Amber #2 - A garota que comia terra pra sobreviver.

Toda vez que Briegel saía com sua filha nas ruas de Berlim era alvo de olhares de estranheza. O que fazia aquele homem louro, alto, bonito, andando com aquela menina negrinha, fraca e desnutrida?

O ano era 1913. Roland Briegel era um soldado do exército prestando serviços ao Kaiser Wilhelm II. Foi designado pra lutar no Sudoeste Africano Alemão, cuja tropa era liderada pelo seu pai, um heróico capitão do exército alemão e que ao mesmo tempo detestava seu próprio filho: Heinrich Briegel. Roland era o terceiro filho de cinco. Ser o irmão do meio é bem complicado também, e justo ele que era o mais humilhado de todos os seus irmãos por ser compassivo com o sofrimento das outras pessoas, coisa que a maioria dos irmãos e irmãs tinham por ninguém a não ser eles mesmos.

Heinrich Briegel, um homem essencialmente machista, dizia que seu filho Roland era fraco pois havia puxado as fraquezas femininas de sua mãe. Mãe essa que ele mal conheceu, pois faleceu ao dar a luz o seu irmão mais novo. A maior rixa de Roland era sua irmã mais velha, a primogênita Brigitte. Ela poderia ter uma aparência amistosa e bela, mas era um demônio pior que o próprio pai, e sempre fez o irmão mais novo sofrer muito, humilhando-o e dizendo que ela fazia isso “para o próprio bem dele”, ou porque “o amava muito”. Uma forma de poder cometer suas atrocidades com a desculpa de que era tudo por “amor”. Brigitte era essencialmente alguém doentia.

E foi justo naquele ano de 1913 que a vida de Roland Briegel cruzou com quem viria a ser sua filha.

O local em que hoje conhecemos como Namíbia era conhecida no começo do século XX como Sudoeste Africano Alemão. O local foi palco de um dos primeiros genocídios do século XX, também movido por uma questão racial do povo alemão, mas muitos anos antes do Holocausto e de sequer Adolf Hitler chegar ao poder. Mas não quer dizer que não foi algo detestável.

É verdade que o Holocausto matou muitos judeus. Algumas fontes dizem que os judeus perderam aproximadamente 35% do seu povo. Um número imenso, de fato. Mas durante anos de 1904 até 1907 o Império Alemão na época exterminou cerca de 50% dos membros da etnia namaqua e 80% dos membros da etnia hererós, no que ficou conhecido como Genocídio dos Namaquas e Hererós. Tudo isso acontecendo longe da Europa, de jornalistas, e justamente contra um povo negro e pobre, no próprio Sudoeste Africano Alemão.

Obviamente o povo Herero e Namaqua se rebelou contra a invasão alemã, mas o governador do Sudoeste Africano Alemão, Theodor Leutwein, pediu ajuda a Berlim que mandou Lothar von Trotha com tropas que totalizavam 14 mil homens. Milhares de homens armados contra um povo pobre que mal conseguia se defender, e só queria o direito de ter sua terra e suas famílias. Heinrich Briegel, pai de Roland Briegel era um dos seus homens de confiança, e durante todo esse período esteve por lá.

Estimativas apontam de 24 mil a 100 mil hererós e 10 mil namaquas foram mortos. Com números tão grandes, é desnecessário dizer que sua grande maioria foi caçada, presa, torturada, escravizada e inclusive enviada a campos de concentração na própria região. Quase 150 mil vidas. 150 mil histórias.

Uma delas é da garotinha que se chamaria Alice Briegel. Porém, nessa época, ela ainda era conhecida apenas como “Tariro”.

“Tariro!! Por aqui, corre!!”, gritava uma menina num grupo de outras crianças.

O massacre dos hererós e namaquas havia acabado, o ano era 1913. A Alemanha estava a caminho de entrar na Primeira Guerra Mundial, porém a presença alemã ainda existia na sua colônia na África. As ruas de Windhoek, a capital do Sudoeste Africano Alemão eram sujas, quentes, e os cadáveres pareciam apodrecer entre as ruas. Manter a colônia e as pessoas sob as rédeas curtas eram uma forma que alemães tinham encontrado de tentar ficar com um mínimo de espólio de guerra. E pra manter esse domínio, alemães utilizavam do medo contra o povo que vivia nessa terra.

“Venha cá, sua pirralha!”, gritava Heinrich Briegel enquanto corria pelos becos em ruínas com seus soldados, “Você e aqueles bandidinhos vão morrer um a um por terem me roubado!”.

Pobre Tariro. Seus pais foram sumariamente executados durante o massacre enquanto ela ainda estava sendo amamentada. Heinrich Briegel a jogou numa das muitas valas onde estavam os mortos, e acreditava que se enterrasse o bebê vivo naquele lugar cheio de mortos economizaria algumas balas para a execução. Mas parece que o destino sempre reserva uma sorte especial para bebês recém-nascidos. Tariro tinha fome, e mal conseguia chorar. Emitia uns sons abafados, tristes, que soava como morte. Mas ainda assim chamou a atenção de outras crianças de rua de Windhoek, que tentaram achar uma ama de leite para o bebê e a batizaram de Tariro. Que significa “esperança”.

“Por aqui, Tariro! Pula aqui, pula aqui!”, gritava seus amigos, do outro lado de um córrego, separado por uma vala, não muito comprida, mas que tinha uma altura grande até o chão.

Tariro não pensou duas vezes. Começou a tomar cada vez mais velocidade para dar seu salto. Eles só queriam um pouco de pão para comer. E depois do susto, da correria para fugir e salvar suas vidas, deixou cair o valioso pão que havia dado tanto trabalho para roubar. Seria mais uma noite com o estômago roncando. Lembrou então do gosto horrível e ferroso que tinha a outra única opção que eles tinham: juntar água, fazer bolinhos com a própria areia e comer aquilo. E torcer obviamente pra não vomitar ou algo pior acontecer. Terra suja, cheia de sujeira, restos de cadáveres e fezes. Era a única coisa nutritiva no meio daquele fim de mundo desértico.

“Parada aí, sua pirralha!”, disse Heinrich, que a surpreendeu vindo pelo beco ao lado, agarrando a menina pelos trapos brancos e sujos que vestia. Obviamente o tecido começou a rasgar quando Tariro viu que havia sido pega e tentou fugir, logo Heinrich a ergueu pela perna, magra, pequena, e a deixou de cabeça pra baixo, como um animal, virada em direção das outras crianças órfãs de rua que estavam do outro lado do córrego a aguardando.

“Eles não são humanos! São uns pretos fedidos! Nem merecem ser chamados de animais! Abram fogo contra aqueles pivetes!!”, ordenou Heinrich. Nessa hora seis soldados que estavam junto dele apareceram e abriram fogo contra as crianças de rua sem hesitar. Tariro viu aquilo tudo e começou a gritar. Um a um foram sendo sumariamente mortos na sua frente. Seu grito agudo parecia ser mais alto que o barulho das escopetas do seu lado matando todos seus amigos. Era um grito por ter perdido os únicos que eram sua família.

Tariro viu seus amiguinhos todos mortos. Uma delas, inclusive, estava com o rosto virado pra sua direção. Seu olhar no chão agonizando ficou marcado em sua memória, pois sua amiga chorava lágrimas de sangue enquanto dava seus últimos soluços.

“Vai querer roubar nossa comida de novo? Vai querer? Não vai querer mais. Vou matar você agora mesmo e dar você de comida aos cachorros, sua pretinha!”, gritou Heinrich Briegel.

“Isso eu não vou permitir, seu bêbado idiota!”, disse uma voz, arfando, logo atrás de Heinrich.

Era Roland, seu filho, que ainda era um soldado raso recém recrutado pelo Império Alemão.

“Roland? Seu inútil. Nem pra correr você serve. Saia já daqui!! Sou eu quem mando nessa merda!”, ordenou Heinrich Briegel.

Todos os homens apontaram suas armas para Roland. Ainda assim ele continuou andando em frente. Havia corrido pois havia presenciado a cena do roubo, mas infelizmente havia perdido seu pai de vista quando teve esse acesso de fúria. Roland tinha apenas dezoito anos na época, e estava servindo pela primeira vez o exército alemão. Seu pai, Heinrich, tinha quarenta e oito anos.

“Vocês, ou melhor, todos nós estamos perdendo essa guerra a cada dia. Por acaso você acha justo descontar sua raiva matando crianças de rua inocentes que só queriam um pedaço de pão? Eles ainda vieram pedir antes e estavam revirando o lixo atrás de restos de comida! Aquela comida iria pro lixo, e ainda assim você os chama de ladrões?! Você é um velho bêbado idiota, e eu devia ter te impedido de ter matado aquelas crianças. Agora você não vai encostar em um fio do cabelo dessa aí! Solta ela AGORA!”, disse Briegel, desafiando o próprio pai.

Heinrich Briegel era um cara ignorante. Um pai nojento, machista, que achava que ganhava na base do grito. Mas naquela hora, justamente o seu filho mais frouxo estava fazendo o que nenhum dos outros teve coragem: peitar o próprio pai tomado pela cólera.

Ele não teve escolha. Briegel não precisou apontar arma, nem encostar nele. Heinrich simplesmente soltou a menina, que caiu no chão, num som abafado, de cara no chão.

Nenhum deles disse uma única palavra. Mas pela troca de olhares era possível ver que a inimizade do pai e filho era absoluta. Heinrich começou a andar, saindo de lá, mas não deixou de antes de ir virar o rosto e encarar o filho com um olhar furioso. Ao longe foi possível ouvir ele dando uma de suas escarradas características e cuspindo na parede o catarro. Aquilo não terminaria ali.

Roland Briegel ficou apenas observando seu pai até perdê-lo de vista. Tariro estava no chão, com medo, toda suja de terra. Roland calmamente se aproximou dela, tomado pela culpa. Ele tremia. Se ele não tivesse perdido seu pai de vista provavelmente aquelas crianças todas estariam salvas agora. Mas apenas a pequena Tariro havia sobrevivido.

Mas a menina viu algo no olhar de Roland Briegel. E naquelas lágrimas de arrependimento ela sabia que poderia confiar. Nem ela falava a língua dele, nem ele tampouco a dela. Ela se sentou e olhou pra ele, ainda com certa desconfiança.

“Eu sou um idiota mesmo… Eu devia ter corrido mais. Eu teria salvo seus amigos! Por favor, me desculpa… Me desculpa do fundo do meu coração”, disse Briegel, derrubando lágrimas. A menina não falava uma única palavra de alemão, mas aquela cena dele com a cabeça abaixada na sua frente agachado olhando pro chão enquanto ela estava encostada na parede sentada fitando-o deu certeza absoluta que poderia confiar nele.

A pequena Tariro levou a mão ao rosto do jovem Briegel e limpou sua lágrima com suas mãos pequenas. Ela não sorriu, apenas ficou olhando ele. Com uma vida tão dura ela nem sabia o que era sorrir.

“Ha! Puxa, é verdade né”, disse Briegel, rindo de si mesmo, “Eu não tenho muito aqui comigo, mas da onde veio esse, tem mais”, e Briegel deu pra ela um pacotinho com três amanteigados vienenses que ele carregava no seu bolso pra pequena Tariro. Ela pegou, abriu, deu uma mordida. Ela nunca tinha comido algo tão gostoso! Começou então a chorar também. E os dois um olhando pro outro estavam desabando em lágrimas.

“É verdade que seus amigos morreram. Mas agora, você tem o dever de viver a vida que eles não viveram. Você quer vir comigo? Eu te protegerei pro resto da sua vida. Posso te dar uma vida boa na Europa, te criarei como minha filha”, disse Briegel, mas a menina não entendia uma palavra de alemão.

Mas então Briegel usou um gesto universal, e estendeu seus braços em direção à garota, como se estivesse pedindo um abraço dela, e disse apenas:

“Quer vir comigo?”.

A menina em lágrimas largou o biscoito e correu pros braços de Briegel. Era o dia 22 de março. Foi o dia que Briegel a registrou como data de nascimento dela, já que ela mesma não sabia que dia havia nascido. Apenas sabia que tinha por volta de seis anos.

Quando ela chegou nos aposentos de Briegel viu que sob a sua mesa estava uma edição de “Alice no País das Maravilhas”, ricamente ilustrado por John Tenniel. Era uma das edições originais em inglês de 1865. Roland era um grande fã de Lewis Carroll, e achava que aqueles livros tinham coisas bem mais profundas do que crianças poderiam entender. Mas Tariro ficou maravilhada com aqueles desenhos. Nunca havia visto algo tão bonito.

“Ah, essa aqui é Alice. Alice no país das maravilhas”, disse Briegel, apontando na ilustração do livro.

“Ah… A-Alice…”, disse Tariro.

“Alice…? Isso! Alice, isso mesmo!”, disse Briegel.

“Alice! Alice! Alice!”, disse Tariro, sorrindo e empolgada com o nome.

Roland olhou pra ela e achou engraçado como a menina havia gostado do nome “Alice”. Tentando entender o que ela queria dizer, olhou pra menina novamente disse:

“Alice?”, disse Briegel. A menina atendeu e olhou pra ele. Briegel entendeu o que aquilo queria dizer e apontou o dedo pra ela, e novamente disse: “Alice?”

“Alice!”, confirmou Tariro.

E foi nesse dia que Tariro virou Alice. Alice Briegel. E Roland, seu mais novo pai adotivo, tinha um imenso presente para aquela pobre menina que ele salvou da morte no meio da guerra. Uma nova vida cheia de fartura na Europa. Uma vida que ela viveria no lugar daqueles que até aquele momento tinham oferecido suas vidas para que ela vivesse.

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