Como voltar a sonhar.



Minha família nunca foi de sonhar. Isso sempre foi um dos maiores atritos entre eu e meus pais. Eles sempre tentaram me influenciar a ser uma pessoa que estudasse para ter uma profissão, que ela desse dinheiro, e que eu me sustentasse e tivesse uma vida tranquila. Nunca ouve essa discussão de "o que eu sonho fazer", ou anseios sobre futuro. Para eles eu devia apenas ser uma máquina que batesse cartão no serviço, casasse com uma qualquer, tivesse um ou dois filhos, ficasse careca aos quarenta, aposentado aos cinquenta, e morto aos setenta. Esse sempre foi o plano de vida que me era proposto, e muitas vezes era o mesmo plano que muitas pessoas próximas de mim também me ofereciam: arranje um emprego, trabalhe, não vá atrás de sonhos ou coisas do gênero, pois essas coisas não existem.

(todo mundo tem esse tipo de amigo arrombado que só porque não conseguiu realizar seus sonhos acha que ninguém no mundo tem esse direito)

Acho que a maior dificuldade do mundo de alguém que enxerga é viver no meio de cegos.

Enquanto eu sempre buscava propósitos maiores em vida, enquanto eu me interessava em artes, expressões, cultura, em coisas que faziam meu coração bater mais forte, meus pais sempre tiveram uma visão muito crítica e rígida, de que eu devia apenas ser um funcionário qualquer, de uma empresa qualquer, em uma profissão qualquer — contanto que essa profissão me trouxesse remuneração e eu vivesse sem incomodá-los.

Há uns quinze anos mais ou menos meu pai chegou bêbado em casa (isso não é novidade). Mas naquele dia eu não lembro ao certo qual foi o motivo da discussão — era uma coisa tão corriqueira ser rebaixado, chamado de incompetente, vagabundo, inútil, ter minha autoestima jogada no limbo, que eu nem lembro mais exatamente quais os motivos dele vir gritar comigo — mas naquele dia, há quinze anos, ele depois de gritar várias vezes que eu era um vagabundo, ele dizia aos berros: "Eu vou morrer!! Eu vou morrer!! Eu tô morrendo!!". E depois ele fechou os punhos e disse que ia me dar uma "muqueta" para eu aprender a virar homem, algo assim.

Eu o segurei. Não deixei ele me agredir. Eu lembro que ele até, no alto da cólera dele, disse que eu pelo menos era "homem" por tê-lo segurado. Meu primo, que estava ali conosco naquele dia, lembra desse dia tão claramente quanto eu.

Mas cara, ficou a marca dentro de mim. Eu estava naquela fase difícil de adolescência, vivendo numa casa onde, assim como eu disse antes, não existia sonhos. Minha mãe dizia que as coisas que eu gostava de fazer deviam ser "hobbies". Que não existia essa de eu correr atrás de meus sonhos. Mas ela não me disse que eu teria que ficar quatro horas por dia num ônibus, trabalhando mais de oito horas em uma profissão que eu detesto, algumas vezes com um bando de idiotas, e chefes imbecis sem cérebros. E que isso tiraria meu ânimo pra qualquer outra merda, que eu chegaria exausto em casa, e que eu veria essas coisas que me faziam feliz sendo colocadas em segundo, terceiro, quarto plano. E eu viraria apenas mais um inútil que acorda cedo pra bater o ponto todo santo dia.

E eu sempre tive a necessidade de fazer algo que me inspirasse. Algo que me fizesse realmente feliz na vida. Algo que mesmo que eu tivesse que levar quatro horas num ônibus por dia, que pelo menos aquelas oito horas fossem proveitosas, fossem legais, e não um porre.

Foi então que minha terapeuta, ano passado, me incentivou a me inscrever no Enem e prestar Fuvest esse ano. Olha, foi difícil, viu?

Enquanto eu fazia inscrição hoje, eu não sei, eu voltei a sonhar, nem que fosse naquelas cinco ou dez minutos que gastei preenchendo o formulário online. Me imaginei ingressando numa nova faculdade, estudando para a profissão que eu sempre quis, e me formando em algo que eu queria de verdade — não uma coisa para eu me formar e ter um trabalho de merda — mas algo que realmente me preenchesse.

E como eu estudei com escola pública, a inscrição foi de graça!

Já consigo me ver entrando na Faculdade de Filosofia, Letras & Ciências Humanas na USP para meu primeiro dia de aula na faculdade de Letras. Farei Português & Coreano. Terminando o curso e conseguindo me mudar para a Coréia, viver uma vida diferente lá, num país que aprendi a amar, e quem sabe achar uma coreaninha branquela das pernas tortas lá para chamar de minha, hahaha.

Eu acho que já sofri um pouquinho nesses quinze anos desde o episódio da "muqueta". Aquela coisa me deixou marcas horríveis, e meu pai nunca me pediu desculpas. E nunca vai pedir, afinal ele sempre vai dar a desculpa de que ele estava bêbado e não estava em plena consciência.

Acho que posso começar a sonhar um pouquinho sobre os próximos quinze, certo?

Comentários

Postagens mais visitadas