Amber #102 - O rançoso e a petulante (2)

Chao corria a toda velocidade para cima de Tsai, que já estava em posição de defesa, pronta para agir assim que o golpe fosse executado. Aquilo parecia cena de filme de artes marciais, os dois estavam querendo decidir aquilo na base da força, golpes e habilidade de luta. O único porém era que aquela não era uma luta apenas pela competição. Era algo que ia muito além. Era óbvio que o objetivo da Chao era exterminar Tsai, e a derrotar numa luta era muito pouco para alguém que era movido por tanto ódio. Tsai, por outro lado, talvez fosse a pessoa ali que menos queria algum tipo de exibicionismo ou algo do gênero, preferindo até um embate limpo, sem mortos ou feridos.

“Minha nossa, ele parece um touro!”, disse Schultz, assustado, “Droga! Ele vai acertar ela!”.

Mas apesar de parecer mais frágil, Tsai tinha uma força tremenda. Ela conseguiu segurar o punho de Chao, e então os dois começaram a trocar socos e chutes, ambos se defendendo e atacando, uma luta que parecia sincronizada, algo realmente bonito de se ver, como uma espécie de balé.

“Correu tanto, correu como um louco, mas no final ela precisou de apenas uma mão pra parar essa anta”, disse Huang, descendo do lugar de onde estava, em cima do vagão descarrilhado, de olho na luta que se desenrolava na sua frente, “Alguém tem dúvidas ainda de quem vai ganhar essa briga? Teria sido mais emocionante ter ido ver uma briga num boteco, e apostar no menos bêbado”.

Schultz e Chou ficaram encarando Huang, que nem sequer virou pra eles, mantendo seus olhos na luta que acontecia ali. Ele falava como se estivesse entediado com aquilo tudo, e até com um ar esnobe na sua fala, apesar de não tirar os olhos dos dois. Sua feição mostrava um interesse imenso no embate, enquanto sua fala mostrava estar sentindo um tédio absurdo vendo aquilo. Era paradoxal.

“Rápida e precisa como na época de Whampoa, Tsai!”, disse Chao, e bem logo depois de falar, levou um golpe no rosto de Tsai, ainda assim ele prosseguiu: “Mas eu disse, agora vai ser diferente, sua vagabunda!”.

“Vagabunda?”, disse Chou, ao ouvir o xingamento, vendo Chao desferindo uma sequência de chutes, que Tsai defendia sem problemas, “Um homem vagabundo é um desocupado, que não quer nada com nada. Mas uma mulher vagabunda é sinônimo de prostituta”, disse Chou, enquanto observa Tsai, que e depois de defender sem problemas dos chutes de Chao, Tsai desferiu um ataque implacável, desestabilizando completamente Chao, antes de Chou prosseguir na sua fala: “Ofensas contra mulheres são tão sem criatividade! Só sabem atacar sexualidade, que coisa original, não?”, ironizou.

Mas Tsai, apesar da provocação, tinha sua expressão calma, como se aquilo fosse fácil. Ela não esboçava prepotência, ou raiva. Parecia até que nem tinha ouvido. Aquilo tudo parecia natural, como se ela soubesse que vencer já era algo que já estava definido. Mas Schultz, que não tinha conhecimento de artes marciais, olhava pra todos aqueles movimentos rápidos sem entender muita coisa. Ele não tinha a mínima noção do que acontecia ali, e já estava ficando apreensivo.

“Eu não acredito. Isso só pode ser brincadeira!”, disse Schultz, temendo por Tsai, “A Tsai tá lutando na nossa frente contra um homem, e olha só como a coisa tá feia! Os dois estão trocando socos e pontapés igual dois loucos!”, disse Schultz, tentando raciocinar no meio daquela loucura que era tão nova para ele, “Não acredito é que vocês não vão fazer nada vendo o que está acontecendo com a Tsai!!”.

“Calma, Schultz! Da onde você tirou que a coisa tá ruim?”, perguntou Eunmi, se aproximando do alemão.

“Eunmi, olha só a quantidade de golpes que os dois tão dando um no outro! Só eu que estou vendo isso aqui?”, perguntou Schultz, sem acreditar no que Eunmi perguntava.

Eunmi ficou por um tempo com o olhar pousado em Schultz, pensando. Olhou para a luta, e depois voltou para o olhar de incredulidade de Schultz. Então ela entendeu o que se passava na cabeça do seu amigo.

“Ah, acho que você talvez não esteja entendendo muito do que se passa, não é mesmo?”, disse Eunmi, num tom mais paciente. Ela se aproximou de Schultz e virou ele em direção de Chao e Tsai, que continuavam a se degladiar, “Você não deve ter o olhar treinado para artes marciais, mas preste mais atenção nos golpes de Chao. Eles acertam a Gongzhu, mas repara bem aonde eles acertam”.

E então Schultz ficou apenas de olho em Chao. Um golpe acertava o braço, o outro ela defendia erguendo a perna, o terceiro ela desviava. E assim os golpes iam acertando pontos de defesa de Tsai, isso quando acertavam, já que Chao errava vários golpes, dado à sua euforia. Os golpes eram baseados em artes marciais chinesas, eram bem rápidos e bonitos de ver, não era uma briga de bar na Europa onde davam apenas um ou dois socos e uma das pessoas caíam.

“I-incrível”, disse Schultz quando reparou, “Ela consegue se defender de todos!”.

“Isso. Agora presta atenção no Chao. Eu não entendendo é como ele ainda está de pé, isso sim!”, disse Eunmi, e nesse momento Schultz começou a reparar em Chao.

O chinês raramente conseguia se defender. Schultz via um golpe atrás do outro, acertando seu gosto, seu abdome, sua cintura. O nariz do chinês já estava sangrando, e volta e meia ele cuspia sangue no chão, especialmente depois de um golpe que Tsai desferia. Era mais do que óbvio que aquela luta era desigual. E era questão de tempo para Chao sucumbir para Tsai.

A Gongzhu não tinha problema em seu adversário ser homem. Poderia ser quem fosse. Schultz então se lembrou dos momentos em que ela o abraçou. Era incrível a força que ela tinha, era possível sentir isso quando seu corpo se encostava no dela. Por fora, ela era apenas mais uma chinesa magrela. Mas quando ela encostou nele, era como se o corpo inteiro fosse compacto, rígido, bem torneado, sem nenhum centímetro de fibra muscular excedente. Em um linguajar mais popular, Tsai era toda “durinha”. Ela era mulher, mas era uma mulher que havia escolhido ser forte. Porém o poder de Tsai não era uma força que vinha de músculos, aptidão física ou talento para artes marciais apenas. A força incrível de Tsai vinha de dentro, vinha de dentro da sua alma. E essa força de dentro, aliada com o corpo que, embora parecesse superficialmente “fraca” devido a ausência de volume muscular, escondia energia e eficiência em combate que ia muito além da simples aparência.

Tsai então acertou um golpe bem no queixo de Chao, e ele foi jogado para trás, caindo no chão gemendo.

Schultz estava sem acreditar, enquanto os membros do pelotão do Pássaro Vermelho estavam com um sorriso de orelha a orelha, como se a confiança de Tsai nunca houvesse sido abalada antes.

“Maldita! Sua maldita!! Puta desgraçada!”, disse Chao, cuspindo sangue, se rastejando no chão para longe de Tsai, enquanto ela se aproximava a passos calmos, “Isso não pode ser! Isso tudo é uma mentira!! Como isso pode ser possível? Uma mulher me derrotar, de novo?”.

Schultz estava embasbacado. Ele não conseguia dizer nada. Aquilo havia sido muito além do que ele esperava que fosse. Não conseguia tirar os olhos de Tsai, não conseguia deixar de admirar ela ainda mais e mais. Fitava ela com um sentimento incrível de adoração, e quase não notou uma moita, do lado oposto de onde ela estava, estava balançando.

Quando pousou seus olhos na moita, atraído pelo movimento, viu o que pareceu ser um vulto, se escondendo.

“Hã? Ei, Li, você viu aquilo ali atrás da Tsai?”, perguntou Schultz, assustado.

“Atrás dela? Aonde?”, perguntou Li.

“Ali, naquele mato! Parecia ser alguém”.

“Não vi nada Schultz. Talvez seja um macaquinho, ou algo do gênero”, respondeu Li.

O alemão se acalmou e voltou seu olhar para o embate. Parecia que aquele momento seria enfim decretada a derrota de Chao.

“Eu disse que não queria essa luta, Chao, mas infelizmente você veio disposto a não sair daqui enquanto sangue não fosse derramado. Espero sinceramente que você sinta esse gosto ferroso do sangue na sua boca e memorize bem essa dor imprimida em seu corpo”, disse Tsai, calmamente, como se tentasse ensinar uma dura lição de uma forma menos dolorida, “E na próxima vez recobre essas lembranças feitas hoje, para evitar ter que senti-las novamente. É só isso que eu peço, pelo seu bem”.

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