Amber #1 - Alice, o coelho, e o chapeleiro.

15 de abril de 1937
18h02

Briegel abriu a porta da sua casa, a luz da sala estava fraca, e era possível ver que havia alguém o esperando ali na sua casa. Schultz entrou logo dele e foi direto na sala, reconhecendo quem estava lá e foi cumprimentar, enquanto Briegel ia pra cozinha levando o pacote de amanteigados vienenses que Schultz havia aberto, horas antes.

“E aí, pretinha!”, anunciou Schultz na sala.

A pessoa que estava deitada no sofá se ergueu. Se aproximou da luz e Schultz viu sua pele negra - tão negra que até brilhava iluminada sob a luz cálida dos abajures da imensa sala da casa de campo de Briegel. Tinha uma aparência muito bela, um cabelo em belos caracóis pretos armados, bagunçados por estar cochilando no sofá, mas que realçavam ainda mais sua beleza negra única, olhos grandes, negros e penetrantes, lábios carnudos e um nariz compacto. Seu sorriso era branco e iluminado, e talvez estaria ainda mais deslumbrante com sua beleza natural africana se não estivesse enrolada até a cabeça num cobertor e com o nariz escorrendo catarro.

“Schultz, seu idiota! Quantas vezes eu tenho que te dizer pra não ficar chamando minha filha dessas coisas!”, disse Briegel, atrás de Schultz, jogando o sapato dele contra seu amigo com bastante força na cabeça.

“Não tem problema, papai!”, disse a filha de Briegel, “Sei que é brincadeira do tio Schultz!”, ela deu risada. Schultz, ainda com a mão na cabeça, tentando diminuir a dor de ter levado uma sapatada na cabeça sentou numa poltrona e observou enquanto Briegel se aproximava de sua filha e dava-lhe um abraço com ternura e um beijo em sua testa, “Prefiro que ele me chame de ‘pretinha’ do que ser o poço de DSTs que é o tio Schultz, hahaha!”.

Até Briegel deu risada.

“Alice, sua engraçadinha! Saiba que estou tomando jeito com a mulherada. Eu sou mestre no melhor método contraceptivo que existe, sabia?”, brincou Schultz.

“Ah é? Bom, se você achar uma utilidade pras camisinhas que não seja proteger da sujeira a boca dos barris dos rifles como os soldados estão fazendo ultimamente…”, brincou Alice Briegel.

“Nada! Eu tiro o pau e gozo fora. Infalível!”, se gabou Schultz.

“Vamos parar de ficar falando essas baixarias na frente da minha filha, chega, vai, tá na hora de ir embora Schultz!”, disse Briegel, espantando a visita.

“Ei, calma aí coronel!”, disse Schultz, zombando, “A Alice já é bem grandinha, para de tratar ela como criança! Dia 22 agora foi aniversário de trinta anos dela. E ela já tá noiva já. Ou você acha que ela ainda não fez aquil…”

“Eu já disse pra parar! Que saco, cara!”, disse Briegel, saindo da sala.

O silêncio tomou conta do lugar por alguns segundos. Depois disso Schultz e Alice caíram na risada.

“E como foi a missão, tio? Deu tudo certo?”, perguntou Alice.

“Sim! Deu sim. Conseguimos o nome do traficante de armas que o Himmler está atrás. Vamos entregar o relatório bonitinho pra aquele vesgo logo logo. E esse seu resfriado? Teve febre hoje também?”, perguntou Schultz.

“Não, hoje não. Acho que pelo visto está melhorando!”, disse Alice. Nessa hora ela olhou pro rosto de Schultz e viu ele abatido de certa forma. Alice tinha um coração muito puro e sincero, e ela mais do que ninguém sabia exatamente o que se passava com seu pai e seu tio, “Tio, tá tudo bem com o senhor?”.

“Ah, sabe como é, né. Eu sei que é meu trabalho e do seu pai, que somos agentes da SD, e trabalhamos pro Führer e tudo mais, mas…”, Schultz suspirou, como se estivesse de saco cheio, “Odeio ver como Hitler anda enganando o povo com esse papinho de raça superior, conquista e todo esse blábláblá. Eu queria muito poder derrubar esse cara, ou pelo menos dar um soco bem dado naquele bigodinho maldito. A Alemanha tá caminhando pra mais uma guerra, e estamos todos fudidos nesse barco…”.

“Aqui está o chá, meu amigo. Limão?”, apareceu Briegel com um bule.

“Claro, põe aí”, disse Schultz. Briegel já sabia o jeito que Alice gostava, e preparou pra ela sem ela questionar, adicionando inclusive um pouco de mel pra ajudar na gripe da filha.

“Papai, estávamos falando de…”, disse Alice, interrompida por Briegel:

“Sim, eu sei, eu ouvi tudo. E sim, nós, agentes da inteligência temos acesso a verdades que talvez o público nunca saiba. E de fato, sabemos o que Hitler e seus capangas estão tramando, e toda essa infeliz lavagem cerebral que estão fazendo ao povo nazista. E óbvio que estou tão revoltado quanto o seu tio”, disse Briegel.

“É isso aí, coronel! Eu tô muito puto com o vesgo do Himmler. Eu quero muito dar uma porrada bem naquele nariz dele quando encontrar com ele!”, bradou Schultz.

“Bom, eu disse que assim como você eu não apoio o regime nazista, e, bem, sempre a gente pode dar uma enrolada pra não ficar fazendo o trabalho sujo deles. E temos feito bem isso durante esses anos todos desde que Hitler chegou ao poder. Tudo isso graças aos nossos nomes e reputações impecáveis, mas…”, disse Briegel, tomando um ar, e bebendo um gole do chá, “Infelizmente dar um soco no nariz do Himmler não vai derrubar esse regime. Se quisermos abrir os olhos do povo alemão, temos que ruir antes esse governo. E mostrar pro mundo que existem muitos alemães que lutam pela democracia e liberdade no nosso país”.

“É isso aí, falou tudo”, disse Schultz, dando uma golada do chá, “Mas é sério que eu não posso mesmo nem dar um soquinho só naquele nariz do Himmler?”.

Alice e Schultz deram risada. Briegel apenas balançou a cabeça, mas por dentro talvez estivesse dando altas gargalhadas também. Os três eram uma família. Briegel e Schultz eram amigos inseparáveis, e Alice cresceu sob a tutela dos dois, e tinha seu pai e tio adotivos como as pessoas que mais a haviam inspirado.

Roland Briegel sempre fora muito responsável e completamente focado no trabalho. Mesmo sendo um homem, e com mais de quarenta anos nas costas, não tinha esposa. Simplesmente não tinha tempo pra namorar, e achava que nunca conseguiria dar atenção a uma esposa devido à sua agenda sempre lotada. Já Schultz, havia acabado de entrar nos trinta e poucos. Porém o que Briegel tinha de responsável, Schultz tinha de irresponsável. Sempre agia do jeito que queria, toda semana estava com uma mulher nova, bebia, jogava, e não era nem pouco comportado como o melhor amigo.

Mas apesar das diferenças, os dois eram amigos inseparáveis. Eram duas almas tão distintas, mas talvez exatamente por se completarem era isso que os tornava tão próximos. E Alice era o elo entre os dois. Cada um cuidava dela de um jeito diferente, e ela se sentia bem com os dois. Até na aparência eram diferentes: Briegel tinha os olhos azuis, pele clara, cabelo loiro escuro, corpo atlético, disciplinado na dieta e exercícios. Já Schultz tinha olhos verdes, pele mais bronzeada e cabelos bem claros, loiros, jogados pra trás com um topete. E uma pequena barriguinha, mas nada muito chamativo.

Ficaram até tarde daquela noite conversando. A hora voou de tal maneira que Schultz foi obrigado a pedir emprestado o sofá pra dormir pela milésima vez. Era da casa já. Um membro da família.

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