Amber #131 - Suspicious minds (8) - Mamãe abóbora.

Merda, era a Eunmi mesmo, eu tenho certeza! O que essa palhaça está fazendo ali? E quem são aquele casal junto dela? Eles estavam conversando mesmo?, pensou Ho, se erguendo e caminhando em direção da entrada, atravessando a rua. A pressa dela denunciava sua ansiedade e curiosidade, enquanto arrastava o cobertor e a sacola cheia de papéis do disfarce de moradora de rua.

Mas ao chegar de frente para a entrada, do outro lado da rua, não viu mais Eunmi. Provavelmente ela já estava lá dentro da mansão de Chang Ching-chong. Mais pessoas chegavam e davam seus nomes na entrada, na lista de presença, e vendo que não daria pra encontrar Eunmi, Ho voltou para a calçada na quadra da entrada onde estava para continuar observando o movimento das pessoas.

O frio começava a se intensificar conforme os ventos gelados iam passando por ela. Ela queria muito poder entrar, mas o objetivo dela era guardar a parte de fora do edifício. Ho, depois de se acalmar do susto de ter visto Eunmi, refletiu que o plano não era saber onde estava Eunmi, e sim prestar atenção na movimentação de Chang Ching-chong. O chinês poderia sair a qualquer momento, e ela deveria estar a postos para qualquer movimentação suspeita e pará-lo, caso os que estavam na parte de dentro não conseguissem.

Ho não conhecia tanto Eunmi, mas em muitas coisas ela lembrava sua filha. Talvez fosse um instinto protetor maternal que a fazia projetar na coreana como alguém que ela deveria proteger dos perigos ao redor.

De qualquer forma ela deveria estancar essa curiosidade e continuar em seu posto.

“Oi, boa noite, com licença?”, disse uma voz masculina ao seu lado, e Ho se virou, assustada. Ela estava distraída em seus pensamentos, nem percebeu que uma pessoa chegou ao seu lado.

O homem era um chinês étnico, mas era bem velho. Devia estar na casa dos sessenta ou setenta (o que na época era bem velho). Porém ele tinha um cabelo extremamente preto, sem nem mesmo um único fio grisalho, e um bigode grosso abaixo do nariz, igualmente preto também. Estava trajando roupas de gala e tinha um perfume suave, mas marcante. Atrás dele parecia ter um empregado e um carrinho de inox, desses que garçons usam para servir pratos.

Ho olhou estranha para ele de início, assustada por ele ter aparecido assim, subitamente. Talvez fosse a reação natural de um morador de rua ao ser indagado dessa maneira, e talvez seja por isso que ele não reagiu com estranheza. Pelo contrário, ele continuou lá, meio curvado, com um sorriso no rosto e fitando a Ho.

“Pois não? Tem algum problema eu ficar aqui?”, perguntou Ho, apreensiva.

“Não, que isso, jamais! Por favor, fique aí onde está. Com certeza a vida não é nem pouco fácil aí fora, eu te expulsar daí só dificultaria as coisas para você”, disse o homem, com uma expressão bondosa no rosto.

“Obrigada. O senhor está bem vestido. Pelo visto é um dos bacanas que estavam naquela festa”.

“Nem tanto. Na verdade eu estava na festa sim, mas francamente, não me interessa em nada isso. É apenas um desfile de egos, quem tem as melhores casas, as melhores esposas, as melhores indústrias, etc”.

Havia algo quase que sedutor nas falas daquele homem que Ho não sabia explicar. Era óbvio que ela não pensava em trair o seu marido, ela amava Chen sinceramente. A questão era que havia um magnetismo, uma boa lábia, uma conversa que realmente seduzia no sentido literal da palavra. No sentido de atrair, de encantar.

“Então o mundo aqui fora é mais interessante para o senhor? Aqui fora só tem sujeira”.

“É verdade, não é mesmo? Tanta pobreza, tanta miséria. Esse país está caminhando para sua autodestruição enquanto se é dominado pelos japoneses”.

“É bom ver que tem gente que percebe o que anda acontecendo”.

“Não é mesmo? Mas uma coisa que eu nunca vou me acostumar é com esse cheiro que essa cidade tem”, disse o homem, e nesse momento Ho arregalou os olhos, surpresa, aguardando pelo resto da sua fala, “É difícil de descrever. Eu só sinto esse cheiro aqui, em Pequim”.

“Um cheiro azedo?”, perguntou Ho, quase que enfaticamente, feliz em ver que havia outra pessoa que sentia exatamente o cheiro que ela sentia. O chinês sorriu e confirmou com a cabeça, e Ho prosseguiu, voltando ao seu papel de moradora de rua: “Cara, eu odeio esse cheiro! Eu moro na rua há anos, e tenho que admitir que é a coisa que eu mais odeio nessa cidade suja e nojenta! Esse cheiro azedo tira todo e qualquer apetite nos dias de calor!”.

“Talvez seja essa mania que esse povo tem de cuspir no chão! O cheiro da saliva deve subir e azedar!”, disse o homem, e Ho deu risada desse comentário.

O simpático senhor também riu. Todos os outros membros do seu pelotão nunca comentaram sobre esse cheiro de Pequim que apenas ela sentia, mas aquele homem compartilhava da mesma sensibilidade olfativa que Ho possuía, e se deparar com uma pessoa assim era excelente. Quem diria que naquela situação acharia uma pessoa assim.

“Puxa vida, que cabeça a minha! Nesse frio eu vim aqui justamente para te trazer algo, e ficamos aqui batendo papo, que cabeça a minha!”, disse o homem, se virando para a mesa de rodinhas que o empregado trazia junto.

O homem tirou o lençol branco de cima da mesa de rodinhas e em cima repousava uma brilhante cloche de alumínio. Ho nunca tinha visto uma ao vivo, apenas em fotos em revistas ou jornais que mostravam restaurantes chiques na Europa. O simpático senhor abriu a cloche e Ho, sentada na calçada, viu apenas um rico vapor com um aroma bem gostoso ser exalado de lá. Ele tirou um prato de lá, que tinha em cima uma tigela branca de porcelana, e ofereceu para Ho, lhe dando uma colher.

“Não pude deixar de me solidarizar com sua situação. Pessoas acham que pessoas de rua são rudes, ou são burras, mas eu nunca achei isso. E fico feliz em ter exemplos bons como a senhora. Minha ideia na verdade era trazer essa deliciosa sopa para a senhora, mas vou sair daqui preenchido também por essa boa e rápida conversa que tivemos, senhora”, disse o homem.

A sopa tinha um aroma incrível. Era feita de frango. Ho não era muito fã de frango, mas deu o braço a torcer e provou a iguaria. Realmente estava deliciosa. Ela sorriu e fez uma reverência ao senhor.

“Obrigada, obrigada senhor! Com certeza essa bela sopa vai ajudar a passar melhor a noite!”, agradeceu Ho, mostrando que havia apreciado bastante o gesto de bondade daquele homem chique.

O homem sorriu de volta e já estava quase se virando para ir embora quando parou e virou o rosto para Ho. Ele ergueu a mão até a cabeça, como se tivesse sido acometido por uma ideia, e gesticulou para que o empregado fosse embora, levando a mesinha.

“Quer saber? Acho que vou ficar um pouco mais aqui. Lá dentro tá um porre mesmo”, disse o homem simpático, se virando para Ho, após ter desistido de ir embora, “Escuta, será que a senhora se incomodaria se eu pudesse me sentar aqui um pouco?”.

Ho, surpresa, apontou a mão para o seu lado, oferecendo um pedaço do papelão onde estava sentada, inclusive se movimento alguns centímetros pro lado para que o homem se acomodasse.

“Claro, por favor! O senhor é o meu convidado!”.

“Puxa, obrigado. Obrigado mesmo. A senhora com todo o respeito não tem uma aparência suja como de outros moradores, e seu cheiro nem é tão ruim”.

Ho nesse momento engoliu meio seco a golada da sopa que estava em sua boca. Ela não queria ficar fedida de forma alguma, seu olfato era muito sensível. Mas não imaginava que um desconhecido fosse reparar justamente na falta do aroma clássico que um morador de rua possui.

“Eu cuido bastante de mim mesma. Sou bem vaidosa. Fico até feliz que o senhor diga que eu não exalo um cheiro ruim. Dá muito trabalho morar na rua e não ser fedida”.

“Claro, claro. Tudo para quem mora na rua é mais difícil. Coisas simples como ter um local para dormir, fazer as necessidades, ou até tomar um banho, se tornam imensamente difíceis para quem vive na rua”, disse o homem, se acomodando ao lado de Ho, “E sua família? A senhora tem?”.

“Tenho sim, mas estão com outros parentes. Perdi tudo e fui obrigada a viver na rua”.

“Entendi. Sua família perdeu tudo no jogo?”.

“Não. Foi meu marido. Álcool acaba com a vida das pessoas”, disse Ho, inventando uma estória. Chen nunca fora irresponsável com álcool, embora apreciasse uma bebida de vez em nunca. Ela se sentia quase que uma atriz, contando aquilo tudo.

“A senhora deve ter sofrido muito. Sem filhos, sem marido. O que é o mais difícil de se viver na rua?”.

“Acho que o nojo que as pessoas nos vêem. Acham que somos invisíveis, que basta virar o rosto para o lado que desaparecemos. Mas não. Nós não apenas existimos, como também precisamos de ajuda. Não temos nada nessa vida, e quando as pessoas fazem isso, na minha opinião tiram até a nossa dignidade”.

O homem ficou profundamente tocado com esse testemunho de Ho. Ele obviamente não tinha a menor dúvida que Ho era sim uma moradora de rua, mas ao ouvir essas palavras era como se uma nova definição do sofrimento que eles passassem fosse adicionada à imagem que ele tinha deles.

Ho, por outro lado, estava usando sua visão de mãe para compor a estória que contava. Não que ela tivesse vivido na rua, ou algo do gênero, mas o fato de ter se tornado mãe a deixava mais sensível para os sofrimentos do mundo ao redor que ela, antes solteira, não conseguia reparar antes. Uma noção maior de responsabilidade, de empatia, de generosidade havia brotado nela desde que ela havia dado a luz. E essa capacidade de se colocar no lugar dos outros, sentindo, nem que se fosse por obra da imaginação, o que aquelas pessoas sem lar sentiam, penetrava em sua alma, trazendo uma ferida quase que incurável.

“Incrível. Sinto muito pela senhora estar passando pelo que está passando. A gente nem imagina o que vocês passam todo dia para sobreviver. É quase como matar um leão por dia”.

“Obrigada ao senhor pela simpatia. Pode parecer pouco, mas significa muito para a gente”.

Então o homem olhou para seu relógio. A conversa havia durado bem mais que ele havia imaginado.

“Puxa, olha que horas são! Preciso voltar”, disse o homem, se erguendo, e batendo nas suas calças para tirar um pouco da sujeira, que era praticamente imperceptível, “Mas obrigado novamente pelo tempo e pela conversa, senhora. Aliás, como a senhora se chama?”.

O homem estendeu a mão à ela, oferecendo um caloroso aperto de mão. Ho se ergueu e nesse momento uma ideia passou pela sua cabeça: esse homem é um membro da alta sociedade de Pequim, presumidamente. E isso significava que ele voltaria até aquela festa, e que ele poderia de alguma forma a ajudar a encontrar Chang Ching-Chong. Isso era perfeito! Ela já havia ganho-lhe a confiança, no mínimo ele poderia dar pistas de onde estava Chang Ching-chong e levar o time inteiro até o objetivo!

“Me chame de ‘Mama Nanguá’”, disse Ho, apertando a mão do senhor, “Se o senhor quiser me achar, me busque por esse nome”.

“Mama nanguá… Isso é ‘mamãe-abóbora’, como o legume?”, perguntou o homem, sorridente, e Ho confirmou com a cabeça. Ele prosseguiu, levemente emocionado: “Puxa, era assim que eu chamava a minha mãe. De ‘abóbora’. Ela me contou que foi a primeira coisa que eu disse como bebê, antes mesmo de ‘papai’ ou ‘mamãe’, acredita nisso?”.

Ho sorriu, espantada, balançando a mão do homem. Realmente, não tinha como não ser mais fácil!

“E o senhor? Qual o nome do senhor?”, perguntou Ho. E então o homem respondeu:

“Meu nome é Chang”, disse o homem, e então Ho sentiu quase como se um fio de eletricidade passasse pelo seu corpo ao ouvir as palavras do homem. Mal ela sabia o que estava por vir, quando ele dissesse seu nome completo, instantes depois: “Chang Ching-chong”.

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