Livros 2024 #20 - A trilogia de Copenhague (1967-1971)


Um bom escritor pega uma vida comum e a transforma em uma obra prima. Mas quando um bom escritor resolve falar de sua vida, e essa vida é cheia de incríveis histórias, o nível sobe absurdamente. É o melhor dos dois mundos que Tove Ditlevsen entrega!

"A trilogia de Copenhague", de Tove Ditlevsen é uma autobiografia que havia sido lançada em três volumes na dinamarca: "Infância", "Juventude", e "Dependência".

Acredito que a primeira coisa que se nota em Tove é em como o facto dela ser também uma poetisa deixa a prosa dela com uma característica bem marcante: ela sabe manter um ritmo constante nos acontecimentos, ao mesmo tempo que consegue nos proporcionar passagens bem profundas em meio a isso tudo. Ela também sempre sabe encaixar um trecho de algum poema no meio da sua história, e sempre são poesias cheias de melancolia, musicalidade, e igualmente profundos.

Tove nasceu em um mundo entre guerras, e quando a Segunda Guerra estourou ela já era adulta — e testemunha dos acontecimentos. Embora os factos históricos não sejam o foco do livro, ela comenta várias passagens do que se acontecia, o que enriquece muito com seu ponto de vista de alguém que viveu aquilo tudo.

Apesar de ser uma autora que alcançou reconhecimento de sua obra ainda em vida, Tove era uma mulher bastante insegura. Seja com sua aparência, ou com seu talento para escrita, isso é muito explorado ali por ela, principalmente nos dois primeiros livros. Talentosa desde tenra idade, mesmo com um instável apoio de seus pais, ela segue escrevendo — seu sonho é lançar um livro com poesias.

A melancolia é muitas vezes algo que me incomodou no livro. Não sei se sou apenas eu, mas uma pessoa que fica só reclamando me enche muito o saco, e em muitas partes é exatamente isso que a Tove faz. No entanto a gente compreende que ali no meio dela, ela apenas queria ter o direito de ter uma vida comum, poder correr atrás de sua profissão, de seus amores na vida, ali em um mundo turbulento. Para uma autora que publicou 29 livros, ela mal cita os desafios pessoais para escrita, apenas diz que parava para escrever para mandar para a editora nos momentos de sua vida que ela já havia alcançado algum reconhecimento.

Os dois primeiros livros são bem medianos: é a vida comum de uma criança e uma jovem adulta, com seus problemas com seus pais, a busca por emprego, as amizades na vida adulta, e os namorados que ela foi conhecendo. O grande ápice da trilogia é no terceiro livro, onde Tove entra em um assunto que eu, até então, nunca tinha lido um livro que abordasse desse tema, especialmente vindo de uma mulher.

E é no terceiro livro, "Dependência" (em dinamarquês, "Gift", que significa tanto "casamento", quanto "veneno"), que está o grande ouro dessa obra. Ouvi falar que no Brasil chegou até a ser lançado no passado, mas apenas os dois primeiros livros. Não conseguiram publicar justamente o terceiro volume da trilogia nesse compilado, que é sem dúvida o melhor de todos.

SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!

Eu até então nunca tinha lido um livro que mostrasse a dependência química pelo ponto de vista de uma mulher. Por conta de uma gravidez não desejada, em um tempo em que o aborto da Dinamarca ainda não era legalizado, ela se submete a um procedimento desses com um homem chamado Carl, que ao lhe aplicar uma anestesia de petidina, faz ela entrar numa viagem muito doida, que a faz querer aquela substância mais e mais.

A dependência dela por petidina rapidamente escalona, e esse Carl — que mais tarde se tornaria marido dela — ainda a estuprava constantemente enquanto Tove estava dopada. Ela só queria mais e mais petidina para fugir da vida e de tudo.

E então Tove na época tem uma ideia: se ela dizer que está tendo dores intensas no ouvido, e passar por uma operação, eventualmente ela vai ter direito a toda petidina que ela quiser. Acontece que ela não tinha nada no ouvido, não sentia nenhuma dor, e mesmo depois de vários médicos atestarem que não havia nada ali, um médico antiético opera seu ouvido, a deixando surda de um deles, e enquanto ela está internada lá lhe é negada a petidina para dor — oferecendo apenas aspirinas. Isso deixa Tove doida.

Eventualmente quando ela volta para casa, Carl continua a administrar o opioide para ela. E então o tempo para Tove se torna uma grande incognita: ela não sabe quanto tempo passou, onde ela está, tudo está confuso. Toda essa situação começa a chamar a atenção das pessoas de fora, e Tove é internada na reabilitação e o marido é também denunciado e internado num hospital psiquiátrico. Começa então uma dura luta para se manter sóbria, muito sofrida, e Tove mesmo conhecendo um novo amor (e dessa vez uma pessoa que aparentemente presta) acaba indo e voltando para o vício, dessa vez também por outra substância, o Butalgin.

O livro é concluído assim, com um filete de esperança de que as coisas vão melhorar, mas pelo que pesquisei por cima nem mesmo esse último marido foi alguém que a protegeu tanto assim quanto aparece nessa parte final.

Esse último volume foi lançado em 1971. Apenas cinco anos depois Tove acabou cometendo suicídio, por uma overdose de remédios para dormir. No entanto ela deixou uma obra gigantesca, quase trinta livros lançados, e o mundo perdeu um grande talento feminino da literatura.

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