Livros 2024 #30 - Dias de abandono (2002)
Se Elena Ferrante um dia errou, desconheço. Quando a vida de uma mulher está num ciclo de dependência tão grande de um homem, ela perde até a sua personalidade. E quando ela perde esse homem, perde de alguma forma a si mesma. E o que esse livro mostra é como isso é um ciclo destrutivo, onde ela se enche de paranoias, inseguranças, tudo motivo por uma irresponsabilidade de um homem que nunca se preocupou em lhe dar algum tipo de amparo caso ela encarasse uma situação assim.
O livro começa na exata parte em que o marido resolve deixar a protagonista. Essa mudança brusca em sua vida traz inicialmente uma grande confusão, de não saber o que fazer daquele momento em diante. Quando ela tenta buscar nas memórias alguma pista, lembra-se de Gina, uma viúva que havia contratado seu marido Mario para dar aulas de reforço para sua filha, Carla. Talvez pela lógica, assim como a protagonista, teríamos algum tipo de desconfiança sobre a viúva. Mas não, Mario estava tendo um caso a filha dela, Carla — muito mais jovem, atraente, e inocente.
Descobri que ninguém sabia nada sobre o meu marido, parecia que não o viam há dias. Então anunciei a todos, com rancor, que ele havia me largado por outra mulher. Eu pensava que eles ficariam atônitos, mas tive a impressão de que não os surpreendi de modo algum.
Em todas as minhas resenhas anteriores de livros da Elena Ferrante eu acho que já teci todo tipo de elogios à sua obra magnífica. Nesse ela consegue se reinventar ainda mais. Não é tão rico naqueles trechos extremamente poéticos e profundos, daqueles que a gente lê e marca nosso coração — mas não quer dizer que não os tenha também. O que eu senti nesse livro é que ele é bem mais dotado de um realismo muito bem dosado, que sabe navegar em diversas subjetividades, uma coisa que só quem lê a Ferrante entende.
Existe uma evolução muito louca da protagonista — Olga, como descobrimos seu nome depois da página 42 — depois que um quinto do livro havia passado. Essa demora em revelar o próprio nome é uma das muitas sacadas geniais da autora, pois denota exatamente o que eu disse no começo: sem a perspectiva de que seu casamento de estenda, não há razão para ela nem mesmo se apresentar, pois sua vida e sua individualidade tinha se esvaído desde o momento que Carla apareceu.
"Falar como? Enchi o saco de nhenhenhém. Você me feriu, você está me destruindo, e eu preciso falar como uma boa esposa bem educada? Vai tomar no cu! Quais são as palavras que eu deveria usar para aquilo que você me fez, para aquilo que você está fazendo comigo? Que palavras eu tenho que usar para falar do que você anda fazendo com ela? Vamos conversar! Você lambe a boceta dela? Come o cuzinho dela? Você faz com ela todas as coisas que nunca fez comigo? Fala! Porque vejo tudo, vocês dois! Eu vejo com estes olhos tudo o que vocês fazem juntos, vejo-o cem, mil vezes, vejo de dia e de noite, com os olhos abertos ou fechados! Mas, para não perturbar o senhor, para não perturbar os seus filhos, preciso usar um linguajar limpo, preciso ser fina, preciso ser elegante! Vai embora daqui! Vai, filho da puta!"
Como é um livro todo em primeira pessoa, Ferrante consegue como ninguém nos fazer sentir tudo o que Olga sente em sua coração. Aquela mulher que tinha uma vida estável, começa a perder o interesse em fazer coisas em prol de si mesma. Deixa de se maquiar, de se vestir bem, e vai tornando-se obscena. Ela percebe que ninguém no mundo reprime Mario (aquele banho de água gelada que só o machismo da sociedade nos é capaz de mostrar) e por não ter esse apoio que ela esperava ter, vai entrando em um parafuso até o fundo do poço.
Mario me impressiona pela sua frieza. Não apenas na forma como terminou e contou tudo, mas na total capacidade de apenas virar as costas até mesmo para seus próprios filhos, Gianni e Ilaria. Até o velho cachorro Otto — que tem uma importância significativa na trama — ele deixa para viver o romance com a Carla.
Somos ocasiões. Consumimos e perdemos a vida porque um qualquer, em tempos longínquos, por vontade de descarregar o pau dentro de nós, foi gentil, nos escolheu entre as mulheres.
Outro personagem que vai ganhando importância é seu vizinho de prédio, o Carrano. Um músico, que de início parece uma pessoa bem grotesca, mas por conta dele ter perdido sua carteira de motorista, encontrada por Olga, até uma coisa simples como devolver ao dono se torna uma coisa que ela vai sempre postergando, por estar imersa em toda aquela situação de dificuldade.
Os livros da Elena Ferrante são verdadeiras aulas de psicologia em forma de romance. Eu acho doido como ela consegue até mesmo na narrativa mudar a personalidade da protagonista: existem momentos em que ela é totalmente movida pela raiva, outros em que ela começa a perseguir a Carla e é levada por paranoias, depois sentir aquela dor e toda a incapacidade que sentia, passarmos por trechos de uma incalculável tristeza, e perceber toda a evolução que ela vai dando, moldando a personalidade enquanto os fatos vão sendo contados pela protagonista.
Certamente, tive de passar rapidamente a borracha por cima da sua fisionomia macia dos vinte anos, antes de recuperar o rosto ainda não maduro, cortante e ainda infantil de Carla, a adolescente que estivera no centro da nossa crise conjugal, anos atrás. Certamente, só quando a reconheci fui surpreendida pelos brincos, os brincos da avó de Mario, os meus brincos.
Outra característica da Ferrante é o uso de algum objeto que é peça-chave na trama. É assim com o livro da Lenu e Lila, "A fada azul", na série napolitana, até a pulseira da tia Vittoria em "A vida mentirosa dos adultos", e aqui o objeto são as joias da avó do Mario, que para Olga era um símbolo da estabilidade do casamento, uma presente que ela havia recebido de Mario que selava aquela relação de certa forma, mas que logo no começo é retirada dela e Mario as dá para Carla, partindo o coração de Olga de maneira irreparável.
Ferrante é uma das poucas autoras que fazem aquelas partes tristes não serem vazias e arrastadas. Isso não é apenas pela capacidade dela de saber dosar a tristeza, mas de dotá-la de tanta profundidade que a gente passa a admirar aquela escrita, mesmo sendo algo tão pesado. Olga tem que se adequar à nova vida, sem marido, sem amor, sem o apoio da figura paterna para os filhos, mas isso não é nem um pouco fácil. O poço que ela se afunda é um buraco sem fundo, mas infelizmente enquanto ela está caindo a vida está acontecendo.
E nem tanto para convencê-la, mas para convencer a mim mesma, dei-me um tapa com força. Depois sorri, não somente porque aquele tapa me pareceu súbita e objetivamente cômico, mas para mostrar que minha demonstração era alegre, sem ameaças. Foi inútil. O que aconteceu foi que Giani cobriu rapidamente o rosto com o lençol e Ilaria me olhou estupefata, com os olhos cheios de lágrimas. "Você se machucou, mamãe", disse tristonha, "está saindo sangue do nariz."
O mundo não para ver Olga cair. E nessa solidão infinita em que ela é jogada, tudo o que podemos fazer é ver como o mundo de uma pessoa pode subitamente cair sem a menor cerimônia.
SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!
Apesar de toda a tristeza, é um livro com um certo final feliz. Carrano, aquele cara estranho, esquisito, acaba se tornando um amante — uma forma meio desesperada que Olga tenta de achar se superar Mario, que este também além de tudo não aceita que a esposa que ele abandonou tenha um caso com outro homem. É muito interessante ver como aquele homem esquisito, que tem uma primeira transa horrível com ela, vai aos poucos se tornando uma peça-chave na vida de Olga. Até sua aparência vai melhorando conforme o livro vai avançando.
A noite é longa, não passa, por isso meu marido me deixou, queria que as noites corressem, antes de envelhecer, de morrer. Preciso, para escrever bem, para ir até o âmago de cada pergunta, de um lugar menor, mais seguro. Apagar o supérfluo. Restringir o campo. Escrever de verdade é falar do fundo do ventre materno. Virar a página, Olga, começar de novo.
Olga vai se afundando tanto que sobra até para o cachorro. Formigas começam a dominar seu apartamento, e ela, numa medida exagerada e sem cautela, entope o apartamento com inseticida e o cachorro, que já tinha uma idade avançada, acaba se intoxicando. Seu estado vai piorando cada vez mais, ela chega a trancá-lo no escritório de Mario, e ela sem ter a mínima capacidade emocional de cuidar de alguém — já que ela era a que estava mais fragilizada naquela casa — acaba abandonando o cãozinho lá.
A cena da morte de Otto é uma virada de chave para Olga. Além de ser um dos pontos mais tristes da trama, é onde ela se ergue para, enfim, superar o abandono de Mario:
Como é insuportável o corpo de um ser vivo que combate contra a morte, ora parece vencer, ora parece perder. Ficamos assim não sei por quanto tempo. A respiração do cão às vezes se acelerava como quando estava bem e se debatia com vontade de brincar, de correr lá fora, de ser compreendido e ter carinho, às vezes era imperceptível. Mesmo o corpo alternava momentos de tremedeira e espasmos com momentos de imobilidade absoluta. (...) Como pude me abandonar daquele jeito, desintegrar assim meus sentidos, o sentido de estar viva? Acariciei as orelhas de Otto e ele abriu os olhos descoloridos e me olhou. Vi seu olhar de cão amigo que, em vez de me acusar, pedia desculpas por sua condição. (...) Logo depois morreu no meu colo e comecei a chorar um choro irrefreável, incomparável com qualquer outro choro daqueles dias, daqueles meses.
Carrano ajuda até a enterrar o cachorro, para que as crianças não vejam. Existe um veterinário que também aparece como um possível novo amor para Olga, mas no final é com Carrano que ela termina. Mario enfim volta para cumprir suas responsabilidades de pai, Carla consegue uma certa amizade das crianças, e o livro termina assim.
E repito: se um dia Elena Ferrante errou, desconheço. Só acerta. Sempre.
Quando meus olhos se secaram e também os últimos soluços morreram em meu peito, percebi que Mario havia se tornado novamente o bom homem que talvez sempre fora, que eu já não o amava mais. (...) Vi os anéis que tinha deixado, ao acordar, na borda da pia e coloquei no dedo aquele com a água-marinha, enquanto, sem hesitar, deixei cair na privada a aliança.
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