Aquele rodeado pela sua desgraça.

Terminando de ler o primeiro volume de Os miseráveis. Prometi a mim mesmo que desse ano não passava: ia ler Victor Hugo de uma forma ou de outra. E ele é apenas um dos autores da listinha nada modesta de obras que estou procurando e lendo. Tirando os trinta graus infernais de hoje (desculpe amigos cariocas, que suportam até uns quarenta, mas pra quem vive nos planaltos de São Paulo os trinta equivale aos seus quarenta!) as coisas vão indo bem. Como que com essa temperatura eu não consigo dormir, fico apenas dançando na cama sem agarrar num sono, fico lendo até a hora que o cérebro pára de funcionar, heheh... E sim, sem sono.

Gosto desses livros que não são auto-ajuda, mas sem dúvida valem tanto quanto um. E nada dos conselhos descarados, o clássico "faça isso ou aquilo e resultará nisso", mas que falem das ações de uma forma narrativa e muito boa. Nada contra auto-ajuda, até porque se eu falasse mal deles seria o mesmo que o sujo falar do mal-lavado (costumo ler alguns também). Existem alguns fatos que chamam muito a atenção, e indico a todos lerem, até porque as edições atuais de Os miseráveis foram re-escritas e estão bem didáticas na linguagem contemporânea.

Um dos personagens que mais me chamam a atenção é o Bispo de Digne, ou D. Bienvenue. Como sendo um bispo grande parte de suas palavras tem um tom dosado da sacristia, mas tirando isso, algumas falas dele e reflexões moldaram muitíssimo bem o personagem. Pra quem não lembra, esse é o bispo que no começo do livro decide viver na miséria e deixar a catedral virar um hospital pois seria assim mais útil. Ele fala que o homem é como uma espécie de pêndulo, ele balança entre o bem e o mal, e é exatamente a função dos eclesiásticos manter essas pessoas na luz, para que não fujam para as sombras.

Existe sim pessoas que são realmente miseráveis no livro, mas o livro tem como temática principal a redenção. E isso pode ser sim levado para a vida. Vejo pessoas que são más umas com as outras, e somente recebem o mal de volta, afinal é assim que a sociedade funciona e a lei da selva diz muito sobre isso. Se alguém te fazer o mal, faça o pior com ele. Esse ciclo é desencadeante, e assim pessoas acabam rodeadas pelas suas desgraças e de alguma forma cavam suas próprias covas, perdendo amizades, amores, confiança e relacionamentos se tornando cada vez mais superficiais. Porém isso só é quebrado quando alguém é bondoso pra você. Por isso que é sempre bom manter boas energias ao redor de si, ser uma boa pessoa fazendo boas ações, pois da mesma forma que fazer o mal lhe devolve o péssimo, fazendo o bem por mais que tenham pessoas más elas acabam sendo boas de alguma forma pra você. O exemplo maior do livro é a reação entre Jean Valjean e o Bispo, onde o primeiro inclusive o rouba, logo após o sacristão ter lhe dado comida e abrigo e mais tarde ao ser pego por policiais o Bispo mente dizendo que os objetos surrupiados foram um presente para o condenado, e pelo seu gesto de bondade o ex-criminoso Valjean torna-se uma pessoa boa, mesmo levando as patadas da vida. Da mesma forma que foi influenciado pelo mal, o bem o influenciou a ser uma boa pessoa.

Outra que acontece também no começo do livro é a história secundária da obra, a vida de Fantine. Ela era uma belíssima jovem, dos cabelos ondulados e dourados (talvez seja resquícios da época que o povo francês era louro, não sei se Mr Hugo teve essa intenção) que havia se apaixonado perdidamente por um rapaz, rico, bem de vida, porém como muitos homens, e cada vez um infeliz grandioso número de mulheres atuais também, não valia um tostão como pessoa. A conquistou, a engravidou e fugiu com os amigos depois de "apenas essa aventura", deixando a pobre Fantine com um rebento a nascer e sozinha no mundo a criar. Mais tarde essa filha se tornaria a pequena Cosette.

Tinha falado em uns posts anteriores sobre como a sensação de estar apaixonado nos faz sentirmos como a primeira vez, aquele amor inocente, puro e bobo. Verdade seja dita, o amor é uma coisa que não apenas engrandece as pessoas como as tornam mais jovens, mais cuidadosas e mais calorosas. Depois que o amor de Fantine a deixou, e nunca mais voltou vemos a desfiguração total dela. Sem mais ninguém a amar, para a ter como uma mulher, ela envelheceu e perdeu o cuidado por si. Tudo mudou com o nascimento de sua pequena Cosette, que ela a enchia de babados e amor, via nela a mulher que ela seria naquele tempo, se estivesse ainda na flor da juventude e com um amor para a preencher. Tudo causado apenas por uma aventura, mas ela acabou se apaixonando mesmo.

Talvez falem que isso é hipocrisia, mas não é difícil ver mães solteiras que se matem em dois ou três empregos para der o melhor para sua filha. E muitas vezes essa mesma filha acaba sendo o espelho de tudo aquilo que elas mais queriam ser, mas não podem. Não podem pois foram abandonadas, foram deixadas ou apenas pois não se viam com o ânimo de voltar. Claro que entre os famosos existem cirurgias plásticas e recauchutagens, mas entre os pobres a única maneira é essa mesmo. Aqui no bairro existe uma mulher que já tem lá seus trinta e tantos anos, mas ainda aparenta ter uns vinte, que faz programas. Vejo às vezes ela andando feliz pelas ruas aqui perto de casa com sua filhinha, que é a coisa mais lindinha do mundo. Não ousa olhar ninguém nos olhos - todos sabem da sua vida - apenas tem olhos para a menina. A leva para a escola, faz suas refeições, vai ao mercado e sacolão com ela. Não tem marido, nunca vimos sequer a família dela. A menina é a coisa de maior valor que tem.

Existe sim algumas nuances da alma humana que muitos não imaginam. Ainda existe obviamente o estereótipo da prostituta que faz programas para sustentar o vício em drogas, ou as prisioneiras sexuais que são levadas para outros países. Verdade também que existem garotas de programa que já são mães, e acabam escolhendo essa infeliz vida para dar de sustentar a sua filha. Fantine faz a mesma coisa no livro, e devo dizer que uma parte que choca sem dúvida a todos, até eu que sou homem. Só mesmo lendo pra entender, até onde o amor pela sua filha é capaz de fazer uma mulher se render a pior das humilhações para lhe dar o que comer. Chocante, mas essa coisa existe. E de dia, essa mulher que mora aqui perto nem aparenta em nada a que vejo quando estou chegando de noite da faculdade, quando ela sai para "trabalhar". Triste, mas uma infeliz verdade, porém essa mesma infeliz realidade é tingida felizmente por amor, com certeza imensurável.

Às vezes eu olho pra cima e vejo como esse sentimento é uma coisa tão forte. De fato, pessoas movidas por amor não são bobas ou sentimentalistas. Não são seres inferiores que vão contra o atual paradigma da sociedade que manda sermos frios. São louváveis, pois mesmo se rendendo para um sentimento mostram-se ser sim seres humanos que agem tanto para um lado, como para outro, o lado lógico e emotivo. E isso que nos torna nossas vidas tão especiais, acredito.

A maior lição é: a vida pode ser uma bosta. Você pode ser a pessoa mais odiada e mais solitária do mundo. Pode não ter nada, nem no aspecto psicológico. Mas, se alguém te fizer uma boa ação, não importa o tamanho, você jamais esquecerá. E levará essa pessoa pra sempre contigo no coração, e mesmo que você passe por um momento difícil, lembrará daquela boa época e sorrirá. Pois más ações podem nos machucar, mas querendo ou não, são as boas ações que não nos fazem ser meros transeuntes na vida dos outros.

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