Amber #56 - Sou eu quem vou te proteger.

12 de setembro de 1939
08h54

“Acabou”, disse Schultz no banco do passegeiro, “A gasolina acabou”.

Schultz e Eunmi não sabiam onde estavam. O jipe que haviam pegado em Hong Kong não duraria muito tempo. Haviam conseguido abastecer, roubando gasolina de alguns carros em algumas cidades atrás, mas o caminho era muito longo e tortuoso. E agora haviam chegado num local que tinha apenas vegetação, alguns pequenos lagos, e a última alma viva estava há quilômetros de lá.

“Acho que daqui temos que seguir a pé”, disse Eunmi, “Vamos deixar esse carro aqui. Não vale mais de nada”.

Mas Schultz estava com uma cara péssima. Olhava pra Eunmi com uma cara de profunda tristeza, mas não dizia nada.

“Ei, o que que há com você, Schultz?”, perguntou Eunmi, séria, “Desde que deixamos Hong Kong você continua com essa cara. É fome? Eu também tô morrendo de fome. Nossa última refeição foi ontem e eu—“

“Não é fome”, respondeu Schultz pulando do carro, respondendo apenas isso.

Eles começaram a andar pelos bosques desconhecidos. Schultz ia na frente.

“Tá, então o que é então? Já é uma viagem difícil, e você com essa cara só piora as coisas. Acho que está mais do que na hora de você compartilhar o que você tá sentindo!”, disse Eunmi, mas Schultz continuava na frente. Ela realmente estava preocupada com ele. Gostava de imaginar o Schultz que ela conhecia, aquela pessoa altiva, tranquila, que segue em frente sempre. Agora parecia alguém profundamente transtornado e frustrado, não era mais o mesmo homem. Vendo que Schultz não a dava atenção, sequer respondia, Eunmi que estava logo atrás foi até ele, puxando-o pela mão, “Por favor, pode me dizer, qualquer coisa. Apenas por favor diga, eu te peço. Estou preocupada com você!”.

Schultz então olhou pra ela. Foi talvez o primeiro contato profundo de olhar pra olhar que os dois haviam tido. Diversas coisas passavam pela cabeça de Eunmi como causa da tristeza do seu amigo. Mas o que ela ouviu era a última coisa que ela imaginava.

“Tudo bem. Então vou falar”, disse Schultz, tomando ar, como se estivesse prestes a se livrar de um fardo pesado que carregava: “Eu queria ter feito alguma coisa, te protegido. Mas eu não consegui, e eu me sinto muito mal por isso”.

Eunmi ficou abismada. É claro que ela ainda estava abalada com o que havia acontecido com ela em Hong Kong. Mas não imaginava que seu amigo estaria desse jeito, visivelmente pior do que ela poderia estar.

“Sabe, nessa hora eu vejo como vocês mulheres são fortes. Você tem como objetivo vingar a morte do seu noivo, e nada vai te impedir isso”, disse Schultz, fazendo uma pausa. Ele virou o rosto olhando pro lado, como se estivesse tentando acreditar naquela força imensa que a coreana tinha, “Minha nossa, se algo tão horrível tivesse acontecido comigo, puxa... Eu nem sei se teria forças pra seguir em frente. Como você consegue ser tão forte?”.

Eunmi viu que a mão de Schultz estava tremendo. Sua expressão era de alguém realmente emocionado, como se estivesse enfim tirando um peso imenso de uma culpa que tecnicamente ele não tinha. Eunmi também havia ficado profundamente tocada com a empatia dele. Ele não era um mulherengo idiota como ela imaginou. Ele tinha sentimentos.

“Bom, primeiramente, obrigada. Sim, o que fizeram comigo realmente foi horrível, mas sabe... Eu não sei como explicar isso, mas acho que todas as minhas lágrimas secaram depois da dor imensa que eu passei quando meu noivo morreu”, disse Eunmi, que embora estivesse emocionada, não conseguia chorar, “Nós ás vezes só por sermos mulheres passamos por tanta coisa ruim nessa vida. E eu sei que não vai existir justiça contra esses que abusaram de mim. Mas ainda assim eu não posso deixar isso me abalar, Schultz. As imagens são doloridas? São. Mas eu tento não focar nisso, e tentar seguir com minha vida mesmo assim. Estamos cada vez mais pertos de chegar na Coréia, eu não viajei meio mundo pra parar aqui porque um idiota abusou de mim. Isso tudo pra mim significa muito mais do que isso!”.

Schultz nessa hora olhou pra Eunmi, arregalando os olhos. Aquela determinação dela era algo louvável, e depois de muito tempo sua expressão facial enfim atenuou. E nessa hora Schultz entendeu como nunca antes como é a alma feminina.

“Nossa. Depois de ouvir isso eu só tenho mesmo como afirmar uma coisa. Que não tem essa de mulher ser o ‘sexo frágil’. Vocês sim é que são as fortes, e nós homens que somos os frágeis da história”, disse Schultz olhando pra cima, “Prometo de proteger coreana”, nessa hora ele abraçou Eunmi de lado, fazendo um cafuné, bagunçando o cabelo preto e liso dela.

“Nada disso, alemão! Sou eu quem vai te proteger”, disse Eunmi, demonstrando força.

Era difícil de imaginar que havia um espírito tão nobre numa menina que não aparentava tanta força. Eunmi era asiática, de baixa estatura, bem magra e com aparência frágil. E apesar dela não poder muitas vezes atacar de volta quem a atacasse, ela tinha força pra aguentar qualquer que fosse o golpe. E isso inspirou Schultz a ver o que era realmente ser forte.

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11h05

“Ei, Schultz. Parece que tem uma cidade logo ali!”, gritou Eunmi ao chegar no litoral.

Schultz ao longe via edifícios, que pareciam muito com a arquitetura europeia. Não eram mais as casas tradicionais da China, mas sim uma cidade desenvolvida. Havia um delta de um rio na sua frente, que anos mais tarde ele descobriu que era a baía de Hangzhou.

“Sa... Sang... Sanghai!”, disse Eunmi, lendo uma placa que havia ali perto, “Essa seta está apontando pra lá. É Xangai!”.

“Nossa, não sabia que conseguia ler caracteres chineses!”, disse Schultz.

“Eu sei alguns. O hangul, o alfabeto coreano, é totalmente diferente e único. Mas eu sei apenas ler alguns, não sei como se fala do jeito chinês”, disse Eunmi.

“Bom, acho que nadar não vai rolar, tá meio frio. Você sabe nadar?”, perguntou Schultz.

Mas Eunmi nessa hora ficou completamente pálida.

“Err... N-não”, disse Eunmi, gaguejando.

“Medo de nadar?”, perguntou Schultz, “Puxa, e eu disse que você era toda valentona e forte. Quer dizer que seu ponto fraco é nadar? Hahaha!”.

“Corta essa, alemão. Vamos achar alguma coisa pra atravessar esse rio”, disse Eunmi virando a cabeça, “Olha! Um barco!”.

“Tem uma bandeira japonesa ali. Tem certeza?”, disse Schultz ao se aproximar do barco abandonado. Eunmi foi até o motor dele e puxou a ignição, ligando-o, “Uau! Funcionando e tudo!”.

“Entra logo! Vamos pra Xangai comer alguma coisa!”, gritou Eunmi, “Tenho um primo meu que mora aí, talvez possamos pedir ajuda pra ele! Realmente tivemos muita sorte, gasolina acabou bem na hora, que sorte!”

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13h04

O primo de Eunmi, Jin-su, morava em Xangai desde a infância. Filho de uma chinesa com pai coreano (no caso, tio de Eunmi), sempre foi muito próximo da prima. Colocando roupas e um chapéu pra esconder o rosto de Schultz, foram até um restaurante local fazer a primeira refeição depois de horas.

“Minha nossa, eu nunca imaginei que macarrão poderia comer assim!”, disse Schultz baixinho, para não chamar a atenção dos outros clientes, quando provou o prato chinês, “Nossa, se isso fosse levado pra Europa tenho certeza que faria um baita dum sucesso!”.

Eunmi sorriu. Um daqueles sorrisos tímidos dela, apenas com o canto da boca. Schultz retribuiu, sorrindo com os dentes e a boca cheios de comida. Jin-su e Eunmi conversavam em coreano, baixinho também para não chamarem a atenção.

“Meu primo disse que depois que as tropas do Chiang Kai-shek foram derrotadas, o exército japonês tomou conta e a vida aqui está seguindo, apesar da reconstrução e tudo mais”, disse Eunmi, pausando pra ouvir seu primo, “Parece que até mesmo judeus estão mandando pra cá. Nossa, inacreditável”.

“O quê? Judeus em Xangai? Que baboseira!”, disse Schultz. Ele percebeu que Eunmi havia traduzido pra Jin-su o que ele havia acabado de dizer, “O que raios eles iriam fazer desse lado do mundo?”.

“Ele confirmou que sim, vários chegaram e estão se estabelecendo em guetos, fugindo dos nazistas. Parece que rolou um tratado pra envia-los pra cá”, disse Eunmi, “Realmente o seu líder não deve gostar deles”.

Schultz balançou negativamente a cabeça, embora ainda estivesse comendo e com a boca cheia de macarrão.

“Ele não é meu líder”, disse Schultz, que não gostou nem um pouco do que ela disse, “Você sabe muito bem disso, coreana”.

Schultz continuava comer, e terminou, deixando o prato limpinho. Era a primeira refeição decente que ele havia feito desde que havia chegado na China. O alemão observava a conversa entre Eunmi e seu primo, que haviam excluído totalmente ele da conversa. A conversa entre os dois em coreano continuou empolgada, até que Jin-su olhou pra Schultz e deu um sorriso, tirando um envelope do seu casaco e entregando pra ele.

Nessa hora Eunmi olhou pra Schultz e explicou:

“Temos uma missão, Schultz”, disse Eunmi, se virando pra Schultz, “Informação confidencial de espiões chineses que meu primo nos deu sobre o próximo alvo dos japoneses. Temos que correr até Changsha, a oeste daqui, entregar esse envelope para as forças nacionalistas”. 

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