Livros 2020 #3 - Neve

Enquanto eu ia Neve, do autor turco Orhan Pamuk, ficava pensando: "caramba, que livro bem escrito... Quem é esse autor?". Aí fui no google pesquisar o nome dele e descobri que ela tinha ganhado "apenas" um prêmio Nobel de literatura. Só isso.

Acho que quando a gente imagina um país muçulmano, as pessoas rapidamente associam a Arábia Saudita, Irã e outros ali da região, mas logo ali perto deles existe a Turquia: um país também de maioria muçulmana, mas que é bem mais influenciada pela Europa. Quem visitou a Turquia, especialmente Istambul, percebeu lá as mulheres sem hijab (o véu muçulmano), muitas andando de shortinhos no verão, ou até bebendo álcool. Eu lembro de uma amiga que viajou para lá as perguntando: mas você é muçulmana? E uma delas dizia: Sim, eu sou, mas não pratico muito.

É bem parecido com aqui no Brasil quem se diz católico, mas não é praticante. Isso em existe em todo lugar do mundo.

Só que existe também uma Turquia longe desses grandes centros, onde esses dois mundos se chocam: o tradicional e o moderno. E o autor mostra nesse romance esse choque de valores. E ao mesmo tempo toca em outras feridas da sociedade turca: o poder dos militares, o fundamentalismo religioso, e, é claro, o amor também está no meio.

O livro é como se o próprio autor discorresse sobre a vida de Ka, alcunha para Kerim Alakuşoğlu, um poeta turco que viveu anos exilado em Frankfurt. Também atuando como jornalista, Ka volta para Turquia, e vai até uma cidade chamada Kars, no extremo noroeste do país, já ali perto da divisa com Armênia e Geórgia. Ele vai inicialmente para investigar uma série de suicídios de mulheres, e todos suicídios súbitos, onde as mulheres não deixavam nada, apenas iam lá e se matavam.

Só que assim como toda religião do mundo, o islamismo também condena suicídios. E embora Ka fique bastante intrigado com esses suicídios de diversas mulheres muçulmanas, ele se lembra que ali também vive Ipek, uma donzela que ele era muito apaixonado, só que ela havia se casado com um cara que está concorrendo para ser prefeito de Kars, mas quando ele chega lá descobre que ela está solteira. Se você imagina-lo em sua mente, terá a definição de "felicidade" do dicionário.

No entanto o clima de Kars é bem tenso: tem um jornalista brucutu que cuida do jornal local e publica o que quer, tem militares que pedem que ele não investigue sobre os suicídios, tem a Ipek que causa ereções penianas em Ka, e tem um clima sério de terrorismo religioso no ar em ascensão.

Logo no começo uma pessoa vai lá e mata um diretor de uma universidade — o mesmo que era diretor do lugar onde muitas dessas mulheres suicidas estudava — e logo Ka, enquanto vai conhecendo as pessoas em Kars, descobre o motivo de tais suicídios: que por conta da cidade de Kars ficar dividida entre abraçar um islã mais reformista ou tradicional, acabou forçando as mulheres a serem mais liberais, proibindo o uso do hijab. Só que para uma mulher muçulmana, o hijab é uma proteção, uma forma de preservar a pureza, e uma ligação com Deus. E só o marido ou familiares podem vê-la sem hijab, ficar sem ele é quase como se ficasse pelada, é algo bem sério e que devemos respeitar.

Só que quando o diretor dessa universidade impediu as mulheres de usar hijab na universidade, as fez passa por uma vegonha, quase como se andassem desnudas por aí. Foi então que um cara fundamentalista chega nesse diretor e o mata a sangue frio em uma casa de chá.

Ka, mesmo vendo esse homicídio, e mesmo depois de descobrir o motivo dos suicídios (ele descobre logo no começo), ele fica igual faz todo boi: aonde a vaca vai, ele vai atrás. E ele é louco pela Ipek. Só que ela, que também gosta dele, nunca consegue fazer aquilo com ele em momento algum, sempre dando uma desculpa. Ka quer que eles se casem e se mudem para Frankfurt, mas Ipek fica numa enrolação que só é revelada lá pro final do livro.

E nessa de "Só vou me deitar com você depois que você falar com fulano" que Ipek vive fazendo com Ka, ele vai conhecendo todo mundo da cidade: entre eles um casal de atores de teatro decadentes (a Funda Esser e seu marido, Sunay Zaim), um revolucionário religioso que atende por Azul (sim, a cor), e um jovem apaixonado pela irmã da Ipek (a Kadife), chamado Necip.

(nesse momento eu tô achando que essa Ipek e a irmã Kadife seriam uma mistura de Grazi Massafera com Paola Oliveira, de tão gata que deve ser pra ter tanto nego atrás delas)

Porém algo acontece bem no meio do livro que muda tudo: durante um evento televisivo que acontecia no Teatro Nacional de Kars, depois de Ka ler um poema que havia escrito, os militares aparecem e realizam um massacre, atirando contra a plateia. E isso tudo aconteceu durante uma parte bem interessante: uma peça de teatro sendo encenada pela Funda Esser.

Essa peça é muito louca, pois é uma peça que tem como alvo criticar os costumes do islã. O nome da peça é "Minha pátria ou meu manto para cabeça". Nessa peça a protagonista enquanto anda na rua fala consigo mesmo, pois tem algo a perturbando. Ela então tira o hijab e proclama sua independência. Sem o manto, ela parece feliz. Aí aparece a família dela, noivo, papagaio e cachorro, se opõem a essa "independência" dela e exigem que ela coloque de volta o hijab. Ela então tem um acesso de raiva e o queima. Os fanáticos então aparecem com paus e vão lá espancar ela, e nesse momento os soldados da república chegam e a salvam de seus familiares.

Parece uma peça apenas para provocar, mas ela também demonstra outro aspecto turco muito explorado: a secularidade versus religiosidade. Desde o fim da década de 20 a Turquia oficialmente virou uma República, sob a liderança do Ataturk (apelido de Mustafá Kemal, o primeiro presidente, muito populista). E uma das principais coisas que esse Ataturk impôs foi a secularidade no país. Com a liberdade religiosa, mulheres não eram mais obrigadas a vestir hijab, apenas a faziam se quisessem. Acho que depois dessa explicação dá pra entender como essa peça era provocativa, para os ambos os lados até.

Bom, voltando ao golpe dos militares durante a peça da queima do hijab: um monte de gente é morta, fica aquela bagunça toda. Ka sai pouco antes da bagunça, ele nem vê o massacre acontecendo. Uma espécie de toque de recolher é instaurado, e diversos líderes políticos e religiosos são presos, caçados, torturados. O Necip, o menino que era apaixonado pela Kadife, morre com um tiro na testa lá no teatro.

Aí vem uma parte bem cansada do livro, com o Ka tentando comer a Ipek, ela dizendo que quer dar pra ele, mas se fazendo de difícil, Ka descobre que o Azul é namorado da Kadife, e que vai ter muita bagunça, e um blábláblá interminável por umas duzentas páginas (sim, essa parte é muito chata e não acontece muita coisa).

Eventualmente Ka e Ipek trepam: quando o pai da Ipek vai ao encontro de outros correligionários, ele deixa o hotel que trabalha sozinho e Ipek enfim dá pro Ka. E a engraçadinha depois trepa com ele umas cinco vezes ainda, leva umas trezentas páginas pra liberar e depois eles trepam praticamente a cada cinco páginas, afff...

Já bem perto do final, o casal de atores decadentes, a Funda e o Sunay, querem fazer uma peça teatral que será transmitida pela televisão. Nessa peça querem colocar a Kadife, a irmã que é tão bonita quanto Ipek, e nessa peça ela irá tirar o hijab.

Só que tipo, esses turcos punheteiros parece que a tara entre as taras é ver mulher sem o lenço na cabeça (mano, que doença, na moral. É a porra dum hijab!). E como a Kadife deve ser a gatinha da cidade, fica tudo com pau duro só de pensar no rumor dela tirar o lenço (é sério, parece ridículo, mas não duvido que isso aconteça. Mulher "pagar peitinho" então deve causar infarto nos caras, né? Mano, vai pro Xvideos esvaziar a rola, vai). Embora a Ipek não use lenço, a Kadife é mais religiosa e não sabe se aceita isso. Então, depois de trepar com o Ka, a Ipek manda ele ir falar com Azul, o namorado da Kadife.

Azul não dá a mínima se ela vai tirar o lenço ou não. O que ele quer fazer é se tornar um mártire para a revolução. Ka consegue fazer com que ele declare que Kadife pode tirar o lenço (e Ka grava esse áudio) e consegue ainda ele impedir de cometer esse plano de se entregar e se tornar um mártire da revolução ao ser morto pelos militares.

Kadife então topa participar dessa peça, que na verdade tinha sido proposta pelo Sunay Zaim (o ator decadente) para que o Azul fosse solto da prisão em troca dela participar da peça e retirar o manto. E aí entra todo o fato da Kadife ser religiosa e tal.

No final acontece um monte de coisa, é até meio confuso de relembrar, mas vamos lá:

Na peça que Kadife ia tirar o manto, ela enquanto dividia o palco com Sunay, eles encenam uma briga, ela pega uma arma (que achava que tava com festim) e ao atirar em Sunay, o mata em pleno palco (tipo o Brandon Lee). O pai e Ipek conseguem convencê-la a não tirar o manto. Porém, ela participar da peça era para que libertassem seu namorado em troca, só que eles matam o Azul, jogando seu corpo no oceano, para nem ter funeral pro revolucionário islamita.

Ka é espancado e mandado à força de volta para o exílio da Alemanha. Vive um punhado de anos e morre, longe da Ipek, que ele tanto amou. Mas o mais doido é sobre a Ipek, e só é revelado no final do livro, quando o próprio Orhan (o autor?) volta para Kars anos depois para reconstituir os últimos passos de seu amigo Ka: acontece que a Ipek havia sido casada com o Muhtar, e tinha um caso com Azul enquanto ficava com o Ka. Talvez seja por isso que ela enrolava tanto pra trepar logo com o Ka, mesmo claramente gostando dele também.

(que doido né?)

Quando descobriram o esconderijo de Azul, e os militares foram lá e mataram o cara, Kadife ficou com raiva de Ka. E como ela não amava mais o Muhtar, o cara que ela amava havia morrido, e o Ka que ela gostava, e que agora estava com raiva dele, dizendo que o Azul tinha sido por morto por ele, sem ter ninguém para amar, ela vive agora cuidando de seu sobrinho, filho da Kadife, na pacata Kars.

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O livro é bom, tem uma história legal, mas não gostei muito de como o autor escreve em alguns capítulos. Ás vezes o livro fica muito parado, se desloca muito do foco em alguns pontos, e a gente que lê fica com aquela sensação de livro chato. Isso eu senti muito no meio. Mas o jeito que ele começa é excelente, prende a leitura, deixa a gente curioso. O final é um pouco confuso, mas achei muito bem bolado. Deixa diversas coisas em mistério (como o que aconteceu nas últimas horas de Ka em Kars), e leva o narrador até Kars para reconstituir os últimos dias de Ka lá. Isso é uma sacada muito boa.

Mas ainda assim eu indico. Livro ótimo para refletir, conhecer a cultura, entender esse complexo país chamado Turquia.

Nota: 7

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