Livros 2023 #15 - Água fresca para as flores (2022)

Eu queria poder chorar de tristeza. Mas as lágrimas dificilmente caem, por mais triste que a coisa seja. Enquanto ainda não desbloqueio essa habilidade, choro em momentos de muita felicidade — especialmente se é uma felicidade que nasce depois de muito sofrimento. Escrevo esse texto dia 10 de outubro de 2023, acabei de terminar de ler "Água fresca para flores" de Valérie Perrin, e sinto que preciso escrever e botar pra fora tudo, pois eu amei essa obra.

Essa obra da escritora francesa é uma das melhores coisas que eu li esse ano. O livro conta a história de Violette, zeladora de um cemitério no interior da França, que enquanto vive e conta as histórias do dia-a-dia dentro de um cemitério, fica intrigada com a visita do delegado Julien Seul, que está cumprindo a última vontade de sua falecida mãe: que suas cinzas descansem no jazigo de um homem que ele nunca ouviu falar.

Detentora de uma narrativa envolvente, Valérie Perrin parece fazer isso que franceses parecem ter no sangue: contar na voz de primeira pessoa sem ser prolixo, redundante, ou entediante. Eu vejo isso em outros autores também, desde Annie Ernaux, passando por Romain Gary, e Olivier Bourdeaut. 

Como se isso não fosse um mérito por si só, ela faz outra coisa que eu adoro: contar uma história de maneira não-linear, onde todos largam de uma posição distinta e vão complementando um ao outro no decorrer da história. Eu sei que dá um trabalho enorme, um planejamento tremendo por parte da autora, mas quando a gente vê todas as engrenagens se encaixando, é a coisa mais linda do mundo.

Apesar do tema pesado, com uma protagonista que, além de trabalhar, é também caseira de um cemitério, o livro sabe dosar as emoções, não fica aquele negócio apenas triste e mórbido. Existem até cenas cômicas, por mais estranho que pareça encaixar isso no cenário. Capítulos relativamente curtos, noventa e quatro no total em um livro de 477 páginas.

Um livro que mexeu comigo, e me emocionou muito! A vida da Violette não é nada fácil, ali por volta da metade do livro existe uma reviravolta no livro que parece bagunçar tudo o que parecia seguir uma linearidade — desencadeada por duas mortes que marcam essa mudança. E acho que a autora faz como ninguém isso que me emociona muito: apresenta muita tristeza, muita coisa muito triste, mas há uma luz no fim do túnel. E quando eu cheguei nessa luz tudo o que pude fazer foi chorar igual criancinha!

Vai com certeza figurar nos meus favoritos desse ano, mais um que tive a sorte de conhecer graças a esse clube do livro maravilhoso que participo.

SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!

É difícil da gente se colocar no lugar da Violette, por mais que tentamos. É difícil demais nascer órfão. Quanto de amor que essa mulher não pode receber na vida? Por mais que houvessem cuidadores, pessoas que a criaram para a vida, para nós que temos pais e mães é desolador imaginar que ao fazer dezoito anos órfãos deixam o local onde cresceram com uma mão na frente e outra atrás, e devem ali entrar na corrida da vida — já largando de um local muito desfavorável.

Não conhecer o amor acaba fazendo a pessoa fazer escolhas sem a maturidade necessária. Não que nós não somos propícios a cometer os mesmos erros, mas por conta da situação da Violette, ela está mais vulnerável. Ela enquanto trabalhava num bar, conhece e se apaixona pro Philippe Toussaint.

Philippe Toussaint é o exato oposto da Violette: ele é o caso de quem recebeu muitos mimos, até demais. Nunca passou por nenhuma dificuldade financeira, vivendo uma vida sem nenhum tipo de limite, em plena libertinagem e repleto de proteção tóxica dos pais, ele vive uma vida sem profundidade. Mulherengo, ele teve incontáveis casos extraconjugais depois que se casa com Violette. E como se fosse uma agressão contra ela mesma, ela vai guardando todos os hematomas emocionais de infidelidade do marido que ela tanto amou.

Eu já ouvi histórias de amigas que após casarem com um cara, descobriram que o marido queria mesmo era uma espécie de "segunda mãe que possa fazer sexo com ela". Isso sem contar casos que já vi de caras que até perdem o interesse em transar depois, fazendo a esposa virar uma mãe na prática mesmo, por não ter aprendido nem a fritar um ovo. 

Uma amiga no clube do livro até citou em como o machismo protege muito mais o homem quando trai do que a mulher. Acho meio errado quando a autora humaniza Philippe Toussaint, especialmente no final, quando o cara é a pessoa mais escrota do mundo e nada, absolutamente nada, faz algo que tente reparar as incontáveis vezes que partiu o coração da Violette. 

É o mesmo machismo que protege gente nojenta como Neymar quando ele trai a namorada grávida do filho. Eu entendo que a Valérie Perrin não fez por maldade, mas os tempos atuais não permitem que alguém como Philippe Toussaint seja humanizado. Existem homens que podem eventualmente aprender a lição, mas eu como homem sei que a grande maioria são canalhas intrínsecos, que a eventual redenção de Philippe no final, tentando entender como sucedeu a morte da filha Léonine, pode passar a mão na cabeça dos homens que não valem nada e acham que são dignos de perdão — quando, em ambos os casos, não passam de homens sem caráter, que não valem o ar que respiram. Respeita sua mina, seu bosta. Ao invés de trair, vá bater uma punheta pra passar a vontade. Aprenda a segurar seus impulsos.

A gente sabe muito bem que quando a mulher trai, sofre um apedrejamento social muito desproporcional do que quando é o homem que trai. Era verdade no tempo de Odisseu e Penélope, verdade em pleno século XXI.

Mas apesar da escrotidão desse energúmeno, temos Julien Seul. É muito bonito ver o amor genuíno que ele sente pela Violette desde o começo, e o quanto ele a respeita e vai no tempo dela, sabe? A menina tem incontáveis traumas, passou por muita coisa ruim, mas o amor que ele sente é sincero. E por nunca ter encontrado essa sinceridade, Violette parece nem acreditar que isso exista — afinal, ela provou o que há de pior na vida, coitada. Porém o amor vence no final, e ambos terminam juntos, em uma doce família com o filho do primeiro casamento de Julien.

Isso sem contar os ótimos capítulos onde o foco é na mãe do Julien, a Irene, e seu caso de amor extraconjugal com Gabriel. Eu achei um negócio tão bonito, os dois vivendo um amor impossível, mas tentando aproveitar ao máximo o tempo que tinham juntos. É muito humano ver justamente o dilema da Irene, que como mulher sabe como a sociedade seria muito cruel com ela por se tratar de uma traição, e sofrendo por ter esse amor pelo Gabriel — uma coisa muito mais genuína e sincera do que o que a Irene sentia pelo marido. Dá pra entender que ela queria as cinzas dela colocadas no túmulo do Gabriel, passarem a eternidade juntos. É de chorar!

Como eu disse no começo, eu tenho dificuldade para chorar de tristeza. Mas em livros assim, com finais felizes, parece que toda a tristeza acumulada ajuda a fazer ainda mais lágrimas caírem. Cai uma cachoeira, e ao ver a Violette feliz, não podia ser menos.

Um dos melhores livros de 2023, com certeza!

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