Livros 2020 #1 - O Barão nas Árvores

Quando sua terapeuta te der a incumbência de ler um livro, apenas leia.

Fim do ano passado minha terapeuta, doutora Isa, me deu de presente de natal um livro. Eu ainda brinquei com ela dizendo: nossa, você deve dar um livro de acordo com o perfil de cada paciente, não? E ela me respondeu algo que me deixou chocado: que ela não costuma dar livros para ninguém, pois é muito raro alguém ler hoje em dia. Que entre todos os pacientes dela, eu era o único que tinha o hábito da leitura.

Ainda mais em tempos de whatsapp e conversas rápidas, ou de uma grande demanda de séries e filmes (e a exigência da sociedade para estivermos a par das últimas novidades) de facto é difícil ver alguém que pare para apreciar uma boa leitura.

Eu sempre gostei de leitura, embora aqui em casa ninguém compartilha comigo este hábito. Eu sou sempre a ovelha negra, tô acostumado. Mesmo na minha família em sua totalidade, dá pra contar nos dedos de uma mão o número de pessoas que possuem o hábito da leitura, então livros raramente entram como objetos de desejo da família Neves e da família Ribeiro de Paula.

Exceto comigo.

E esse livro fala exatamente disso. O Barão nas Árvores de Ítalo Calvino fala não apenas de ovelhas negras da famílias, mas de ovelhas negras que possuem esse maravilhoso hábito que é o da leitura. O livro conta a história de Cosme Chuvasco de Rondó, primogênito de Barão, que mora numa região da Itália chamada Penúmbria, o que me deixou muito confuso, pois não achei nenhum local com esse nome. Não sei se foi adaptação de alguém que criou a tradução, pois no original em italiano o nome do local é Ombrosa, e pelo maps vi que existe um lugar com esse nome entre Bolonha e Florença. Mas o livro cita várias vezes "norte da Itália", então acho que o mais provável é que: ou seja uma localidade fictícia; ou de facto existiu, mas deve ter sumido do mapa, incorporada por outra cidade, enfim.

Ou talvez ali seja realmente norte da Itália, sei lá. Tocantins é norte, vai entender.

A história é narrada pelo seu irmão mais novo. E logo no começo mostra Cosme em uma refeição e, do nada, ele para e sobe uma árvore, e diz que nunca mais descerá de lá. Simples assim. Mas esse é apenas o primeiro capítulo do livro, tem muita coisa pra acontecer a partir daí.

Óbvio que ele teve seus motivos. Não ser aceito pela sua família, não poder lutar pelos seus sonhos e anseios, e querer viver a vida da maneira que mais quer. Óbvio que no começo nada é fácil, mas é interessante ver a evolução do menino. Conhece a vizinhança (incluindo uma menina da idade dele, chamada Viola), luta contra gatos selvagens (e inclusive usa as peles deles como vestimenta), desafia os pais, que queriam que ele se tornasse um barão e continuasse o legado da família, defende a vizinhança de marginais, adota um cachorro (o maravilhoso Ótimo Máximo, que havia sido abandonado, e o treina e tudo mais!), e até faz amizade com um prisioneiro que iria ser executado.

Na minha opinião, entre todas as aventuras de Cosme no livro, a que mais me emocionou foi justamente essa do João do Mato, esse criminoso que ele salvou do linchamento e ainda compartilhava livros com o meliante. Eventualmente as autoridades acham o João do Mato, e ele é sentenciado à morte. Mas até o último momento ele continua com esse laço de amizade com Cosme, falando sobre os livros que leram, e até no momento de sua execução ele morre sabendo do final do último livro que havia lido em vida. É bem bonitinho, chorei nessa parte.

Cosme cresce, e com o amadurecimento vem também o ímpeto de se acasalar e realizar o intercurso sexual (nossa, pareço um cientista falando, kkkkk). Ele até conhece uma comunidade de pessoas que moram em árvores na Espanha (que ele vai pulando de árvore em árvore da Itália até lá!), mas o rolo não dá muito certo com uma gatinha de lá, e quando ele volta ele encontra a tal da Viola, a vizinha pirralha que agora cresceu e está um mulherão. Rola um romance entre os dois, mas Viola eventualmente termina com ele, e leva o cachorro (que já está velhinho, coitado), que originalmente era dela.

Muita coisa a mais acontece no livro, como morte dos pais, a saída do irmão para estudar fora, luta contra piratas, e até conhecer o Napoleão Bonaparte, entre pessoas de diversas nacionalidades, como alemães, espanhóis, franceses e até russos que Cosme se depara na vida e aprende com cada povo.

Imagina esse moleque no meio da Amazônia, hahaha.

Até o momento de sua morte é carregada de poesia: por conta de viver em árvores, a expectativa de vida do Cosme cai muito. E ele vai envelhecendo e ficando cada vez mais cansado e debilitado. Eis que no momento de sua partida ele é carregado por um balão e seu corpo se perde no horizonte enquanto ele se despede desse mundo, cumprindo sua promessa de nunca ter pisado no chão desde aquele momento em sua infância.

O livro é muito bem escrito, romance bonitinho, bem estruturado, muito bem contado. Eu não tinha nem ideia de que esse autor existia, e já virei fã! Quero ler outros desse italiano. E acima de tudo achei muita semelhança comigo: o fato de ser alguém bem diferente da minha própria família, de lutar por aceitação e que me deixem fazer minhas escolhas de vida (e não um monte de nego dizendo "faça isso" ou "faça aquilo") e também pela coragem de lutar pelo que acredita.

Minha terapeuta acertou em cheio. Baita livro profundo pra começar 2020.

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