Aquele rodeado pela sua desgraça.
Gosto desses livros que não são auto-ajuda, mas sem dúvida valem tanto quanto um. E nada dos conselhos descarados, o clássico "faça isso ou aquilo e resultará nisso", mas que falem das ações de uma forma narrativa e muito boa. Nada contra auto-ajuda, até porque se eu falasse mal deles seria o mesmo que o sujo falar do mal-lavado (costumo ler alguns também). Existem alguns fatos que chamam muito a atenção, e indico a todos lerem, até porque as edições atuais de Os miseráveis foram re-escritas e estão bem didáticas na linguagem contemporânea.
Um dos personagens que mais me chamam a atenção é o Bispo de Digne, ou D. Bienvenue. Como sendo um bispo grande parte de suas palavras tem um tom dosado da sacristia, mas tirando isso, algumas falas dele e reflexões moldaram muitíssimo bem o personagem. Pra quem não lembra, esse é o bispo que no começo do livro decide viver na miséria e deixar a catedral virar um hospital pois seria assim mais útil. Ele fala que o homem é como uma espécie de pêndulo, ele balança entre o bem e o mal, e é exatamente a função dos eclesiásticos manter essas pessoas na luz, para que não fujam para as sombras.
Existe sim pessoas que são realmente miseráveis no livro, mas o livro tem como temática principal a redenção. E isso pode ser sim levado para a vida. Vejo pessoas que são más umas com as outras, e somente recebem o mal de volta, afinal é assim que a sociedade funciona e a lei da selva diz muito sobre isso. Se alguém te fazer o mal, faça o pior com ele. Esse ciclo é desencadeante, e assim pessoas acabam rodeadas pelas suas desgraças e de alguma forma cavam suas próprias covas, perdendo amizades, amores, confiança e relacionamentos se tornando cada vez mais superficiais. Porém isso só é quebrado quando alguém é bondoso pra você. Por isso que é sempre bom manter boas energias ao redor de si, ser uma boa pessoa fazendo boas ações, pois da mesma forma que fazer o mal lhe devolve o péssimo, fazendo o bem por mais que tenham pessoas más elas acabam sendo boas de alguma forma pra você. O exemplo maior do livro é a reação entre Jean Valjean e o Bispo, onde o primeiro inclusive o rouba, logo após o sacristão ter lhe dado comida e abrigo e mais tarde ao ser pego por policiais o Bispo mente dizendo que os objetos surrupiados foram um presente para o condenado, e pelo seu gesto de bondade o ex-criminoso Valjean torna-se uma pessoa boa, mesmo levando as patadas da vida. Da mesma forma que foi influenciado pelo mal, o bem o influenciou a ser uma boa pessoa.
Outra que acontece também no começo do livro é a história secundária da obra, a vida de Fantine. Ela era uma belíssima jovem, dos cabelos ondulados e dourados (talvez seja resquícios da época que o povo francês era louro, não sei se Mr Hugo teve essa intenção) que havia se apaixonado perdidamente por um rapaz, rico, bem de vida, porém como muitos homens, e cada vez um infeliz grandioso número de mulheres atuais também, não valia um tostão como pessoa. A conquistou, a engravidou e fugiu com os amigos depois de "apenas essa aventura", deixando a pobre Fantine com um rebento a nascer e sozinha no mundo a criar. Mais tarde essa filha se tornaria a pequena Cosette.
Tinha falado em uns posts anteriores sobre como a sensação de estar apaixonado nos faz sentirmos como a primeira vez, aquele amor inocente, puro e bobo. Verdade seja dita, o amor é uma coisa que não apenas engrandece as pessoas como as tornam mais jovens, mais cuidadosas e mais calorosas. Depois que o amor de Fantine a deixou, e nunca mais voltou vemos a desfiguração total dela. Sem mais ninguém a amar, para a ter como uma mulher, ela envelheceu e perdeu o cuidado por si. Tudo mudou com o nascimento de sua pequena Cosette, que ela a enchia de babados e amor, via nela a mulher que ela seria naquele tempo, se estivesse ainda na flor da juventude e com um amor para a preencher. Tudo causado apenas por uma aventura, mas ela acabou se apaixonando mesmo.
Talvez falem que isso é hipocrisia, mas não é difícil ver mães solteiras que se matem em dois ou três empregos para der o melhor para sua filha. E muitas vezes essa mesma filha acaba sendo o espelho de tudo aquilo que elas mais queriam ser, mas não podem. Não podem pois foram abandonadas, foram deixadas ou apenas pois não se viam com o ânimo de voltar. Claro que entre os famosos existem cirurgias plásticas e recauchutagens, mas entre os pobres a única maneira é essa mesmo. Aqui no bairro existe uma mulher que já tem lá seus trinta e tantos anos, mas ainda aparenta ter uns vinte, que faz programas. Vejo às vezes ela andando feliz pelas ruas aqui perto de casa com sua filhinha, que é a coisa mais lindinha do mundo. Não ousa olhar ninguém nos olhos - todos sabem da sua vida - apenas tem olhos para a menina. A leva para a escola, faz suas refeições, vai ao mercado e sacolão com ela. Não tem marido, nunca vimos sequer a família dela. A menina é a coisa de maior valor que tem.
Existe sim algumas nuances da alma humana que muitos não imaginam. Ainda existe obviamente o estereótipo da prostituta que faz programas para sustentar o vício em drogas, ou as prisioneiras sexuais que são levadas para outros países. Verdade também que existem garotas de programa que já são mães, e acabam escolhendo essa infeliz vida para dar de sustentar a sua filha. Fantine faz a mesma coisa no livro, e devo dizer que uma parte que choca sem dúvida a todos, até eu que sou homem. Só mesmo lendo pra entender, até onde o amor pela sua filha é capaz de fazer uma mulher se render a pior das humilhações para lhe dar o que comer. Chocante, mas essa coisa existe. E de dia, essa mulher que mora aqui perto nem aparenta em nada a que vejo quando estou chegando de noite da faculdade, quando ela sai para "trabalhar". Triste, mas uma infeliz verdade, porém essa mesma infeliz realidade é tingida felizmente por amor, com certeza imensurável.
Às vezes eu olho pra cima e vejo como esse sentimento é uma coisa tão forte. De fato, pessoas movidas por amor não são bobas ou sentimentalistas. Não são seres inferiores que vão contra o atual paradigma da sociedade que manda sermos frios. São louváveis, pois mesmo se rendendo para um sentimento mostram-se ser sim seres humanos que agem tanto para um lado, como para outro, o lado lógico e emotivo. E isso que nos torna nossas vidas tão especiais, acredito.
A maior lição é: a vida pode ser uma bosta. Você pode ser a pessoa mais odiada e mais solitária do mundo. Pode não ter nada, nem no aspecto psicológico. Mas, se alguém te fizer uma boa ação, não importa o tamanho, você jamais esquecerá. E levará essa pessoa pra sempre contigo no coração, e mesmo que você passe por um momento difícil, lembrará daquela boa época e sorrirá. Pois más ações podem nos machucar, mas querendo ou não, são as boas ações que não nos fazem ser meros transeuntes na vida dos outros.
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