca, e riscou um fósforo para acendê-lo. Deu a primeira tragada e soltou lentamente a fumaça pelo nariz. A lua cheia no céu daquela noite iluminava tudo com uma pálida luz azulada clara. Então tragou mais uma vez o cigarro. Nesse momento Briegel esticou sua mão, e percebera que não estava mais tremendo como antes.
“Perdeu o sono, capitão?”, disse Pfeiffer, se aproximando de Briegel, caminhando no topo da trincheira ao lado.
“Pfeiffer, você por aqui?”, disse Briegel, virando o rosto para o amigo, “Hoje é o dia de você ficar na guarda noturna?”.
“Sim. Mas isso nem é tanto problema. Já tem semanas que não consigo dormir mesmo. Pelo menos a noite passa mais rápido, já que o máximo que consigo fazer é tirar alguns cochilos esporádicos”, disse Pfeiffer.
Briegel então abriu sua caixa de cigarros, oferecendo um pro amigo.
“Vamos dar uma volta então?”, disse Briegel, oferecendo um cigarro, “Por minha conta”.
Pfeiffer acendeu um cigarro e foi caminhando com Briegel, batendo papo. Todo dia parecia que algo de pior acontecia. Estar na guerra não é como um período prazeroso da vida em que perdemos a noção do tempo. Todas as horas, minutos, tudo parece passar ainda mais lentamente. Ainda mais quando se passa matando pessoas. Matar ou morrer. É a lei suprema no campo de batalha. E talvez apenas os poucos que conseguem lidar com as consequências disso, são os que conseguem sobreviver por mais um dia, mais uma hora, minuto ou mesmo segundo.
“Ei, espera um pouco”, disse Briegel, ao avistar alguém deitado no chão, “Fica aí que vou ver aquilo ali”, pediu Briegel para Pfeiffer, que ficou nas redondezas, de olho no amigo. Ao se aproximar da pessoa deitada na trincheira, Briegel percebeu que se tratava de um soldado alemão. Sua garganta havia sido cortada, e pelo fato do corpo ainda estar quente, com certeza era algo que aconteceu há não muito tempo.
Mas Briegel nem teve tempo de chamar Albert Pfeiffer. Percebera que uma arma fora sacada por uma pessoa na sua frente. Ao subir seu olhar, vira o uniforme azulado. E ao ver o rosto de Heinrich Briegel, o jovem soldado ficou abismado.
“Se eu fosse você, eu não atiraria”, disse Briegel, com sua voz grave, mas calma. O jovem estava tremendo de medo, era visível vendo o brilho da lua refletida na arma, “Suas mãos estão tremendo. Porquê?”.
“Je ne parle pas allemand. Je parle français”, disse o jovem, em francês, afirmando que não falava alemão, e sim francês.
“Oui, c'est vrai”, disse Briegel, num francês impecável, que até assustou o francês, “Me perdoe. Assim está melhor?”.
O jovem ficou calado, mas ainda tremia apontando a arma para Briegel.
“Escuta, abaixa essa arma, filho. Você apenas deu sorte com esse soldado, mas a sorte uma hora acaba. E se você puxar o gatilho, será o seu fim”, enquanto dizia, Briegel transmitia uma segurança enorme por meio de suas palavras, “Tremendo desse jeito você nunca vai me acertar. E mesmo que acerte, não vai me ferir”, nesse momento ao dizer isso Briegel percebera que Albert Pfeiffer estava com a arma engatilhada logo ao seu lado. A situação estava praticamente sobre seu controle. Briegel prosseguiu: “Quem vai te ferir mesmo é a pessoa segurando o rifle do seu lado direito. Ele é um batedor extremamente experiente, e se ele é capaz de acertar alvos a quinhentos, oitocentos metros no meio da testa, pode ter certeza que um tiro a dois ou três metros de distância ele nunca vai errar”.
Nessa hora o francês cometeu um descuido, virando o rosto pro lado direito, e viu Albert Pfeiffer com sua Martini-Henry mirando nele, pronto para puxar o gatilho. Nesse momento Briegel avançou, e com um rápido movimento tirou a arma dele. O garoto nem teve tempo de reação. Apenas ficou com a expressão de susto, sem acreditar na velocidade que tudo ocorreu.
“Pronto, isso aqui pode machucar alguém”, disse Briegel, tirando pente e a bala engatilhada, jogando a arma sem munição no chão, “Pode baixar a Martini, Pfeiffer, eu assumo daqui”, e Pfeiffer então baixou a arma e sentou no muro da trincheira, enquanto Briegel puxava dois caixotes de madeira, os colocando um do lado do outro, “Não é a melhor cadeira, mas senta aí, garoto. Você foi corajoso. E teve sorte em dobro”.
“Em dobro?”, disse o garoto, hesitando em se sentar.
“É. Talvez teve sorte ao matar esse soldado do nosso lado sem problema, mas sorte mesmo foi encontrar justamente a gente”, disse Briegel, se sentando, e pedindo para o jovem também se acomodar, “Acredite, não queremos e não vamos te fazer mal. Quero mesmo apenas conversar. Senta aí. Fuma?”.
O garoto pegou um cigarro e Briegel jogou a caixa de fósforos. O garoto não sabia riscar um fósforo. Vendo a dificuldade dele, Briegel acendeu seu cigarro, riscando o fósforo para ele. O garoto deu um tragada, e começou a tossir.
“Ora, ora. Mais um que acha que seria mais homem se fumasse um cigarro”, brincou Briegel, e nesse momento Pfeiffer deu risada, vendo a situação, “Essa merda é tão boa que eu não duvido que deve fazer um mal danado. Como bebida, mulheres, e jogos”.
O garoto se sentou no caixote. Tentava tragar o cigarro, mas não conseguia, e sempre se engasgava. Briegel pode ver que o garoto devia ser realmente jovem. Quase não tinha barba, tinha ainda espinhas e cravos no rosto, e quase nenhuma força muscular. Devia ser virgem de tudo.
“Seu nome?”, perguntou Pfeiffer, quase pedindo o cigarro para que ele fumasse.
“Pierre”, disse o jovem, “Não imaginava encontrar alguém do Kaisertreue. Se eu matasse alguém como o senhor, com certeza seria recebido como um herói”
Briegel recuou um pouco, abismado. No fundo aquilo soava como um elogio, por mais que parecesse homicida.
“Verdade? O que matar um de nós traria de diferente de matar outros soldados do Império Alemão?”, perguntou Pfeiffer, também igualmente abismado com a fama que eles tinham na boca do inimigo.
“Era tudo o que queria. Matar um Kaisertreue seria como uma flor”, disse o jovem Pierre, “Uma flor que usaria para oferecer pro meu irmão”.
“Seu irmão?”, perguntou Briegel, “Ele está no exército?”.
“Sim. Ele morreu no dia primeiro de julho”, disse Pierre, com pesar nas palavras, “Assim como tantos outros”.
Nessa hora Briegel tomou um ar. Como seu cigarro estava no chão, o jogou no chão e pisou nele, apagando.
“Talvez seja por isso que tantos morrem. Correm no meio da terra de ninguém com suas baionetas apontadas, querendo matar alemães, um Kaisertreue, ou alguém de alta patente. Mas no meio desse desespero não percebem que se tornam alvos fáceis, uma vez que estão tão ávidos pelo sucesso”, explicou Pfeiffer, relembrando as chacinas desde que chegara em Somme, “É verdade que seres humanos são frágeis, eu sou tão frágil quanto qualquer outra pessoa. E mesmo com treinamento militar, minhas chances não são tão grandes quanto parecem. Se eu levar um tiro, morro como qualquer outra pessoa”, explicou Pfeiffer.
“Imprudência. A ausência do medo”, disse Briegel, completando o que Pfeiffer havia dito, “No fundo, nós do Kaisertreue somos medrosos. Mas é o medo que nos protege de não avançarmos igual loucos, planejar táticas, e executar com cuidado cada passo. Talvez isso tire um pouco a visão de que somos invencíveis que vocês têm de nós”.
O jovem Pierre confirmou com a cabeça.
“Eu tenho um filho um pouco mais velho que você, Pierre”, continuou Briegel, “E quero aproveitar esse papo e fazer um gancho com outra coisa: o fato de que nossa vida é feita de escolhas. E ao fazermos uma escolha, muitas vezes temos que abandonar outras”, disse Briegel, olhando nos olhos do jovem francês, “Você, por exemplo, por que se alistou para lutar nessa guerra?”.
“Eu queria ser um herói”, disse Pierre, “Queria que pessoas se lembrassem de mim. Queria proteger a França de ser dominada pelos alemães”.
Era curioso como mesmo ao ouvir um ponto de vista que, tecnicamente, ia contra sua motivação para a batalha, Briegel e Pfeiffer sabiam manter uma atitude madura e compreensiva, mesmo que esse ponto de vista significasse algo que afligisse suas vidas.
“Essa foi a sua escolha. Ir para a guerra e voltar como um herói”, disse Briegel, organizando os pensamentos, “Mas você tem noção das coisas que você teve que deixar pra trás ao ter feito essa escolha?”.
“Talvez uma coisa ou outra, creio”, disse Pierre. Era claro o quão superficial era seu ponto de vista.
“Pois então me ouça, garoto. Nunca pessoas que voltam de guerras voltam da mesma maneira que entraram. A guerra muda as pessoas. Ver mortes ao seu redor, viver enfurnado numa trincheira suja e fedida, o medo constante de ser morto a qualquer momento, isso tudo pode não parecer, mas causa uma mudança imensa, seja internamente ou exteriormente numa pessoa”, explicou Briegel, gesticulando, “Eu te disse que fazemos escolhas na vida. E seja no meio de uma guerra, ou na vida imensa que tem lá fora desse campo de batalha, sempre sofremos as consequências dessas escolhas”.
“Isso é o seu ponto de vista. Eu não concordo com isso”, disse Pierre, “Eu escolhi lutar essa guerra, e só vejo benefícios em ir para o fronte”.
“Talvez não concorde porque você ainda é jovem. Mas eu também fiz uma escolha, e vou dar um exemplo sobre minha vida”, disse Heinrich Briegel, parando um momento para raciocinar, “Eu tenho um filho, mais ou menos na sua idade. Me tornei pai jovem, e tinha medo dele cometer os mesmos erros que eu cometi quando era jovem. Por isso, tive que ser um pai rígido, autoritário, machista e cabeça-dura. Eu não permitia brincar, nem mesmo fazer carinho. Era uma vida regrada a disciplina, e quando me desobedecia, era punido muito além do que era normal, com ameaças, gritos, humilhações, impondo respeito com base do medo”, nesse momento Briegel via como um filme passando em sua cabeça, “E hoje eu vejo que embora hoje ele seja um homem feito, não tenho um filho pra conversar, pra sair para beber alguma coisa, ou mesmo para ser meu amigo. Isso sem contar os diversos traumas que devo ter criado nele, por ter sido tão rígido, tentando controlar o que ele queria ser quando crescesse, suas escolhas, seu destino”.
“Se o senhor pudesse voltar no tempo, faria diferente?”, perguntou Pfeiffer, uma vez que Pierre apenas ouvia aquilo calado. Briegel virou o rosto para seu amigo Albert, e com um profundo pesar, o respondeu:
“Sem dúvida. Eu teria abraçado mais, não teria chegado em casa bêbado, não teria dito que ele era um ‘vagabundo que só me dava dívidas’, e teria feito noventa por cento das coisas diferentes”, respondeu Briegel, emocionado, mas sem derrubar uma única lágrima, “Mas foi minha escolha, e agora é tarde. O que na infância foram gritos de ‘cala essa sua boca, senão vou te chutar pra fora dessa casa!’, hoje, adulto, virou um muro intransponível entre nós. Roland logo terá sua casa, sua família, e cada vez mais será mais e mais raro de vê-lo novamente”.
“Eu perdi meu irmão. Quer dizer que isso foi consequência da nossa escolha?”, perguntou Pierre, com lágrimas nos olhos.
“A questão da escolha que fazemos é exatamente essa. Podemos nos arrepender, e ficar pensando que as coisas teriam sido diferentes. Afinal, não podemos voltar no tempo e tomar outro rumo. E um tempo que passou, passou. E grande parte das escolhas não podemos nunca mais mudar, por mais que nos esforcemos”, disse Briegel, tirando uma foto do bolso do seu jaleco, “Nessa foto tem todos do Kaisertreue. Talvez você ache que todos nós temos histórias gloriosas, mas vou te contar a verdade sobre todos, e isso vai sem dúvida tirar toda a aparência de ‘deuses da guerra’ que você eventualmente tenha”, Briegel apontou para Horvath na foto, “Vou começar com esse grandão aqui, esse grisalho”.
“Ele parece mais velho que você”, disse Pierre.
“Sim, e ele é. Rudolf Horvath, húngaro, já passou dos sessenta anos”, Briegel então fez uma pausa, como se fosse se corrigir, “Na verdade, Horvath Rudolf, já que na Hungria eles invertem, falando o sobrenome antes do nome. Soldado exemplar, um grande coringa. Sabe usar todo raio de armamento, veículos, cavalos, tudo”, explicou Briegel, e Pierre ficou abismado.
“Horvath poderia ser um general. Acima até do Durchbruchmüller”, disse Pfeiffer.
“E porquê ele não é?”, perguntou Pierre, sem entender.
“Porque ele é homossexual. Horvath nunca escondeu isso. Mesmo se você o encontrasse, até estranharia. Ele não tem nada de afeminado, ele é bem sério. Mas o rabo dele deve dar pra colocar uma garrafa, de tão arregaçado que deve ser”, brincou Briegel, e Pierre ficou abismado, “Claro que as pessoas sabem que ele é gay. Mas evitam ficar próximo dele, evitam amizade, como se isso fosse uma doença. Ridículo. Isso sem contar uma ‘esposa’ de fachada que ele tem, que ele a sustenta com uma gorda mesada, para manter um mínimo das aparências. Mas eu conheço o real esposo dele. E vendo os dois, dá pra ver que existe um grande amor, independente de serem dois homens”.
Pierre estava em silêncio. Não conseguia acreditar nisso. Uma pessoa que é um soldado extremamente eficiente impedido de prosseguir nas patentes por causa da opção sexual.
“Se ele ficou abismado, imagino quando você contar a estória do Ozal, capitão”, brincou Pfeiffer, pedindo um cigarro.
“Por que não conta você, então?”, disse Briegel, lançando a caixa de cigarros para seu amigo. Pfeiffer acendeu um cigarro e prosseguiu:
“Ozal é esse da cicatriz na foto, do lado do Horvath”, disse Pfeiffer, acendendo o cigarro, “Ele é turco, e vivia uma vida tranquila entre os otomanos. Até que ele fez também sua escolha, e decidiu abandonar o islã”, nessa hora Pfeiffer fez uma pausa, adicionando suspense pelo que estava por vir, “E para a grande maioria dos muçulmanos, abandonar a fé muçulmana é algo punível com a morte”.
“Mas ele ainda está vivo. Pelo visto ele conseguiu escapar”, disse Pierre, mas a expressão triste de Briegel e Pfeiffer já prescindiam que essa estória não terminaria bem:
“Ozal nunca mais viu sua família. Não pisou mais na sua terra natal. E em uma tentativa de assassinato, deixaram em seu rosto essa cicatriz imensa, da testa até o queixo, além de perder a visão do olho ferido”, completou Pfeiffer. Pierre não podia acreditar.
“Esse aqui é Schwarz. Ele é alemão, e é meu genro. Se casou há poucos anos com minha filha mais velha, Brigitte”, disse Briegel, apontando para a foto, “Meu braço direito, é um ótimo genro. Mas ele é jovem, e eu vejo que no fundo tudo o que ele mais queria era estar fora de todo esse caos, e aproveitando a vida de casado com minha filha. Nem que fosse apenas ficar na sua casa, com a lareira ligada, vendo o rosto dela iluminado pelas chamas. Quietinho mesmo, sem fazer nada”.
“E esse aqui?”, apontou Pierre, para Pfeiffer na foto, “Deve ser o senhor Pfeiffer”.
“Bom, o Albert é talvez uma das únicas pessoas do mundo que posso chamar de ‘amigo’”, brincou Briegel, dando um pequeno sorriso para o amigo.
“Depois de tudo o que passamos você ainda me chama de ‘amigo’, Briegel?”, respondeu Pfeiffer, também brincando.
“Esse judeu aí coloca queijo em cima da carne, e nunca dispensou uma boa carne de porco”, disse Briegel, como se confessasse os ‘pecados judaicos’ do amigo, “Ele é pouca coisa mais novo que eu, passou dos quarenta, e está solteiro ainda. Se esse aí me seguisse menos, com certeza já estaria com uma esposa peituda e uns três pimpolhos o esperando em casa”.
“Do jeito que você fala parece que tem outro gay no Kaisertreue”, brincou Pfeiffer, debochando do amigo, “Mas tudo o que eu fiz foi por escolha própria. Eu sabia das coisas que eu estava deixando de lado, e não me arrependo, por mais que minha vida não seja perfeita”.
“Realmente, saber as estórias de cada um de vocês desmistifica totalmente a visão que tinha de vocês”, disse Pierre, confirmando com a cabeça.
“Lutar numa guerra não vai tornar ninguém ‘mais homem’, Pierre. E entre as escolhas que podemos fazer na vida, essa é a escolha mais errada de todas”, disse Briegel, enfatizando, “Eu devia ter sido um pai melhor, ter preocupado menos em trabalhar, em sustentar, e mais em ser presente, em ser receptivo, e ter sido amigo dos meus filhos. Ao invés de ter um falso respeito na base dos gritos, castigos, humilhações, e disciplina incontestável, ter respeito através do exemplo, do companheirismo, da amizade e confiança”.
Pierre nessa hora ficou com os olhos cheios de lágrimas. Era como se um peso enorme estivesse sendo levado para fora dos seus ombros. Briegel prosseguiu:
“Eu me tornei pai muito cedo. Perdi minha esposa muito cedo também. Eu era imaturo, inseguro, e colhi as consequências da minha escolha. Agora eles estão crescidos, e é tarde demais. E embora meus filhos me tratem desse jeito, eu sei que a culpa é totalmente minha. No lugar de castigar, devia ter ensinado. No lugar de gritar e xingar, eu devia ter ouvido. No lugar de chegar estressado em casa, devia ter deixado as preocupações no trabalho. No lugar de negar o abraço, devia ter enchido todos eles de beijos e abraços. E agora é tarde demais”.
“Mas o senhor ainda pode mudar! O senhor pode voltar a ter contato com seus filhos!”, disse Pierre, como se tivesse uma esperança. Mas Briegel balançou negativamente a cabeça, respondendo:
“Isso só acontece em filmes de quinta categoria. Não tem como mudar isso. A vida real não é assim”, disse Briegel, cabisbaixo, “Na vida real a gente só tem uma chance, Pierre. Uma porcaria de uma única chance. E uma vez que passa, sai voando na frente dos nossos olhos. E uma vez perdida, é como na guerra, não tem como voltar atrás”.
O jovem Pierre nunca imaginou que sua incursão quase que suicida sozinho para o lado inimigo terminaria assim. Não apenas encontrando membros do lendário Kaisertreue, mas também recebendo deles a maior lição que recebera em sua vida. Pierre estava pronto para lutar e morrer. Mas ouvir aquelas palavras de Briegel, foi praticamente um renascimento.
“Volte para o outro lado, Pierre. Nunca foi nossa ideia fazer nada que te machucasse. Gostaríamos apenas que pensasse na sua vida”, disse Pfeiffer, “O que acha que você está perdendo ao fazer a escolha de lutar no meio desse inferno?”.
03h14
Quase dois meses haviam passado, e cada vez mais aquela batalha pelo domínio da região do Somme parecia mais e mais distante de acabar. O dia havia sido difícil, e as imagens da batalha não deixavam a mente de Heinrich Briegel. Acordado no meio da noite por conta de um pesadelo, Briegel não conseguia mais agarrar no sono. Fazia semanas que não tomava banho, ou dormia numa cama confortável. Isso unido ao estresse inevitável da guerra, refletia em seu corpo. Suas mãos tremiam, mesmo longe da batalha.
Caminhou por entre as trincheiras e observou o lado inimigo. Refletores rasgavam os céus, e era possível ver uma parca luz da claridade das fogueiras vindo de lá. Nesse momento Briegel pegou um cigarro, o colocou na boca, e riscou um fósforo para acendê-lo. Deu a primeira tragada e soltou lentamente a fumaça pelo nariz. A lua cheia no céu daquela noite iluminava tudo com uma pálida luz azulada clara. Então tragou mais uma vez o cigarro. Nesse momento Briegel esticou sua mão, e percebera que não estava mais tremendo como antes.
“Perdeu o sono, capitão?”, disse Pfeiffer, se aproximando de Briegel, caminhando no topo da trincheira ao lado.
“Pfeiffer, você por aqui?”, disse Briegel, virando o rosto para o amigo, “Hoje é o dia de você ficar na guarda noturna?”.
“Sim. Mas isso nem é tanto problema. Já tem semanas que não consigo dormir mesmo. Pelo menos a noite passa mais rápido, já que o máximo que consigo fazer é tirar alguns cochilos esporádicos”, disse Pfeiffer.
Briegel então abriu sua caixa de cigarros, oferecendo um pro amigo.
“Vamos dar uma volta então?”, disse Briegel, oferecendo um cigarro, “Por minha conta”.
Pfeiffer acendeu um cigarro e foi caminhando com Briegel, batendo papo. Todo dia parecia que algo de pior acontecia. Estar na guerra não é como um período prazeroso da vida em que perdemos a noção do tempo. Todas as horas, minutos, tudo parece passar ainda mais lentamente. Ainda mais quando se passa matando pessoas. Matar ou morrer. É a lei suprema no campo de batalha. E talvez apenas os poucos que conseguem lidar com as consequências disso, são os que conseguem sobreviver por mais um dia, mais uma hora, minuto ou mesmo segundo.
“Ei, espera um pouco”, disse Briegel, ao avistar alguém deitado no chão, “Fica aí que vou ver aquilo ali”, pediu Briegel para Pfeiffer, que ficou nas redondezas, de olho no amigo. Ao se aproximar da pessoa deitada na trincheira, Briegel percebeu que se tratava de um soldado alemão. Sua garganta havia sido cortada, e pelo fato do corpo ainda estar quente, com certeza era algo que aconteceu há não muito tempo.
Mas Briegel nem teve tempo de chamar Albert Pfeiffer. Percebera que uma arma fora sacada por uma pessoa na sua frente. Ao subir seu olhar, vira o uniforme azulado. E ao ver o rosto de Heinrich Briegel, o jovem soldado ficou abismado.
“Se eu fosse você, eu não atiraria”, disse Briegel, com sua voz grave, mas calma. O jovem estava tremendo de medo, era visível vendo o brilho da lua refletida na arma, “Suas mãos estão tremendo. Porquê?”.
“Je ne parle pas allemand. Je parle français”, disse o jovem, em francês, afirmando que não falava alemão, e sim francês.
“Oui, c'est vrai”, disse Briegel, num francês impecável, que até assustou o francês, “Me perdoe. Assim está melhor?”.
O jovem ficou calado, mas ainda tremia apontando a arma para Briegel.
“Escuta, abaixa essa arma, filho. Você apenas deu sorte com esse soldado, mas a sorte uma hora acaba. E se você puxar o gatilho, será o seu fim”, enquanto dizia, Briegel transmitia uma segurança enorme por meio de suas palavras, “Tremendo desse jeito você nunca vai me acertar. E mesmo que acerte, não vai me ferir”, nesse momento ao dizer isso Briegel percebera que Albert Pfeiffer estava com a arma engatilhada logo ao seu lado. A situação estava praticamente sobre seu controle. Briegel prosseguiu: “Quem vai te ferir mesmo é a pessoa segurando o rifle do seu lado direito. Ele é um batedor extremamente experiente, e se ele é capaz de acertar alvos a quinhentos, oitocentos metros no meio da testa, pode ter certeza que um tiro a dois ou três metros de distância ele nunca vai errar”.
Nessa hora o francês cometeu um descuido, virando o rosto pro lado direito, e viu Albert Pfeiffer com sua Martini-Henry mirando nele, pronto para puxar o gatilho. Nesse momento Briegel avançou, e com um rápido movimento tirou a arma dele. O garoto nem teve tempo de reação. Apenas ficou com a expressão de susto, sem acreditar na velocidade que tudo ocorreu.
“Pronto, isso aqui pode machucar alguém”, disse Briegel, tirando pente e a bala engatilhada, jogando a arma sem munição no chão, “Pode baixar a Martini, Pfeiffer, eu assumo daqui”, e Pfeiffer então baixou a arma e sentou no muro da trincheira, enquanto Briegel puxava dois caixotes de madeira, os colocando um do lado do outro, “Não é a melhor cadeira, mas senta aí, garoto. Você foi corajoso. E teve sorte em dobro”.
“Em dobro?”, disse o garoto, hesitando em se sentar.
“É. Talvez teve sorte ao matar esse soldado do nosso lado sem problema, mas sorte mesmo foi encontrar justamente a gente”, disse Briegel, se sentando, e pedindo para o jovem também se acomodar, “Acredite, não queremos e não vamos te fazer mal. Quero mesmo apenas conversar. Senta aí. Fuma?”.
O garoto pegou um cigarro e Briegel jogou a caixa de fósforos. O garoto não sabia riscar um fósforo. Vendo a dificuldade dele, Briegel acendeu seu cigarro, riscando o fósforo para ele. O garoto deu um tragada, e começou a tossir.
“Ora, ora. Mais um que acha que seria mais homem se fumasse um cigarro”, brincou Briegel, e nesse momento Pfeiffer deu risada, vendo a situação, “Essa merda é tão boa que eu não duvido que deve fazer um mal danado. Como bebida, mulheres, e jogos”.
O garoto se sentou no caixote. Tentava tragar o cigarro, mas não conseguia, e sempre se engasgava. Briegel pode ver que o garoto devia ser realmente jovem. Quase não tinha barba, tinha ainda espinhas e cravos no rosto, e quase nenhuma força muscular. Devia ser virgem de tudo.
“Seu nome?”, perguntou Pfeiffer, quase pedindo o cigarro para que ele fumasse.
“Pierre”, disse o jovem, “Não imaginava encontrar alguém do Kaisertreue. Se eu matasse alguém como o senhor, com certeza seria recebido como um herói”
Briegel recuou um pouco, abismado. No fundo aquilo soava como um elogio, por mais que parecesse homicida.
“Verdade? O que matar um de nós traria de diferente de matar outros soldados do Império Alemão?”, perguntou Pfeiffer, também igualmente abismado com a fama que eles tinham na boca do inimigo.
“Era tudo o que queria. Matar um Kaisertreue seria como uma flor”, disse o jovem Pierre, “Uma flor que usaria para oferecer pro meu irmão”.
“Seu irmão?”, perguntou Briegel, “Ele está no exército?”.
“Sim. Ele morreu no dia primeiro de julho”, disse Pierre, com pesar nas palavras, “Assim como tantos outros”.
Nessa hora Briegel tomou um ar. Como seu cigarro estava no chão, o jogou no chão e pisou nele, apagando.
“Talvez seja por isso que tantos morrem. Correm no meio da terra de ninguém com suas baionetas apontadas, querendo matar alemães, um Kaisertreue, ou alguém de alta patente. Mas no meio desse desespero não percebem que se tornam alvos fáceis, uma vez que estão tão ávidos pelo sucesso”, explicou Pfeiffer, relembrando as chacinas desde que chegara em Somme, “É verdade que seres humanos são frágeis, eu sou tão frágil quanto qualquer outra pessoa. E mesmo com treinamento militar, minhas chances não são tão grandes quanto parecem. Se eu levar um tiro, morro como qualquer outra pessoa”, explicou Pfeiffer.
“Imprudência. A ausência do medo”, disse Briegel, completando o que Pfeiffer havia dito, “No fundo, nós do Kaisertreue somos medrosos. Mas é o medo que nos protege de não avançarmos igual loucos, planejar táticas, e executar com cuidado cada passo. Talvez isso tire um pouco a visão de que somos invencíveis que vocês têm de nós”.
O jovem Pierre confirmou com a cabeça.
“Eu tenho um filho um pouco mais velho que você, Pierre”, continuou Briegel, “E quero aproveitar esse papo e fazer um gancho com outra coisa: o fato de que nossa vida é feita de escolhas. E ao fazermos uma escolha, muitas vezes temos que abandonar outras”, disse Briegel, olhando nos olhos do jovem francês, “Você, por exemplo, por que se alistou para lutar nessa guerra?”.
“Eu queria ser um herói”, disse Pierre, “Queria que pessoas se lembrassem de mim. Queria proteger a França de ser dominada pelos alemães”.
Era curioso como mesmo ao ouvir um ponto de vista que, tecnicamente, ia contra sua motivação para a batalha, Briegel e Pfeiffer sabiam manter uma atitude madura e compreensiva, mesmo que esse ponto de vista significasse algo que afligisse suas vidas.
“Essa foi a sua escolha. Ir para a guerra e voltar como um herói”, disse Briegel, organizando os pensamentos, “Mas você tem noção das coisas que você teve que deixar pra trás ao ter feito essa escolha?”.
“Talvez uma coisa ou outra, creio”, disse Pierre. Era claro o quão superficial era seu ponto de vista.
“Pois então me ouça, garoto. Nunca pessoas que voltam de guerras voltam da mesma maneira que entraram. A guerra muda as pessoas. Ver mortes ao seu redor, viver enfurnado numa trincheira suja e fedida, o medo constante de ser morto a qualquer momento, isso tudo pode não parecer, mas causa uma mudança imensa, seja internamente ou exteriormente numa pessoa”, explicou Briegel, gesticulando, “Eu te disse que fazemos escolhas na vida. E seja no meio de uma guerra, ou na vida imensa que tem lá fora desse campo de batalha, sempre sofremos as consequências dessas escolhas”.
“Isso é o seu ponto de vista. Eu não concordo com isso”, disse Pierre, “Eu escolhi lutar essa guerra, e só vejo benefícios em ir para o fronte”.
“Talvez não concorde porque você ainda é jovem. Mas eu também fiz uma escolha, e vou dar um exemplo sobre minha vida”, disse Heinrich Briegel, parando um momento para raciocinar, “Eu tenho um filho, mais ou menos na sua idade. Me tornei pai jovem, e tinha medo dele cometer os mesmos erros que eu cometi quando era jovem. Por isso, tive que ser um pai rígido, autoritário, machista e cabeça-dura. Eu não permitia brincar, nem mesmo fazer carinho. Era uma vida regrada a disciplina, e quando me desobedecia, era punido muito além do que era normal, com ameaças, gritos, humilhações, impondo respeito com base do medo”, nesse momento Briegel via como um filme passando em sua cabeça, “E hoje eu vejo que embora hoje ele seja um homem feito, não tenho um filho pra conversar, pra sair para beber alguma coisa, ou mesmo para ser meu amigo. Isso sem contar os diversos traumas que devo ter criado nele, por ter sido tão rígido, tentando controlar o que ele queria ser quando crescesse, suas escolhas, seu destino”.
“Se o senhor pudesse voltar no tempo, faria diferente?”, perguntou Pfeiffer, uma vez que Pierre apenas ouvia aquilo calado. Briegel virou o rosto para seu amigo Albert, e com um profundo pesar, o respondeu:
“Sem dúvida. Eu teria abraçado mais, não teria chegado em casa bêbado, não teria dito que ele era um ‘vagabundo que só me dava dívidas’, e teria feito noventa por cento das coisas diferentes”, respondeu Briegel, emocionado, mas sem derrubar uma única lágrima, “Mas foi minha escolha, e agora é tarde. O que na infância foram gritos de ‘cala essa sua boca, senão vou te chutar pra fora dessa casa!’, hoje, adulto, virou um muro intransponível entre nós. Roland logo terá sua casa, sua família, e cada vez mais será mais e mais raro de vê-lo novamente”.
“Eu perdi meu irmão. Quer dizer que isso foi consequência da nossa escolha?”, perguntou Pierre, com lágrimas nos olhos.
“A questão da escolha que fazemos é exatamente essa. Podemos nos arrepender, e ficar pensando que as coisas teriam sido diferentes. Afinal, não podemos voltar no tempo e tomar outro rumo. E um tempo que passou, passou. E grande parte das escolhas não podemos nunca mais mudar, por mais que nos esforcemos”, disse Briegel, tirando uma foto do bolso do seu jaleco, “Nessa foto tem todos do Kaisertreue. Talvez você ache que todos nós temos histórias gloriosas, mas vou te contar a verdade sobre todos, e isso vai sem dúvida tirar toda a aparência de ‘deuses da guerra’ que você eventualmente tenha”, Briegel apontou para Horvath na foto, “Vou começar com esse grandão aqui, esse grisalho”.
“Ele parece mais velho que você”, disse Pierre.
“Sim, e ele é. Rudolf Horvath, húngaro, já passou dos sessenta anos”, Briegel então fez uma pausa, como se fosse se corrigir, “Na verdade, Horvath Rudolf, já que na Hungria eles invertem, falando o sobrenome antes do nome. Soldado exemplar, um grande coringa. Sabe usar todo raio de armamento, veículos, cavalos, tudo”, explicou Briegel, e Pierre ficou abismado.
“Horvath poderia ser um general. Acima até do Durchbruchmüller”, disse Pfeiffer.
“E porquê ele não é?”, perguntou Pierre, sem entender.
“Porque ele é homossexual. Horvath nunca escondeu isso. Mesmo se você o encontrasse, até estranharia. Ele não tem nada de afeminado, ele é bem sério. Mas o rabo dele deve dar pra colocar uma garrafa, de tão arregaçado que deve ser”, brincou Briegel, e Pierre ficou abismado, “Claro que as pessoas sabem que ele é gay. Mas evitam ficar próximo dele, evitam amizade, como se isso fosse uma doença. Ridículo. Isso sem contar uma ‘esposa’ de fachada que ele tem, que ele a sustenta com uma gorda mesada, para manter um mínimo das aparências. Mas eu conheço o real esposo dele. E vendo os dois, dá pra ver que existe um grande amor, independente de serem dois homens”.
Pierre estava em silêncio. Não conseguia acreditar nisso. Uma pessoa que é um soldado extremamente eficiente impedido de prosseguir nas patentes por causa da opção sexual.
“Se ele ficou abismado, imagino quando você contar a estória do Ozal, capitão”, brincou Pfeiffer, pedindo um cigarro.
“Por que não conta você, então?”, disse Briegel, lançando a caixa de cigarros para seu amigo. Pfeiffer acendeu um cigarro e prosseguiu:
“Ozal é esse da cicatriz na foto, do lado do Horvath”, disse Pfeiffer, acendendo o cigarro, “Ele é turco, e vivia uma vida tranquila entre os otomanos. Até que ele fez também sua escolha, e decidiu abandonar o islã”, nessa hora Pfeiffer fez uma pausa, adicionando suspense pelo que estava por vir, “E para a grande maioria dos muçulmanos, abandonar a fé muçulmana é algo punível com a morte”.
“Mas ele ainda está vivo. Pelo visto ele conseguiu escapar”, disse Pierre, mas a expressão triste de Briegel e Pfeiffer já prescindiam que essa estória não terminaria bem:
“Ozal nunca mais viu sua família. Não pisou mais na sua terra natal. E em uma tentativa de assassinato, deixaram em seu rosto essa cicatriz imensa, da testa até o queixo, além de perder a visão do olho ferido”, completou Pfeiffer. Pierre não podia acreditar.
“Esse aqui é Schwarz. Ele é alemão, e é meu genro. Se casou há poucos anos com minha filha mais velha, Brigitte”, disse Briegel, apontando para a foto, “Meu braço direito, é um ótimo genro. Mas ele é jovem, e eu vejo que no fundo tudo o que ele mais queria era estar fora de todo esse caos, e aproveitando a vida de casado com minha filha. Nem que fosse apenas ficar na sua casa, com a lareira ligada, vendo o rosto dela iluminado pelas chamas. Quietinho mesmo, sem fazer nada”.
“E esse aqui?”, apontou Pierre, para Pfeiffer na foto, “Deve ser o senhor Pfeiffer”.
“Bom, o Albert é talvez uma das únicas pessoas do mundo que posso chamar de ‘amigo’”, brincou Briegel, dando um pequeno sorriso para o amigo.
“Depois de tudo o que passamos você ainda me chama de ‘amigo’, Briegel?”, respondeu Pfeiffer, também brincando.
“Esse judeu aí coloca queijo em cima da carne, e nunca dispensou uma boa carne de porco”, disse Briegel, como se confessasse os ‘pecados judaicos’ do amigo, “Ele é pouca coisa mais novo que eu, passou dos quarenta, e está solteiro ainda. Se esse aí me seguisse menos, com certeza já estaria com uma esposa peituda e uns três pimpolhos o esperando em casa”.
“Do jeito que você fala parece que tem outro gay no Kaisertreue”, brincou Pfeiffer, debochando do amigo, “Mas tudo o que eu fiz foi por escolha própria. Eu sabia das coisas que eu estava deixando de lado, e não me arrependo, por mais que minha vida não seja perfeita”.
“Realmente, saber as estórias de cada um de vocês desmistifica totalmente a visão que tinha de vocês”, disse Pierre, confirmando com a cabeça.
“Lutar numa guerra não vai tornar ninguém ‘mais homem’, Pierre. E entre as escolhas que podemos fazer na vida, essa é a escolha mais errada de todas”, disse Briegel, enfatizando, “Eu devia ter sido um pai melhor, ter preocupado menos em trabalhar, em sustentar, e mais em ser presente, em ser receptivo, e ter sido amigo dos meus filhos. Ao invés de ter um falso respeito na base dos gritos, castigos, humilhações, e disciplina incontestável, ter respeito através do exemplo, do companheirismo, da amizade e confiança”.
Pierre nessa hora ficou com os olhos cheios de lágrimas. Era como se um peso enorme estivesse sendo levado para fora dos seus ombros. Briegel prosseguiu:
“Eu me tornei pai muito cedo. Perdi minha esposa muito cedo também. Eu era imaturo, inseguro, e colhi as consequências da minha escolha. Agora eles estão crescidos, e é tarde demais. E embora meus filhos me tratem desse jeito, eu sei que a culpa é totalmente minha. No lugar de castigar, devia ter ensinado. No lugar de gritar e xingar, eu devia ter ouvido. No lugar de chegar estressado em casa, devia ter deixado as preocupações no trabalho. No lugar de negar o abraço, devia ter enchido todos eles de beijos e abraços. E agora é tarde demais”.
“Mas o senhor ainda pode mudar! O senhor pode voltar a ter contato com seus filhos!”, disse Pierre, como se tivesse uma esperança. Mas Briegel balançou negativamente a cabeça, respondendo:
“Isso só acontece em filmes de quinta categoria. Não tem como mudar isso. A vida real não é assim”, disse Briegel, cabisbaixo, “Na vida real a gente só tem uma chance, Pierre. Uma porcaria de uma única chance. E uma vez que passa, sai voando na frente dos nossos olhos. E uma vez perdida, é como na guerra, não tem como voltar atrás”.
O jovem Pierre nunca imaginou que sua incursão quase que suicida sozinho para o lado inimigo terminaria assim. Não apenas encontrando membros do lendário Kaisertreue, mas também recebendo deles a maior lição que recebera em sua vida. Pierre estava pronto para lutar e morrer. Mas ouvir aquelas palavras de Briegel, foi praticamente um renascimento.
“Volte para o outro lado, Pierre. Nunca foi nossa ideia fazer nada que te machucasse. Gostaríamos apenas que pensasse na sua vida”, disse Pfeiffer, “O que acha que você está perdendo ao fazer a escolha de lutar no meio desse inferno?”.
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