Amber - Quand il me prend dans ses bras, je vois la vie en rose.

Quando voltamos de Guernica para a Alemanha foi algo bem difícil. Lembro que quando chegamos em casa, na casa do coronel Briegel, vi que ele havia acabado de colocar a bagagem no chão e se apressou em abraçar sua filha Alice bem apertado. A filha retribuiu e também envolveu os braços no pai. Não demorou muito e os dois já estavam em lágrimas. Lágrimas de felicidade.

Sabe quando uma pessoa te abraça chorando? Quando a pessoa está tão junta de você, em prantos, e ainda assim fica falando? Essa sensação é algo tão bom. Parece que a gente não ouve com os ouvidos, parece que a gente ouve com o coração, pois as palavras da pessoa parece que ecoam no nosso corpo, a gente fica toda arrepiada, e isso nos conforta de certa forma.

Quando eu vi aquela cena lembrei dos meus pais. Lembrei da Maggie também. Como eu queria receber um abraço deles naquela hora. Viver sem nossos pais é uma tristeza constante. No fundo, lá no fundo, a gente sempre tá um pouquinho triste. Mas existem momentos em que a tristeza é maior. Existem momentos que a gente meio que se recorda de que não tem mais eles nas nossas vidas, e ás vezes a gente só queria ver, trocar algumas palavrinhas, ou quem sabe abraçar como eu via entre o coronel Briegel e Alice. Nesses momentos aquela tristeza pequena e constante vira uma tristeza enorme. Enorme, mas passageira. Tudo na vida meio que passa e a gente tem que seguir em frente apesar de tudo. Porém só quem passou por isso sabe o quão difícil é conviver com essas pequenas tristezas diárias e as grandes tristezas eventuais que surgem do nada.

Francamente não lembro o que dois falavam. Só sei que os dois estavam em lágrimas. Eu apenas observava, a poucos metros deles. Aquela seria minha nova família, pelo visto. Como seria a convivência com pessoas que eu mal conhecia? Francamente naquele momento eu não sabia. Só sei que quando o abraço entre os dois enfim terminou, eles perceberam que eu estava ainda lá, os observando. Alice estava com os olhos vermelhos de tanto chorar, soluçando. O coronel Briegel também chorava, e totalmente sem jeito ele olhou pra mim, sorrindo e em prantos:

“Puxa, é difícil de imaginar, sabe”, disse Briegel, pegando um lenço do bolso pra enxugar as lágrimas, “Pensei tantas vezes o quão difícil seria voltar pra cá e encontrar essa casa vazia. Quantas e quantas vezes ficamos entre a vida e a morte. Eu não consigo pensar em outra coisa que não seja gratidão. E irei com certeza me esforçar pra fazer valer a pena de cada segundo desse sonho que se tornou realidade”, Briegel não parava de chorar, e estava meio difícil dele mesmo falar. Ele fez uma pausa e Alice, ainda em pé, o abraçou de lado, sem dizer nada.

Eu não chorei. Não soltei uma única lágrima, apesar de estar de frente daquela cena familiar tão linda. Mas isso não quer dizer que eu não estivesse tocada por aquilo. Eu estava. Juro. É que tanta coisa havia acontecido nos últimos dias que eu me sentia ainda meio em choque, meio tentando digerir aquilo tudo. Sabe quando algo de chocante acontece com nós, e a gente e não esboça a emoção que o outro espera que a gente esboce pois nossa cabeça está a mil tentando entender o que aconteceu?

Na minha cabeça eu sabia que eu havia perdido minha prima. Mas a notícia ainda não havia chegado em meu coração.

“Liesl, eu acho que uma vida inteira pedindo desculpas não vai me redimir da culpa de não ter conseguido ser rápido o suficiente pra salvar sua prima. E eu tenho certeza de que você nesse momento queria muito poder abraçar sua prima, assim como eu estou com a minha filha”, nessa hora Briegel e Alice se olharam, e ele deu um beijo na testa dela, cheio de ternura. Ele falou exatamente o que eu estava sentindo, parecia que tinha lido minha mente. Depois o coronel Briegel prosseguiu: “Mas como eu prometi lá na Espanha, vamos todos nós fazer de tudo para que sua vida seja a mais tranquila possível a partir de agora. Você já sofreu demais. Sofreu e viu coisas horríveis que nenhuma criança deveria ver ou sentir. Por favor, confie em nós. Prometo que daremos nosso melhor”.

Na hora eu meio que não sabia o que responder. Eu entendo que quando uma pessoa perde um ente querido é normal que a pessoa fique triste. E eu estava realmente muito triste. Mas um milhão de coisas se passavam pela minha cabeça que talvez isso tudo me impedia de expressar minha real tristeza através de choro ou lágrimas.

A questão era que não é porque a pessoa não está chorando que quer dizer que ela não está triste ou sofrendo, na maioria das vezes. Mas como eles viam que eu não estava em prantos como eles, acho que pensaram que eu estava acanhada, ou não me sentindo a vontade pra chorar na frente deles. Eles olhavam pra mim com um ar de dó depois da fala, e durante vários segundos eu os encarava de volta sem saber direito o que falar.

Por fim, quebrei o silêncio:

“Ah... Obrigada”, foi apenas isso que eu disse.

Eu não tinha nada. Apenas uma roupa do corpo. No dia seguinte o coronel Briegel nos mandou até a França para fazermos compras. Talvez seria um lugar menos perigoso para uma judia e uma negra andar do que a Alemanha nazista. Chegamos a noite, descansamos, e no outro dia fomos às compras, eu junto de Alice.

Eram todas roupas tão lindas! Alice sempre escolhia roupas de mulher crescida pra mim.

“Isso! Olha só no espelho como ficou!”, disse Alice, virando meu corpo pra ficar de frente ao espelho. Quando eu me vi, mal me reconheci. Olhava pra Alice com toda aquela classe e elegância, com aquela pele linda, escura e brilhante, sem imperfeições, o cabelo perfeitamente aparado, os olhos grandes e escuros que brilhavam de felicidade ao me ver daquele jeito e eu ficava completamente sem jeito. Ela era uma mulher linda e eu era apenas uma criança. Queria muito ser como ela.

Eu não era mais aquela menina de vestidos de bolinha, de saia rodada, laços no cabelo, ou maria-chiquinha. Eu tinha até um sutiã novo, muito mais confortável do que aquele que já estava apertado. Aquela costura, aquele tecido, aquele padrão... Eu já estava me tornando uma mulher, e eu nem havia percebido.

Na hora que Alice me virou pro espelho na loja de roupas meus olhos lacrimejaram. E naquela hora enfim vi o tamanho do sacrifício da Maggie.

“Achei! Vem cá, coloca isso aqui no seu ombro e isso aqui vai na sua cabeça, e...”, disse Alice, colocando uma linda bolsa no meu ombro e um chapéu feminino lindíssimo da última moda na minha cabeça. Ela olhou no espelho pra ver como eu estava e simplesmente ficou estática ao me ver com os olhos lacrimejando.

“Ah, minha querida. Olha só, você está linda!”, disse Alice, me abraçando, “Você está virando uma grande mulher!”.

Na hora que ela falou isso eu vi que não havia motivos mais pra me sentir fora do ninho. As lágrimas caíam dos meus olhos e vi que eu estava vivendo aquilo, um verdadeiro sonho depois de anos vivendo fugindo de tudo e de todos, lutando para sobreviver, e que era tão bom! Mas acima de tudo as palavras da Alice ecoavam em meu coração pois a sua voz, o carinho em cada palavra, e o sentimento de profundo amor pareciam muito com o que minha prima Maggie diria.

Somente uma pessoa pura e bondosa como Alice poderia preencher o vazio no meu coração depois que perdi minha prima Maggie.

“Sabe, Alice, o que você disse era exatamente o que eu gostaria que minha prima dissesse pra mim ao me ver assim”, eu disse, e enfim retribuí o abraço, chorando no ombro dela, e entendendo que realmente não havia nada a temer. Alice seria a irmã mais velha que eu nunca tive, e sentia que a partir daquele momento uma grande amizade estava nascendo.

“Liesl, tem um momento?”, disse o coronel, dias depois, entrando no meu quarto com Alice e alguns papéis.

“Sim, claro, por favor, entre”, respondi.

“Escuta, eu não sei bem como dizer isso, mas...”, disse o coronel Briegel, olhando pra Alice com uma expressão totalmente sem jeito no rosto. Eu olhava pros dois tentando entender o que significava isso e aquelas folhas nas mãos deles.

“Ah, deixa que eu explico, papai”, Alice tomou a frente, “Liesl, é perigoso que você fique na Alemanha com o sobrenome Pfeiffer. O governo tem noção de que esse é um sobrenome judio, então papai achou uma maneira de poder mudar seu sobrenome para o de um ariano”.

“Escuta, sei que isso para muitas pessoas é como um ultraje, mas saiba que isso é pela sua segurança, aqui nessas folhas tem uma lista de sobren--“.

“Braun”, eu disse, o interrompendo, “Pode mudar meu sobrenome pra Braun?”.

Não havia outro. Ter o Braun era uma maneira que eu encontrei de me manter próxima da Maggie, e dessa vez pra sempre. Obviamente eu sabia que eu era Pfeiffer. E talvez se um dia o nazismo caísse eu gostaria de novamente ter o sobrenome do meu pai. Mas até lá, eu não ligaria de ter o sobrenome da minha mãe. E, obviamente, da minha prima que eu tanto amei.

“Não tem problema não. É uma ótima escolha, Liesl. Obrigado!”, o coronel Briegel agradeceu com um sorriso, como se entendesse o significado daquela escolha. Naquela hora eu sorri também pra ele, timidamente. Depois, com vergonha, disfarcei a expressão e olhei pra baixo, encabulada.

Aquele homem havia me salvado e me dado uma nova vida. Me ajudou a mudar meu nome, me deu um lar, comida, roupas. Me deu Alice, sua filha que ele tanto amava pra tomar conta de mim. A vida estava voltando ao normal. Isso até o primeiro dia de aula dessa nova vida.

Era quarta-feira. E no colégio que eu estudava era esse dia que havia encontros da Bund Deutscher Mädel, a Liga das Garotas Alemãs. Era um grupo de atividades onde as meninas arianas recebiam orientações para as prepararem a serem as que levariam adiante a visão nazista para o mundo. Haviam sessões de canções em público, juramentos, um falso idealismo baseado em esperança, exemplificando o conceito de pureza e virgindade do século XIX. Criavam ali multidões de meninas que se tornariam mulheres de nazistas que seriam o seio da nova família dentro da ideologia nacional-socialista de Adolf Hitler. Era horrendo. E o meu primeiro dia não foi exatamente a melhor definição de hospitalidade.

“Ah!! Tá doendo!!”, eu gritei. Era a nossa líder, uma mulher chamada Hackl, que eu não lembro o primeiro nome. Ela estava me segurando pelos cabelos, puxando-os enquanto me trazia pelo corredor. “Você não foi informada do regulamento? Não me venha com essa de que não sabe de nada, senhorita Braun!”, ela gritava com muita raiva, “Garotas com permanente do cabelo são proibidas! Cabelos lisos e trançados, no máximo em forma de grinalda Grechen!”

“Mas eu não usei permanente!! Meu cabelo é assim, encaracolado!!”, respondi. Nessa hora ela parou e me encarou.

“O quê? Uma ariana como você com cabelo encaracolado?”, disse a senhora Hackl ainda me puxando pelos cabelos, encarando meu rosto de frente. Foi uma burrice enorme eu ter dito aquilo, eu devia era ter ficado quieta e ter, sei lá, feito uma escova nos próximos dias. Com o rosto expressando muita raiva ela prosseguiu: “Então trate de fazer uma escova, ou algo do gênero. É terminantemente proibido usarem permanente no cabelo, e se você não estiver com esse cabelo trançado na próxima vez, farei questão de deixar sua cabeça raspada sem cabelo algum pra aprender!”.

Depois disso ela enfim soltou meu cabelo. Minha cabeça latejava de dor, parecia pulsar a cada segundo. Meus cabelos pelo visto eram bem resistentes, pois nenhum parecia ter se soltado, embora que naquela hora acho que se talvez eles tivessem se soltado talvez doeria menos. Vi que foi uma escolha péssima de entrar na Liga das Garotas Alemãs. Não apenas era horrível ter que fazer mil juramentos ao Hitler, estudar a superioridade ariana, aquelas canções péssimas em grupo, e o orgulho alemão que era expressado como um culto macabro. O que realmente me deixava pra baixo era vê-los criticando judeus, mesmo eu sendo meio judia, pregando coisas que eu jamais conseguiria contra outras pessoas, e muitas vezes me questionava se realmente aquilo valeria a pena.

Achei que poderia guardar segredo sobre isso. Pensava que se o coronel Briegel soubesse disso, ele iria ficar furioso comigo. Mas eu queria muito estar próxima dele. Eu não estava apaixonada por ele ainda, mas tinha um afeto grande por tudo o que ele fazia por mim. Achei que se entrasse na BDM isso seria um passaporte para a SD, afinal poderia me destacar na Liga das Garotas Alemãs e conquistar uma vaga como aprendiz na SD. Pelo menos era o que haviam me prometido. E não importa o que fosse ou onde fosse. Apenas importava com quem fosse. E essa pessoa era ele, o coronel Briegel.

Naquele dia ao sair da escola eu não voltei pelo caminho de sempre. Queria me esconder, sei lá, e fugi de casa.

Eu não conhecia muito Berlim. Nasci na Áustria, sequer havia pisado na Alemanha. Como Berlim era um lugar grande achei que se eu andasse muito com certeza estaria longe de tudo. Andei por mais ou menos umas duas horas depois de sair da escola à tarde, e já estava começando a anoitecer. Via que realmente a situação lá estava muito pior, mesmo antes da Kristallnacht. Várias placas em diversos locais tinham inscrições como: Judeus não são permitidos aqui.

Via famílias judias com aparência péssima andando nas ruas. Eu estava com o uniforme da BDM, e muitos rapazes me olhavam com olhares estranhos, como se estivessem interessados em mim. Isso era horrível. Aquele assédio todo, aqueles olhares sedentos, aquelas cantadas horríveis... Eu simplesmente ficava séria e tentava não esboçar nada, mas meu coração palpitava de medo de algum deles vir pra cima de mim.

Mas infelizmente não era pior do que eu iria ver na minha frente.

Uma mãe com um filho pequeno, pela sua aparência e pobreza era claro que ela era judia, e havia perdido tudo. Um grupo de moleques com uniformes da juventude de Hitler apareceram e a empurraram, jogando ela e o filho em uma poça na rua. Eles riam dela, gritando: “Sua judia porca! E aí que merece estar, no meio da lama!” e ninguém na rua fazia absolutamente nada.

Era clara a expressão de humilhação da mãe, que já estava suja, se erguendo com a criança sem ninguém para defende-la. Talvez uma pessoa normal iria até lá e daria um jeito naqueles moleques, afinal eram só uns três, e não pareciam ter mais do que dez anos. Mas aquela cena simplesmente me deixou aterrorizada pois não havia nada que me diferenciasse daquela pobre mulher. Eu tinha sangue judeu, e se não fosse pela ajuda que eu havia recebido do coronel Briegel eu seria tratado daquele mesmo jeito! Ou até pior!

Eu simplesmente entrei em pânico e comecei a correr. Tive medo de ajudar aquela mulher, fui completamente covarde. Corria, sem saber direito pra onde eu estava indo. E quando cansei, diminuí o passo e comecei a andar a passos largos. E quando cansei ainda mais eu caminhava rápido. E quando me dei conta já havia anoitecido e eu não sabia mais onde eu estava.

Com fome, sono, minha sorte era que era uma noite de verão de agosto. Sentei ao pé de uma árvore em um parque que eu não conhecia e por lá fiquei, agarrando num sono ali mesmo.

“Oh, deus, Liesl! Venha cá, filha, achei ela!”.

Sentada abraçada com meus joelhos e a cabeça abaixada vi a luz de uma daquelas lanternas cromadas na minha direção. Acabei acordando, afinal nem lembrava de ter pegado no sono. Mal levantei a cabeça pra ver e me senti envolvida nos braços de alguém.

“Liesl! Menina! Te procuramos a cidade inteira!! Minha nossa, que bom que você está bem!”, ouvi uma voz feminina ao fundo, ela parecia feliz, mas eu não havia entendido nada. Quem era a pessoa que estava me abraçando?

Eu não sabia quem era. Apenas me sentia bem. Aquele abraço transbordava sinceridade, ternura, e eu me sentia muito protegida. Fechei os olhos e aquele turbilhão de emoção me engolia cada vez mais. Aquele cheiro fresco, aquele rosto tocando o meu, aqueles braços fortes me apertando. Não havia mais escuridão da noite. Não havia mais fome. Não havia incerteza ou medo de que me repreendessem.

Aquela sensação era tão boa, era como se eu provasse pela primeira vez uma coisa ótima que eu via os outros fazendo, mas que fazia muito tempo que ninguém me dava um abraço tão bom. Naquele momento quando me prendeu em seus braços, eu via a vida cor-de-rosa.

Foi aí que a detentora da voz feminina pegou a lanterna, iluminando seu próprio rosto. Era Alice! Nossa, nessa hora eu fiquei muito envergonhada. Ela apenas sorria pra mim, um sorriso bonito, de felicidade, de alívio. Aí ela apontou a lanterna para mim e a pessoa que estava me abraçando. Os primeiros raios de luz iluminavam sua feição quando ele enfim terminou de me abraçar.

Seu rosto expressava algo tão puro, ele não estava chorando, apesar da imensa felicidade e alívio que sentia. Quando reconheci fiquei completamente vermelha, eu não sabia o que era aquilo que senti quando estive em seus braços. Apenas sabia que era inexplicavelmente bom.

A pessoa que me abraçou era ninguém menos que o próprio coronel Briegel.

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