Amber #106 - Quero te abraçar, quero te beijar.

6 de dezembro de 1939
06h54

Com a saída de Chao e dos outros, e por conta dos ferimentos de Tsai, foi discutido no grupo que deveriam passar a noite naquele local para então partirem para Pequim. As barracas davam proteção contra o frio, porém era necessário alguém de guarda vigiando a barraca onde estava Ted Saldaña e seu parceiro, que, por acaso, haviam descoberto que se chamava Robert White. Os membros do pelotão foram revezando de duas em duas horas durante a noite a vigia do local de custódia dos americanos. A fogueira do vigia durara a noite inteira, sendo alimentada por todos os que passavam por lá. E o turno de Schultz estava quase terminando, o que significava que logo todos iriam partir, rumo a Pequim.

“Bom, você iluminou e esquentou todo mundo, amiguinha. Muito obrigado, mas está na hora de dizer tchau!”, disse Schultz enquanto jogava um punhado de água para apagar o fogo.

Já sem o barulho da chama estralando, era possível ouvir bem melhor o barulho do vento naquele bosque. O inverno já estava chegando, e as árvores todas já estavam perdendo suas folhas, que só reapareciam junto das flores, lá pra meados de março. Era hora de acordar os dois americanos, mas enquanto Schultz se dirigia até a barraca, ouviu duas vozes que pareciam discutir, se aproximando de um riacho ali perto.

“...Ei, vem cá, me escuta pelo menos, poxa! É um plano infalível, eu prometo!”.

“Huang, a gente já está no meio de uma missão, não dá pra gente ficar toda hora criando desvios assim. Por favor, não insista!”.

Ao chegar mais perto, Schultz vira que era Tsai e Huang discutindo. Ele não queria parecer alguém bisbilhotando, ou empatando algum clima. Ele sabia que os dois já tinham tido um caso no passado. Mas tomado pela curiosidade, Schultz ficou atrás de uma árvore, bem próximo, ouvindo toda a conversa enquanto eles estavam perto do riacho.

“Pelo menos me ouve! Porque tem muito dinheiro envolvido. Muito mesmo!”, disse Huang, empolgado para Tsai. Ela estava lavando e enchendo um cantil com água para ferver lá em cima, perto de sua barraca. Focada na sua tarefa, tentava não dar atenção para Huang, que prosseguia, tirando um envelope do bolso: “Sabe o que é isso aqui? Eu roubei daquele idiota do Chao, acho que ele nem percebeu ainda! É um mapa do tesouro! Um tesouro sem dono que apenas precisamos ir lá e pegar pra gente!”.

Tsai fecha o cantil e começa a subir de volta, sem dar nenhuma atenção pra Huang, que vendo que estava sendo ignorado, foi até ela e a segurou pelo braço. Quando Tsai o viu, virou o rosto, e percebera que o envelope estava aberto, e havia algo lá. Um pequeno papel preto. Uma película.

“Me solta, Huang. Eu não quero saber disso”, disse Tsai, mas Huang continuava a segurando forte. O rosto do chinês parecia implorar por atenção.

“Por favor, deixa só eu mostrar! É rapidinho!”, pediu Huang, e Tsai enfim parou e decidiu dar atenção. Huang também sentiu que poderia enfim parar de segura-la pelo braço e mostrar o conteúdo do envelope.

“Tudo bem, pode mostrar. Como o Chao conseguiu isso?”.

“Bom, primeiramente ele roubou de um outro cara. E eu fui lá e peguei dele. Ladrão que rouba ladrão merece cem anos de perdão!”, brincou Huang, mas Tsai fingiu não ter ouvido isso, “Ele não contou a estória toda, ele estava tentando buscar pistas com um fotógrafo, a pessoa que tirou essa foto aqui. Ele escreveu num papelzinho aqui dentro o nome dele, mas, enfim, o nome é o de menos. Mas o que importa é que parece que esse filme negativo tem uma pista de onde é o local onde está uma dinheirama! Olha só!”.

Huang tirou o negativo cortado de dentro do envelope. Foi cortado sem cuidado, pois estava torto, irregular, e era possível até ver fragmentos das fotografias adjacentes. Ao erguer para cima, Tsai não compreendeu direito do que se tratava no princípio, até que conseguiu distinguir alguns detalhes daquele negativo.

“Um morro. Com uma árvore solitária, e um céu”, disse Tsai enquanto tentava distinguir o que havia na foto, “Essa é a paisagem mais aleatória do planeta Terra, Huang. Isso tá me cheirando a um golpe”.

“Não, não é! Chao se gabava dizendo pra todos que isso o deixaria rico. Tanto que ele guardava com todo o cuidado, andava direto com ele! É óbvio que não dá pra distinguir exatamente o local, mas é uma pista de onde está o dinheiro!”.

Tsai por mais que fizesse um esforço, não conseguia entender de jeito nenhum que aquele negativo que Huang tinha fosse um mapa do tesouro. Aquele morro, coberto de grama, a árvore solitária sendo levada pelo vento, se havia alguma pista pra dinheiro, era algo praticamente impossível, pois aquela paisagem era muito comum. Demorariam séculos para descobrir!

“Acho que a maior chance de descobrir algo sobre isso é achar o fotógrafo. Você disse que o Chao sabia onde o fotógrafo estava, certo?”.

“Sim. Com o nome dele eu levantei algumas informações. Parece que no dia doze de novembro a casa dele simplesmente foi pelos ares, e ao perguntar pros vizinhos parece que ele havia sido sequestrado no meio da noite”, disse Huang, e ao ouvir, de início Tsai ficou pensativa, pois aquilo lhe parecia muito familiar, “Pois é, como ele estava em Nanquim, foi bem fácil cruzar o mar. Consegui informações de que esse fotógrafo foi colocado num barco, subiram todo o caminho no Mar Amarelo, até um local seguro. Bom, pelo menos era seguro, até eu descobrir”.

“E pra onde ele foi levado?”.

“Dairen. A leste daqui, bem na entrada do golfo”, disse Huang, usando o nome que os japoneses usavam para chamar a cidade.

“Dalian?”, disse Tsai, corrigindo e falando o nome original em chinês, “Mas ali é território do Estado da Manchúria! Ali é área de domínio do exército imperial japonês! Mas o Chao sabe disso? Sabe que levaram o tal fotógrafo para lá?”.

“Óbvio que não! Aquele cabeça de ameba nem imagina isso, fiquei enrolando ele, aguardando uma chance pra poder roubar o negativo e eu sozinho ir atrás do fotógrafo. Aquele otário que se exploda, o mundo é dos espertos!”.

Tudo se encaixava de uma maneira muito estranha. Mas a Gongzhu precisava de uma última confirmação.

“Você disse que o nome dele está aqui dentro, num papelzinho. Posso ver?”, perguntou Tsai e Huang prontamente deu o envelope. Lá dentro tinha um pedaço de papel de rascunho, amassado, e quando Tsai o retirou para ler, tomou um susto, que talvez não fosse maior pois ela já imaginava quem poderia ser, por conta das coincidências: “Eu suspeitava. Chou Xuefeng. Estamos também em busca desse homem”, confirmou Tsai, não muito surpresa.

“Hã? Como assim? Vocês sabiam do dinheiro?”.

“Não, não é sobre o dinheiro. Esse fotógrafo, bem... Longa estória, mas parece que ele tirou umas fotos de umas criaturas estranhas, que precisamos de informações sobre”, disse Tsai, explicando por cima, “Nós estávamos precisamente lá, em Nanquim, quando ele foi sequestrado. E vimos a casa explodindo, e tudo mais. Inclusive a Li se machucou gravemente”.

Huang expressou surpresa ao ouvir. Os dois ficaram quietos se olhando por alguns segundos, e Huang então olhou pra baixo e deu um risinho contido, roendo a unha do seu polegar. Confusa, Tsai ficou de olho nele, e então o olhar dos dois se encontrou.

“Uau. Incrível. Sabe de uma coisa, Tsai, parece que não importa quanto tempo passe, mas sempre essas coincidências só me dão uma certeza: que o destino sempre faz algo para nos unir de volta”, disse Huang, sorridente e confiante.

“Não começa, Huang...”, cortou Tsai.

“Ah, qual é! Tem que ser muito insensível para não enxergar isso, Tsai. Estávamos em busca do mesmo cara, cedo ou tarde estaríamos nós dois nos encontrando enquanto buscávamos esse fotógrafo aí”.

Tsai ficou em silêncio, apenas fitando Huang sem dizer nada. Ele foi então se aproximando de Tsai, que ao ver ele se aproximando, virou o rosto para o lado, mas não saiu do lugar.

“Talvez seja mais dinheiro do que possamos imaginar. Só faz um exercício de imaginação, Tsai. Com tanta grana a gente poderia largar isso tudo. Deixar o exército, deixar essa guerra, nos mudarmos para um local pacífico, e, quem sabe, continuar aquilo que paramos anos atrás”, disse Huang, já bem próximo de Tsai, pegando na mão dela suavemente.

“Não acredito que você ainda quer ressuscitar isso entre nós, Huang. Acabou”, disse Tsai, enfaticamente, mas Huang parecia não ouvir. As mãos de Huang eram tão quentes, em contraste com as de Tsai, que sempre estavam geladas. Aquele toque estava estranhamente a deixando arrepiada da cabeça aos pés, e a Gongzhu já estava ficando sem ar, as palpitações de ambos estava a mil. Quando a chinesa se deu conta, Huang estava já com a mão em sua cintura.

“Meu amor, minha querida, você sabe. Seu coração sabe. Nós nascemos um pro outro, nosso destino é ficar juntos, não temos como fugir disso”, disse Huang, quase num sussurro romântico irresistível para Tsai, “Essa é nossa chance de ouro. Esse é o nosso passaporte para a felicidade. Vamos atrás disso e deixar tudo pra trás, e viver o que já havia sido escrito quando nascemos. Juntos e felizes hoje, amanhã de manhã, e por todas as manhãs do resto de nossas vidas”.

Os lábios de Huang então tocaram nos de Tsai, e os dois se beijaram.

Schultz, atrás de uma árvore via tudo. E naquele momento um sentimento de tristeza imenso dominou seu coração. Ele havia demorado muito. Não havia uma mulher como aquela em toda a China, e agora ela estava beijando o maior palerma de toda a China. Seu coração vendo aquela cena foi dominado por uma tristeza tão grande que, em choque, não conseguia nem mesmo chorar.

Por mais que ele negasse esse sentimento desde o começo, agora não havia mais como negar: Schultz estava sim apaixonado por Tsai, definitivamente.

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