Amber #73 - A lagoa de lágrimas.

Alice estava completamente desamparada. Completamente coberta pra esconder seu rosto, ela andava logo atrás de Liesl, Anastazja e o portador da síndrome de Down anônimo que haviam salvo há pouco tempo. Nas várias vezes que Liesl olhava para Alice, via com pena o estado da sua amiga. Ela não queria falar com ninguém, apenas ficava com os olhos vermelhos, cheios de lágrimas, olhando pro chão.

“Se eu tivesse agido, atirado antes, Alice não precisaria ter feito aquele disparo. Ela nunca deve ter sido obrigada a matar alguém, eu não tinha ideia que essa imagem ficaria na mente dela a ponto de deixa-la desse jeito”, sussurrou Liesl para Anastazja, numa forma de desabafo, para que Alice não ouvisse. Anastazja olhou para Alice também, e não conseguia reconhecer aquela mesma pessoa de antes. Parecia inconsolável e traumatizada, “Alice sempre sofreu muito. Mas esse tipo de sofrimento era um que o pai dela tentava ao máximo evitar que ela tivesse. A imagem do homem caindo no chão baleado por ela parece estar impregnada na mente. Matar pessoas nunca vai ser fácil, não importa se você esteja acostumada ou não”, disse Liesl, baixinho para Anastazja, que confirmou com a cabeça.

As ruas de Varsóvia eram o caos. Soldados e mais soldados poloneses revezavam entre juntar-se em comboios e fugirem de lá antes que os nazistas chegassem, ou alguns poucos achavam que ainda valeria a pena defender sua cidade até a morte. A verdade era que qualquer um temeria ao ver na sua vizinhança todo o exército nazista pronto para atacar a qualquer momento, apenas observando e cercando a cidade para toma-la, e assim conquistar todo o país. Poloneses corriam entre as ruas buscando abrigo, e uma hora Anastazja parou, ouvindo uma família que conversava dentro de uma casa quase que completamente destruída. Liesl não entendia uma palavra de polonês, mas suspeitou que havia entendido um termo, que eles pareciam repetir muito na sua conversa que elas espiavam.

“Eles falaram algo como ‘Danzig’, ou é impressão?”, perguntou Liesl para Anastazja, que entendia polonês.

“Sim. Eles disseram que um oficial lhes confirmou que Danzig caiu na mão dos nazistas. O corredor polonês para o litoral norte sucumbiu”, disse Anastazja. Nessa hora Liesl ficou espantada. Foi realmente tudo muito rápido, em pouquíssimo tempo a invasão da Polônia já havia subjugado o país inteiro e muitas das suas cidades. Aquilo era inacreditável para ela. Imaginava que a máquina de guerra nazista era extremamente eficiente, mas não a esse ponto, “A casa dos meus pais acho que é por aqui, uns três quarteirões até chegar lá. Tomara que ainda estejam por lá”, disse Anastazja, e por um momento Liesl nem prestou muita atenção, ainda não acreditando que Danzig havia caído na mão do exército nazista.

Danzig foi uma cidade que embora estivesse oficialmente em território polonês, era uma cidade com grande número de alemães vivendo nela. Danzig ficava próximo ao litoral, na ponta norte do que chamavam de “corredor polonês”: uma área litorânea da Polônia, que tinha a leste e a oeste territórios alemães, que foi obviamente reduzida ao pó com invasões de ambos os lados. Um território perdido depois do fim da Primeira Guerra Mundial, que Hitler achava seu direito reivindica-la.

Liesl, Anastazja, Alice e o portador de Down seguiram em frente entre as ruas da Polônia sitiada. Cada esquina era uma vitória, e todas andavam com máximo de cuidado para não chamarem a atenção. Olhando o novo colega deficiente, Liesl achou que seria uma boa chama-lo pelo nome no mínimo, e o perguntou em alemão, e não obteve nenhuma resposta.

“Ah, ele não deve falar alemão. Deixa eu tentar perguntar na nossa língua”, disse Anastazja, se dirigindo e perguntando o nome dele em polonês, “Jak masz na imię?”.

Ao perguntar pela primeira vez o portador de Down não respondeu. Ele tinha uma mania estranha de ficar esfregando as mãos, como se estivesse com frio. Babava muito e sempre olhava pro chão, parecia realmente não entender nada do que estivesse acontecendo ao seu redor. Anastazja tentou uma segunda vez, e ele olhou por alguns segundos para Anastazja, e continuou caminhando e esfregando as mãos, como se estivesse com frio. Nessa hora ela enfim percebeu como ele devia ter sido maltratado por todo esse tempo. Vestia apenas pedaços de tecidos, fedia como uma mendigo e estava muito sujo, inclusive era possível ver que havia mijo nas suas calças, pelo amarelado no local. Realmente era alguém que infelizmente parecia sobreviver renegado na sociedade.

Anastazja segurou as mãos dele, num gesto de acolhimento, e tentou uma terceira vez perguntar seu nome.

“Kabanos...”, disse o portador de Down. Liesl de primeira ficou empolgada ao saber que ele havia respondido e que tinha um nome, mas Anastazja ficou com uma expressão confusa, como se não tivesse entendido. Perguntou uma quarta vez e novamente o rapaz respondeu: “Kabanos!”.

“Kabanos? É um nome comum aqui?”, perguntou Liesl, sem saber o que significava. Anastazja soltou suas mãos de Kabanos e virou para Liesl, com uma expressão confusa.

“Kabanos não é um nome”, começou Anastazja, como se tentasse ganhar tempo para juntar os pensamentos para explicar, “Kabanos é um tipo de linguiça, bem típico daqui da Polônia. Talvez seja o que ele escolheu como nome. Pobre rapaz”, nessa hora as duas olhavam enquanto Kabanos andava na frente esfregando as mãos, “Já é difícil nascer com algum tipo de deficiência, mas mais difícil ainda é ter sido abandonado e não ter tido a chance de poder de tratar, ou mesmo de conseguir conviver em sociedade”.

Alice, que permanecia calada, continuava a derrubar lágrimas vendo aquela cena. Liesl sempre voltava o olhar pra ela sem dizer nada. E ela estava muda, completamente calada, com a mesma cara abatida de quem não queria ter sido forçada a matar alguém. No fundo Liesl queria poder fazer alguma coisa. E depois de refletir, enfim achou algo que poderia fazer quando chegaram na casa dos pais de Anastazja.

“Mamusia? Tatuś?”, disse Anastazja ao entrar na casa, dizendo ‘Mamãe? Papai?’ em polaco. Um casal saiu de trás de uma porta, e Anastazja foi correndo até eles, os abraçando. Os três choravam enquanto se abraçavam, nenhum deles acreditava que o outro estivesse vivo e bem no meio de todo aquele pandemônio que viviam, “Liesl, Alice, esses são meus pais! Podemos deixar o Kabanos aqui e ir atrás do tcheco que vocês estão procuran-“.

“Anastazja, desculpa te interromper, mas andei pensando nisso”, disse Liesl, interrompendo Anastazja. Ela parecia bem séria enquanto encarava Anastazja, “Acho que eu preciso ir sozinha nessa. Vocês não estão em condições de se defenderem, e a Alice está péssima, acho que ela precisa de carinho, especialmente se vier de um seio familiar como esse”.

Alice continuava inconsolável. Abraçou Liesl, mas estava soluçando tanto depois das palavras de Liesl que falava coisas inaudíveis. Kabanos sem entender nada foi até a cozinha (ou o que havia sobrado do que foi uma cozinha um dia) e achou pendurado perto do armário uma linguiça que ele rapidamente pegou e começou a comer ali mesmo, com as próprias mãos. Era a própria linguiça kabanos.

“Alice, por favor, fique aqui. Eu juro que não vou demorar! Só me prometa uma coisa, sim?”, disse Liesl, segurando Alice pelos ombros e a olhando nos olhos enquanto ela chorava, “Se o exército alemão atacar, me prometa que vocês vão correr pra longe daqui. Eu juro que voltarei o mais rápido possível. Pode me prometer isso, Alice?”.

Alice, ainda em prantos, balançou a cabeça, confirmando. Liesl nessa hora a abraçou com os olhos fechados, a apertando muito.

“Me desculpa pelo que fiz você ter sido obrigada a fazer, querida. Se eu soubesse eu nunca teria sido tão hesitante em atirar. Você não foi feita pra pegar em armas, e menos ainda em atirar alguém”, disse Liesl, se afastando do abraço e colocando a mão no peito de Alice, na direção do coração dela, enquanto olhava pros olhos dela, “Esse seu coração é tão grande que é incapaz de fazer mal alguém. E menos ainda seria capaz de matar alguém, não é mesmo? Você precisa ficar aqui e descansar. Voltarei logo com o Kovač, isso é uma promessa, sim? Não posso arriscar ir com vocês”, nessa hora Liesl também olhou para Anastazja, que olhava aquela cena com profundo pesar também. As palavras foram diretamente no coração de Anastazja, fazendo entender que não era um voto em vão, “Por favor, confiem em mim”.

E assim Liesl partiu sozinha rumo à Universidade de Varsóvia, distante apenas alguns minutos a pé de lá. Comeu alguma coisa rapidamente na casa dos Maslak e saiu pela porta decidida. Seria rápido, e não havia nada a temer, mesmo se isso significasse ir sozinha.

Alguns minutos se passaram e Anastazja abriu sua bolsa, onde lá estava o rádio que ela havia feito.

“Papai? Tem duas pilhas aí pra me emprestar, por favor?”, pediu Anastazja, querendo enfim ligar seu rádio que havia feito dias antes.

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