Amber #75 - O cerco de Varsóvia.

“Por deus! Aqueles aviões estão se aproximando!”, disse Alice enquanto olhava para o céu aterrorizada. Os aviões da Luftwaffe, a força aérea nazista, rasgavam o céu nublado sobre Varsóvia. No alto um combate imenso acontecia entre aviões com a insígnia da cruz negra alemã e outros poucos aviões com o símbolo da força aérea polonesa: um xadrez vermelho, nas cores símbolo da nação polaca.

“Temos que continuar! Vamos!! Não se afastem desse grupo!”, gritava Anastazja, mas o som foi interrompido por explosões que ocorriam a uma distância não muito grande dali. Aviões de bombardeio nazista despejam quilos de explosivos sobre a cidade, causando sons ensurdecedores que se misturavam com o agudo dos gritos da população de civis que apenas lutava para sobreviver no meio daquele inferno.

Entre as explosões era possível ver muito além do que apenas casas sendo destruídas. Conforme as bombas eram jogadas sobre Varsóvia naquela investida decisiva do exército nazista era possível vivenciar uma cena horrenda com detalhes que jamais nenhum filme conseguiria mostrar. Casas e quarteirões inteiros indo pelos ares, corpos de cidadãos poloneses sendo jogados pelo ar mutilados, com o som ensurdecedor das explosões contrastando com os gritos que todas as mulheres, homens e crianças soltavam, seja enquanto fugiam, seja quando uma bomba caía nas redondezas e as matava instantaneamente. Uma verdadeira sinfonia de morte no meio de um espetáculo de carnificina.

Era a terrível Blitzkrieg.

O que acontecia em Varsóvia naquele momento parecia pior do que havia acontecido em Guernica. Misturadas no meio de um grupo de pessoas que corriam entre os destroços do que já foi a capital do país, Alice, Anastazja e seus pais, e Kabanos tentavam correr para os subúrbios da cidade com mais vinte ou trinta poloneses, maioria sendo mulheres e crianças, tentando evitar locais que estivessem com soldados, que já estavam em combate contra remanescentes poloneses que dariam o sangue para proteger sua cidade e seu país.

“Vamos para o outro lado!! Tem pelotões na frente em batalha!!”, gritou Alice quando viu na frente pelotões de poloneses atirando contra soldados nazistas que estavam invadindo Varsóvia por ali. Anastazja mal conseguiu traduzir a orientação de Alice e novamente mais aviões despejavam bombas e mais bombas ao redor delas. As edificações pareciam não aguentar as ondas de choque lançadas pelas bombas, todas trincavam e jogavam estilhaços a uma velocidade incrível.

“AHHHH!!! Minha perna!!”, gritou Anastazja ao sentir algo a atingir. Alice voltou e a pegou pelo ombro sem hesitar.

“Calma, vamos sair daqui e vamos fazer um curativo! Parece que por esse lado a coisa tá mais calma!”, gritou Alice, acalmando Anastazja, que no meio do pânico não conseguia nem mesmo entrar em pânico propriamente. Parecia que a vontade de sobreviver aquele inferno era o que mais a incentivava a correr tanto quanto os outros, apesar do machucado na perna, “Falta pouco, Anastazja! Não temos tropas por esses lados! Não podemos parar!”.

Elas não paravam, mas tudo ao redor parecia conspirar contra. Explosões, tiros, fogo. Tudo parecia interminável. Elas já mal ouviam a si mesmas, parecia que a cidade estava sendo alvo de coisas de vindas de todas as direções: do alto vinham aviões metralhando e jogando explosivos. Dos lados vinham tiros disparados tanto de armas nazistas quanto armas polonesas. Do chão sempre algo desmoronava, ou pó e estilhaços voando nos seus rostos. E carregar Anastazja, que por mais que tentasse não conseguia caminhar era o mais difícil. Alice não tinha lá uma grande aptidão física, e muitas vezes mentalmente se perguntava da onde tirava forças para tal.

No meio de todas aquelas explosões, enquanto corriam pelos caminhos que já foram ruas de Varsóvia, Alice tropeçou em algo. Não chegou a cair, mas ao olhar para trás viu que havia tropeçado no braço de uma jovem polonesa morta no chão. Aquilo a deixou chocada. Ela havia visto apenas de longe o que havia acontecido em Guernica, mas não imaginava que poderia haver tantas vítimas civis, muito mais do que imaginava. Aquele corpo com a boca aberta e uma expressão de desespero devia traduzir bem o que a pessoa devia ter sentido e a dor inimaginável que passou antes de morrer.

“Alice, o grupo está indo sem a gente! Vamos correr!”, gritava Anastazja, tentando tirar Alice daquele momento de divagação, “Ela já está morta, Alice! Não tem nada que podemos fazer mais por ela!”, nessa hora Anastazja agarrou o rosto de Alice e olhou no fundo dos olhos dela, falando de forma que as palavras a tirasse daquele choque de ver um cadáver no chão, “Mas podemos fazer algo por todas aquelas pessoas que ainda estão vivas!”.

O grupo parecia aterrorizado. Mulheres e crianças corriam gritando, não acreditando que estavam vivenciando uma coisa como aquela. Corpos de pessoas se misturavam aos detritos, pedaços as casas e prédios vizinhos caíam aos montes, e todos tentavam proteger suas cabeças com seus braços, numa tentativa de não se ferirem, que muitas vezes até funcionava, mas em outras deixava um imenso machucado em suas cabeças e braços. Alice então começou a correr atrás do grupo, mas logo no final da rua era possível ver mais um combate entre tropas polonesas e nazistas, todos avançando contra os pelotões da Polônia na base de tiros, tanques, carros de artilharia e soldados. Era clara a imensa vantagem do exército nazista, não apenas em número, mas por ter melhores equipamentos, artilharia e tecnologia de guerra.

“Não vão por aí!! Nazistas!! Voltem para cá!”, gritava Anastazja em polonês para o povo. Curioso que pouco antes dela gritar parecia que até mesmo as explosões haviam cessado para que pudesse por meio do seu grito salvar aquelas pessoas. Com os olhos fechados, se vendo sem saída Alice pedia ajuda do seu pai mentalmente. Justo agora que enfim haviam achado uma pista de onde seu pai estava, agora que enfim parecia tão perto! Nessa hora Alice, sem esperanças, virou o olhar para um beco do seu lado direito. No final vira que um caminhão militar polonês havia acabado de estacionar e as visto, e estava correndo para seu socorro.

“Anastazja! São poloneses! Estão vindo pra cá! Olha lá!”, disse Alice, como se as preces para seu pai tivessem surtido um efeito quase que inexplicável. Anastazja ao ver os oficiais poloneses virou e começou a gritar para as pessoas no meio daquela bagunça. Os sons de tiros, canhões e aviões não paravam, mas usando todas as suas forças Anastazja sabia que aquele poderia ser a luz no fim do túnel para todos eles!

“Estamos evacuando os civis, mulheres e crianças! Vocês precisam se salvar, os nazistas estão atacando Varsóvia!”, disse um dos oficiais para Anastazja em polonês, “Por favor, nos sigam e estarão a salvo!”.

Anastazja então, mesmo ferida, encheu os pulmões e gritou com toda sua força:

“Pessoal!! Por aqui!! Temos ajuda!! Venham por aqui! Agora!!”.

E o grupo de pessoas que estava completamente disperso nas esquinas daquele distrito começaram a se juntar conforme ouviam os gritos de Anastazja. Até mesmo pessoas dentro do prédio apareciam. A voz de Anastazja parecia um chamado indicando o caminho até a liberdade. Até fora dos muros daquele verdadeiro inferno que era Varsóvia. Com muita pressa as pessoas se reuniram no caminhão, apesar do desespero e do medo, tudo ocorreu sem maiores problemas.

Em pouco tempo o caminhão já havia dado partida e estavam correndo para fora daquele local, protegidos por poucos soldados poloneses que haviam decidido se sacrificar na batalha do que desistir do seu país que cairia inevitavelmente nas mãos dos nazistas.

“Anastazja, não se esqueça de pedir para o motorista! Precisamos seguir o rio Vístula! Só assim a Liesl vai poder nos achar depois!”, pediu Alice para que Anastazja avisasse o motorista, e ele prontamente as atendeu.

“Ele disse que pode nos deixar em Plock, não fica muito longe daqui”, disse Anastazja depois de conversar com o motorista, “Ele disse que pode ser que Varsóvia não aguente mais depois de hoje, mas ele disse que ainda assim vai voltar e lutar!”, nessa hora Anastazja deu uma última olhada na cidade junto dos seus pais. Aquele lugar não era mais um lar. As chamas, os sons de tiros, explosões e todo aquele pó pareciam sobrepor as lembranças boas do tempo de paz. Varsóvia estava caindo.

“Liesl, por favor, sobreviva!”, pensou alto Alice, enquanto olhava a brutal queda de Varsóvia acontecendo na sua frente.

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16 de setembro de 1939
15h06

“Nenhuma notícia ainda?”, perguntou Alice quando viu Anastazja se aproximando. Com um olhar triste no rosto, Anastazja não conseguiu dizer nada, apenas balançou a cabeça negativamente.

“Oh, Liesl...”, disse Alice com lágrimas nos olhos e levando sua mão no rosto, “Por favor, Deus, faça com que a minha Liesl tenha conseguido escapar desse inferno”.

Anastazja a abraçou de lado, confortando Alice. Seus olhos também estavam em lágrimas.

“Ela vai conseguir. Liesl é mais forte que todas nós, ela vai chegar logo, logo. Não tenho dúvida que vai achar a carta e está vindo correndo pra cá, nos procurando”, disse Anastazja, enquanto Alice permanecia num local tanto próximo do rio que corta Varsóvia, o Vístula, quanto perto de uma estrada que ia até Plock. Com uma manta enrolada na sua cabeça pra proteger do sol, Alice permanecia lá por horas aguardando o momento em que Liesl apareceria por lá. Em um barraco improvisado junto de uma pedra estavam lá Alice, Anastazja e seus pais, e Kabanos. Todos os outros poloneses conseguiram ir até Plock se refugiar da investida nazista, “As pessoas dessa cidade disseram que bombardearam tudo no dia primeiro de setembro. Grande parte da sua população foi evacuada até Varsóvia, por conta da melhor defesa militar. A cidade aqui foi capturada no dia oito, mas as pessoas disseram que nenhum ato antissemita foi colocado em prática. Ao menos não ainda”.

“Devem estar esperando o país cair. Depois disso os judeus daqui estarão entregues à sua própria sorte. Hoje, amigos. Amanhã se Hitler ordenar, sem dúvida vão todos ser mortos sem a menor cerimônia”, disse Alice.

Anastazja ficou ainda um tempo conversando amenidades com Alice, como o que teriam para jantar, que ela e seus pais poderiam fazer para que todos comessem, mas Alice apenas permanecia sentada na estrada observando o leste, em direção de Varsóvia.

Já havia passado mais de uma hora, e Alice ali mesmo sentada acabou agarrando num sono. Ela não havia conseguido pregar os olhos depois das coisas horrendas e o terrível zumbido nos ouvidos depois de ouvir tantas explosões simultâneas. Seu corpo implorava por repouso, e o clima relativamente calmo de Plock permitiu isso.

“Ei, acorda, sua dorminhoca! Pensei que você estaria me esperando acordada. Era o mínimo que esperava de você!”.

Alice acordou num susto. Ao tirar o capuz que a cobria viu ninguém menos que Liesl acompanhada de um velho.

“Ainda bem que vocês deixaram essa cartinha. Desculpa a demora, estava pensando que vocês estavam em Danzig, e eu teria que percorrer esse rio todo!”, disse Liesl ao se aproximar de Alice, que sem dizer uma única palavra pulou na sua amiga e abraçou fortemente.

“Eu pensei que você estivesse morta! Minha nossa! Não sabe como é bom te ver viva, Liesl!”, disse Alice enquanto abraçava Liesl, que soltou alguns gemidos de dor enquanto Alice a apertava. Demorou até que a própria Alice percebesse que sua amiga na verdade estava ferida, “Minha nossa, me desculpa! Você tá ferida? Você tá bem?”.

“Sim, sofri umas pancadas de uns tijolos que caíam do teto, mas são apenas hematomas. Acho que descansar um pouco pode me ajudar a recuperar, isso sem contar aqueles machucados daquele idiota do Sundermann. Ainda tá doendo horrores! Minha nossa, nos filmes parece que não doem tanto!”, disse Liesl, que enfim havia encontrado uma chance de dizer quem era o velho calado que estava com ela, “Ah, verdade, antes que eu esqueça. Alice Briegel, quero lhe apresentar Tomaz Kovač. Um físico nuclear tcheco, vamos ter que levar ele pra um lugar seguro também junto da Anastazja”.

“Briegel?”, perguntar Kovač, ao apertar a mão de Alice.

“Ah, sim, mas eu sou a filha. Também estamos em busca do papai, e olha só, a Anastazja conseguiu decodificar um trechinho da comunicação nazista e descobrimos que o papai está no sul do país! Temos que ir pra lá!”, disse Alice, dando as boas notícias para Liesl, que sorriu ao saber disso.

Nessa hora Anastazja veio correndo da cabana com uma cara apreensiva. Ela parecia carregar más notícias. Apesar de Liesl e Kovač estarem na frente de Alice, Anastazja estava tão eufórica que sequer reparou neles, indo direto até Alice, sem nem perceber que Liesl havia aparecido.

“Alice, minha nossa, más notícias que acabei de ouvir!”, disse Anastazja para Alice, que ergueu as sobrancelhas apontando para Liesl. Quando Anastazja enfim se deu conta que Liesl estava lá deu um pulo e a abraçou, “Liesl, não acredito!! Você tá viva! Puxa vida!”, e Liesl tentando segurar Anastazja, apesar das dores e dos gemidos involuntários, foi salva por Alice que a alertou de que Liesl estava bem machucada e era melhor não exagerar nos abraços.

“Anastazja, calma, chega, ela tá machucada. Menos, menos! Ela tem que repousar!”, disse Alice, pedindo para Anastazja soltar Liesl calmamente. Depois de pedir desculpas para Liesl, Anastazja continuou:

“Ah, nossa, desculpa, foi tanta emoção! Esse deve ser o senhor Kovač, certo?”, disse Anastazja, deduzindo corretamente, “Bom, mas um senhor polonês disse que ouviu de um oficial do exército que a guerra entre a União Soviética e o Japão terminou ontem, com vitória dos comunistas! Está correndo um boato que tropas soviéticas estão se reunindo no oeste da Rússia!”.

“Minha nossa, eu ouvi isso também!”, disse Liesl, confirmando, “Então o pior dos cenários vai acontecer. Depois que os nazistas acabaram com a Polônia, a União Soviética vai tomar o pouco que restou do outro lado do país!”.

“Exatamente!”, disse uma voz masculina desconhecida atrás de Liesl, “Mas é uma pena que depois que o Führer virou amiguinho do Stalin não vai dar pra dar uns tiros em uns comunistas! Vou ter que contentar com vocês mesmas!”.

Quando todas viraram viram que a voz vinha de um oficial nazista que elas até aquele momento desconheciam. Era ninguém menos que Oskar Dirlewanger junto de seu pelotão, o mesmo que havia feito uma armadilha para Briegel em Guernica, anos atrás.

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