Doppelgänger - A história dentro da história (13)

Meu irmão mais velho foi o meu maior exemplo. Uma pessoa que sozinha encarnava justiça, amizade, companheirismo. Mas, para mim, era apenas meu irmão. Sua morte deixou um buraco imenso no meu coração, até hoje. Essas são partes das minhas memórias que tenho com ele, que guardo no fundo do meu coração.

“Al, Al,”, dizia Arch, me despertando, “Acorda, irmãozinho”.

“M-mano! Eu queria, eu queria te mostrar! Eu consegui resolver todos os quebra-cabeças desse livro!”, eu disse, ainda moleque, apontando o livro.

Eu tinha agarrado num sono no meio do sofá. Meu irmão tinha passado a madrugada inteira resolvendo um caso, como muitas vezes ocorria, e Émilie não estava lá, saiu a noite inteira, pra variar. Meu irmão estava com mais três colegas dele de trabalho. Entre eles estava Lucca, que ao pegar o livro não acreditou no que tinha visto.

“Minha nossa, você resolveu tudo! Você é realmente um gên...”, disse Lucca, interrompido por Arch:

“Irmãozinho, você ficou mais de vinte e quatro horas acordado pra resolver isso tudo. Acha que isso iria te fazer bem?”, disse Arch, me repreendendo.

“Mas mano, eu fiz tudo! Resolvi tudo! Me esforcei e vou te ajudar a...”, eu disse, mas ele interrompeu.

“Al!”, gritou Arch, com cara de quem não queria ter de fazer isso, “Escuta, é admirável mesmo. Você tem uma capacidade de imersão muito grande. Muito maior que até mesmo a minha. Mas resolver uma investigação na vida real precisa de muito mais do que isso. Me prometa, Al. Não quero que nunca mais faça isso. A Inteligência não é algo bonito como é nos filmes. Podemos morrer a qualquer hora, uma morte pior que de cachorro. E se eu estou me esforçando pra termos uma vida boa é pra que você estude e nunca precise se envolver isso. Nunca. Entendeu o que eu disse?”, meu irmão me agarrou pelos ombros e olhou no fundo dos meus olhos, “Não te quero mais ver envolvido com isso. Faz isso por mim?”, concluiu.

Eu pensei que ele iria ficar orgulhoso de mim. É verdade que eu tinha uns sete ou oito anos, eu era uma criança. Mas eu queria mostrar pro meu irmão que eu poderia ajuda-lo. Que eu queria seguir os passos dele. E meus olhos lacrimejaram. E os do meu irmão mais velho também. Ele seria um péssimo pai, hahaha! Acho que nunca conseguiria repreender um filho, se ele tivesse.

E aí Arch, meu irmão, me abraçou. Me abraçou forte mesmo, sabe? Eu sentia o coração dele pulsando contra meu rosto.

E eu só ficava chorando, e ele também, e eu sabia que os amigos dele vendo aquela cena não estavam entendendo nada. Esse era o amor do meu irmão. Um amor que sabia até mesmo repreender da melhor forma do mundo. No meio das lágrimas e do soluço, eu disse no ouvido dele enquanto estávamos abraçados:

“Mano, eu... Só queria te proteger...”.

Semanas depois disso meu irmão recebeu uma carta. Como ele não ficava muito em casa, era eu quem cuidava de tudo. Por um lado era bem trabalhoso, mas meu irmão muitas vezes mesmo exausto ele tirava forças não sei de onde pra fazer até mesmo o serviço de casa, deixar meu almoço na geladeira, e me incentivar a comer bastante coisa saudável. Talvez seja por isso que eu tenha desenvolvido habilidades culinárias e limpeza da casa. Era a forma de retribuir tudo o que meu irmão fazia por mim.

Essa carta vinha da família da esposa dele, a Émilie. Eram os Blain. Eram franceses, riquíssimos, grandes empresários, e ao mesmo tempo envolvidos com máfia, e dominavam até mesmo os políticos da França. Eram pessoas acima do bem e do mal. E os Blain detestavam meu irmão mais velho. Diziam que ele era um vira-lata se envolvendo com pessoas do mais alto pedigree. Mas Émilie era sua esposa, e o amava.

Porém, desde que eu estava morando lá, Émilie parecia me ver como alguém que queria roubar seu marido. Arch era meu irmão, e minha única família. Mas isso não importava a ela. Ela nutria um ciúmes doentio por mim, mas meu irmão nunca ouvia apenas o lado dela. Ele sabia desse ciúmes dela, mas não se abalava.

A carta dos Blain eram um convite. E veio junto com um emissário. Era pra ressaltar mesmo que era uma convocação. E não havia a opção de dizer “não”.

“Jovem, tenho uma convocação para seu irmão, Arch. A família da sua esposa quer promover uma reunião familiar, e como ele é membro, deve comparecer. Caso contrário será considerado uma afronta, uma traição!", o homem disse, ressaltando a palavra ‘traição’.

Isso era errado, mas eu não resisti e abri a carta depois que fechei a porta e agradeci ao entregador. Parecia sério. E meu irmão sempre dava uma desculpa pra não ir nessas reuniões dos Blain. O endereço era claro. E como não tinha ninguém em casa, achei que eu poderia ir à mansão dos Blain em Londres. Era fácil de chegar, ficava no subúrbio de Londres. Nem reparei que eu estava de pijamas ainda. Só me liguei quando estava chegando no local mesmo. Mostrei o convite e entrei. Era noite, e todos estavam vestidos de maneira bem elegante, e ao longe eu vi Émilie, que ao me ver virou o rosto, e fingiu que não tinha me visto. Era normal por parte dela.

"Ei, garoto! Aqui não é lugar pra uma criança suja como você pisar, dê o fora daqui agora!", o homem disse, brabo. Devia ser algum dos Blain.

"D-desculpe, senhor! Eu vim aqui apenas dizer que meu irmão não vai poder comparecer, e gostaria de pedir desculpas por ele, ele está passando mal e disse que sentia muito!", eu disse, tremendo e gaguejando de medo.

"Então você é irmão daquele merda?", o velho gritou, todos no salão se calaram e olharam para nós dois, "Diga se ele não vier hoje e mostrar um mínimo de respeito a nossa tradição, considere-se fora da nossa família! Pare de inventar essas estorinhas e vá buscar ele agora!".

"Senhor, meu irmão é uma pessoa bondosa e honrada! Ele apenas está doente e não poderá vir!", naquela hora eu vi a furada que eu havia me metido. Nem meu irmão sabia da convocação (e mesmo se soubesse ele não iria de qualquer forma). Eu estava em um ninho de cobras, prestes a virar parte do jantar deles.

Foi aí que eu vi o primeiro homem (o que gritou comigo) resmungando baixinho vários "Não vai vir, é?" e se aproximando de mim, com seus olhos vermelhos de fúria.

Nessa hora esse homem me deu um chute muito forte no meu peito. Nossa, como isso doeu! Eu fiquei tonto, não conseguia mais ver nada, e a dor queimava ao mesmo tempo que o susto da surpresa tinha feito meu coração disparar. Com o impacto eu fui jogado pra trás, e esperava bater a cabeça na parede ou numa quina de uma mesa.

Mas alguém me pegou. E tinha aquele cheiro gostoso que apenas meu irmão mais velho tinha.

"Algum problema, François?", disse Arch, me segurando, "Eu não dou a mínima para as asneiras que vocês falam sobre mim. Mas eu não perdoo essa perna que acabou de chutar meu irmãozinho. Vem agora, seu merda! Bote sua perna aí para que eu possa torcê-la!".

Esse era meu irmão. E coitada da pessoa que mexesse com alguém que ele amava. Assim como qualquer outra pessoa, ficaria completamente louco e fora de si.

Naquela noite, ao voltarmos pra casa, meu irmão me deu banho e escovou meus dentes. Fui deitar, mas não consegui dormir. A porta do meu quarto estava entreaberta, e a fresta da porta fazia brilhar a luz no corredor, que estava chegando nos meus olhos. Do outro lado da porta estavam Arch e Émilie, tendo uma briga de casal.

“Eu já te disse, entrega ele a um orfanato então! Eu não quero mais ver esse pirralho aqui com a gente! Você é o meu noivo! O que vai fazer quando nos casarmos? Vai levar esse moleque junto?”, dizia Émilie.

“Émilie, pelo amor de deus! Al é o meu irmão mais novo! Eu não tenho como abandonar ele! Eu o amo! Ele vai vir morar com a gente, aceita isso!”, dizia Arch.

“Eu não quero!! Eu não quero!! Eu não quero esse pirralho se metendo entre a gente!!”, gritou Émilie, com um profundo sentimento de negação.

“Minha nossa, o que você tem contra ele?”, perguntou Arch, tentando entender a situação.

Émilie ficou quieta. Muda. Colocou a mão na testa, parecia tensa. Se sentou. Arch ficou parado em pé na frente dela, aguardando a resposta. Nada.

“É bom que você escolha. Ou vai ser ele, ou a mim. E é bom que você faça a escolha certa”, disse Émilie, pegando as chaves do carro e saindo de casa apressada.

Essa cena eu nunca vou esquecer. Me bateu um frio no estômago, e arrepiei quando vi que eu era a causa dessa briga toda. Meu irmão sentou na poltrona e colocou as mãos no rosto e chorava, chorava muito. Por mais que meu irmão fosse meu tutor, meu mestre, meu exemplo, naqueles momentos eu via quantos dilemas ele passava na sua vida. E por um momento me senti culpado. Mesmo eu não tendo culpa alguma. Émilie era uma víbora, uma pessoa que havia me colocado como um empecilho na vida dela. E que por mais que eu me esforçasse, ela nunca me aceitaria. E o coração do meu irmão ficava nesse impasse. Amando ao mesmo tempo o irmão e sua noiva. Ele não poderia escolher. Nós dois o completávamos do mesmo jeito.

E aí meu irmão foi morto. Eu tinha apenas dez anos.

Eu lembro de tudo, como se fosse ontem.

No dia estava pingando uma chuva. Parecia uma chuva escura. O corpo estava sendo velado num lugar bem simples. Não haviam muitas pessoas, sequer haviam flores. Cheguei ao local junto de Schultz, aquele que havia sido o mestre do meu irmão, e havia ensinado tudo pra ele. Ele já estava na casa dos noventa anos, andava com uma bengala e muita dificuldade, mas quando percebeu o quanto eu estava triste no velório do meu irmão mais velho ele me deu um empurrãozinho e eu fui na frente, enquanto ele ia atrás, caminhando lentamente.

As pessoas ao meu redor, pelo menos as poucas pessoas que lá estavam, pareciam que estavam lá pra denegrir o resto de imagem que meu irmão tinha. E apontavam o dedo pra mim, e via nos rostos deles a expressão de nojo pra mim. Diziam que eu era irmão mais novo do traidor. E que eu era um moleque imundo que não merecia viver. Que meu sangue era o mesmo que corria nas veias dele. O sangue do traidor imundo que Arch era pra eles.

Havia um caixão. E por cima do esquife tinha um pano branco, bem simples, de algodão. Eu me aproximei, chorando, e desabafei.

“Mano... Porquê tudo isso?”, foi a única coisa que eu consegui dizer.

Ao erguer o pano, não havia nada dentro do caixão. Nem mesmo o corpo do meu irmão estava lá pra ser velado. Um traidor que sofreu a punição mais grave de todas: além de ser morto, teve o corpo perdido. Uma coisa que é feita com diversos líderes que tinham legiões de seguidores, para que o local onde o corpo esteja enterrado não sirva pra nenhum tipo de propagação ou propaganda de seus ideais.

Mas quem havia morrido não era apenas um líder, inspirador ou mestre. Era meu irmão mais velho que eu tanto amava!

Será que era pedir muito que eu tivesse a chance de chorar os restos mortais do meu irmão, e não um caixão ou lápide vazios? Já é uma coisa dura você perder um ente querido. Nós choramos, nos entristecemos muito. Mas pior ainda é não ter a possibilidade de chorar, pois nem sequer o corpo dele havia sido achado.

Mano... Você me faz tanta falta...

- - - - -

Schultz morreu alguns anos depois. Abandonei sua tutela, a escola e tudo. Ainda adolescente fui treinado pra ser um agente da Inteligência por Vincent Artax, meu mestre, pois queria desmascarar e fazer justiça em nome do meu irmão. Quando tinha por volta de vinte anos abandonei sua tutela e fui atrás de cada uma das pessoas que faziam parte da equipe do meu irmão. Muitos dos quais também o haviam traído, e estavam envolvidos em seu expurgo e execução.

Muitos deles eu prendi com minhas próprias mãos.

No nosso time eram eu, Victoire, Yuri e a garota do cabelo cor-de-berinjela. Tentamos parar Dietrich, que no final conseguiu botar a mão na Dawn of Souls, um disco com a localização e dados de todos os agentes de espionagem do mundo. Temendo nosso perigo, Francesca Vittorio, nossa chefe na época, mandou eu e a garota do cabelo cor-de-berinjela para o exílio, casados, para não levantarmos suspeitas. Victoire permaneceu em Londres, trabalhando na Inteligência, e Yuri desapareceu.

Em 2006 a garota do cabelo cor-de-berinjela, minha esposa, morreu nos meus braços, criando mais uma ferida impossível de cicatrizar no meu coração. Eu que havia perdido meu irmão, agora havia perdido a única mulher que havia amado.

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