Amber #64 - Though we're far apart, you're always in my heart.

“Pronto, ficou ótimo! Olha só no espelho!”, disse Liesl, com um pote de pó compacto na mão, depois de maquiar Alice, “Dá pra enganar bem! É como aqueles idiotas brancos que se maquiam de blackface, mas ao contrário. Será que é uma ‘whiteface’?”.

A pele de Alice depois de tanto pó estava muito branca. Os lábios grandes e vermelhos deixaram ela com um aspecto altamente sensual, realmente parecia uma outra pessoa.

“Puxa, a melhor coisa que eles inventaram foram esses pós compactos”, disse Alice, se referindo ao cosmético que por volta dessa época ganhou o aspecto parecido com o que usamos hoje, “Uma pena que ninguém nunca faz nada para as pessoas de pele negra. Esses padrões de beleza são péssimos e antiquados”.

“Um dia vai melhorar. Vamos colocar a peruca?”, perguntou Liesl.

Alice sempre foi uma mulher muito vaidosa. Mas não quer dizer que, assim como grande parte das mulheres, não fazia um sacrifício imenso para parecer bonita. Apesar de ser uma pessoa que mesmo sem nada demais já era uma negra extremamente bonita, tinha suas técnicas para parecer ainda mais deslumbrante, apesar do seu marido sempre dizer que ela não precisava de nem um pouco daquilo.

“Escuta, e aquela menina? Sumiu mesmo?”, perguntou Liesl, enquanto ajeitava com as mãos a peruca ruiva que Alice usaria.

“Aquela que vocês disseram que ela estava matando gatinhos? Pior que sim. Antes de ontem ela sumiu. Uns dois dias antes ela disse que iria ir embora mesmo, e aí depois simplesmente sumiu do mapa”, disse Alice, explicando sobre a estranha menina desconhecida que Briegel e Alice haviam encontrado na casa de Brigitte Briegel em Brandenburgo, “E você e o papai, acharam algo sobre ela?”.

“Nada. Nenhum registro, nenhum registro de impressão digital, nada. Ela nem mesmo revelou o nome dela, né?”, perguntou Liesl.

“Nem mesmo o nome dela ela disse. Ela era meio estranha, tinha uns hábitos estranhos. Volta e meia eu a via atraindo e maltratando passarinhos, enfiando agulhas neles e os matando. Ela não falava muita coisa, e quando ela falava era sempre coisas sem sentido. Comia e bebia como uma criança normal, mas o mais bizarro era aquilo que eu te contei que ela fazia”, disse Alice, fazendo uma cara de desgosto ao se lembrar.

“Se masturbando?”, disse Liesl, lembrando do imenso desgosto que Alice sentiu ao ver uma criança fazendo aquilo.

“Não era como uma pessoa normal. Ela fazia aquilo de uma maneira doentia. A vagina dela era vermelha e saía até sangue. Minha nossa, isso me dá náuseas só de lembrar”, disse Alice, olhando pro lado e pedindo para Liesl agilizar com a peruca, “Provavelmente além de tudo aquela menina foi vítima de abuso. Tenho medo do que ela vai virar quando crescer”.

Liesl se aproximou com a peruca em mãos, pronta para colocar em Alice.

“Ah, deixa isso pra lá. Vamos lá, vem, rapidinho!”, disse Alice, tirando a sua peruca de cabelos pretos. Liesl só havia visto uma ou duas vezes Alice assim, sem peruca. Ela era uma mulher careca. Mas por conta da vaidade Alice nunca deixavam que vissem que aqueles lindos penteados eram na verdade frutos de caríssimas perucas que ela comprou durante toda a vida. Liesl, a pedido de Alice, foi atrás de uma grande peruca ruiva, de cabelos de inglesas, possivelmente. Mas ao ver Alice daquele jeito no espelho, com aquele cabelo baixinho e preto, ela parou e ficou quase que hipnotizada. Foi Alice que teve que tirar ela daquele pequeno transe: “Liesl, anda logo! Eu não gosto de ficar sem peruca!”.

“Não, espera!”, disse Liesl, afastando a peruca de Alice, “Quando eu te vejo assim, nossa, fico espantada”. Alice por mais que tivesse um bom coração naquela hora ficou triste com o que ouvia de Liesl. É verdade que todo aquele investimento em perucas ofereciam um aspecto magnífico, apesar do padrão de beleza europeu da época impedir de mulheres negras assumirem seus próprios cabelos. E por um momento Alice achou que Liesl estava espantada em como ela era feia sem toda aquela produção. Mas o que ela ouviu foi bem diferente: “Como eu cobiço essa pele sem imperfeições, esses olhos grandes, negros e bonitos, esses lábios carnudos e esse rosto bem desenhado. Mesmo sem cabelo você tá no mínimo umas dez vezes mais bonita do que eu!”.

Alice nessa hora sorriu. Sabia que Liesl era uma menina especial, mas eram nesses momentos que ela tinha ainda mais certeza disso. A peruca ruiva foi colocada e Alice parecia uma outra pessoa. Penteando rapidamente o cabelo, ajeitando os cachinhos, ninguém jamais suspeitaria que ela era uma pessoa negra quando saísse na rua.

“E qual vai ser meu nome?”, perguntou Alice, “Alice Briegel é muito alemão. Preciso de um nome britânico!”.

“Já sei! Alice Saint-claire”, brincou Liesl, “Você tem muito cara de ter esse nome agora”.

“Espero que possamos passar sem problemas até chegar na Polônia”, disse Alice, enquanto Liesl saiu da sala para se aprontar, “E você, vai levar o quê?”. Alice se ergueu, já arrumada, e foi até a sala onde estavam as coisas de Liesl. Arregalou os olhos pra ver o que ela estava levando. Liesl estava com roupas militares alemãs, tirando as suásticas do uniforme, pra não deixar aquilo ainda mais ridículo. Uma mochila de expedicionário, e uma grande carabina estava sendo colocada nas duas costas pela alça. Ela parecia ter tirado aquilo de uma linda caixa adornada.

“Esse rifle parece meio antigo”, comentou Alice, pelo pouco conhecimento de armamento que ela tinha, “É esse que você usa?”.

Liesl sorriu pra Alice ao ver no que justo ela havia reparado.

“É um rifle de infantaria inglês, modelo Martini-Henry”, explicou Alice, enquanto o empunhava para mostrar pra Alice. Era ricamente adornado, lustrado e com uma empunhadura de marfim. Era realmente magnífico, peça única, “Eu comecei treinando com um desses, e o coronel Briegel há alguns meses o reformou. Eu sou a batedora do grupo, tenho uma ótima mira e visão, como aquelas russas carecas da Grande Guerra de 1914”, Liesl nessa hora jogou a arma para as suas costas, com a alça ainda no ombro, sacando uma pistola com a outra mão, “E essa aqui é para emergências. Frommer Stop, calibre .32, capaz de parar qualquer um na minha frente”.

Realmente as duas estavam mais do que prontas para ir. Alice sabia que Max nunca iria aprovar essa incursão sozinha rumo à Polônia sendo atacada pelo exército nazista, logo ela resolveu que não avisaria o seu marido. Liesl também não se sentiu à vontade para perguntar se deixaria algum recado, mas ficou tranquila quando viu Alice deixando um envelope com sua assinatura, escrito “Para Max” logo na mesinha perto da porta da casa.

As duas pagaram um motorista para que as levassem até a estação de trem de Berlim. De lá elas pegariam um trem até a cidade de Breslau (atual Breslávia, na Polônia), que na época fazia parte do território alemão. Já passava do meio dia e o trem delas ainda demoraria mais um pouco. Se tudo desse certo, até a noite elas estariam em Breslau, e de lá iriam até Cracóvia, que já havia sido dominada pelo exército alemão.

Enquanto aguardavam sentadas na estação com poucas bagagens de mão, Liesl lia os relatórios que a SD recebia sobre o avanço das tropas na Polônia.

“Parece que chegaram até Varsóvia. Isso tudo foi muito rápido, eles invadiram a Polônia por todos os lados possíveis, oeste, norte, e até pelo sul, já que o governo havia conquistado a Eslováquia. Agora é questão de dias até tomaram o país todo”, disse Liesl.

“Porque raios o Reino Unido e a França não fazem nada?”, perguntou Alice, que não acreditava na lerdeza deles atacarem depois de recentemente terem declarado guerra contra a Alemanha nazista, “Acho que se parassem a Alemanha agora tudo seria muito fácil, antes que isso tudo piore”.

“Acho que é medo. Ninguém quer recriar a ‘Guerra para acabar com todas as guerras’ de alguns anos atrás”, explicou Liesl, tentando levar um pensamento mais racional para acalmar Alice, “Eu não lembro, porque eu nasci bem depois que a Guerra terminou. Mas papai disse que foi uma bagunça só. Foi país declarando guerra contra o outro, e depois contra o outro, e depois contra o outro. Chegou um momento que ninguém mais lembrava que o estopim foi uma morte do herdeiro do trono Austro-húngaro”, nessa hora Liesl deu um risinho irônico, “Pelo menos foi algo com mais estilo do que poloneses que mandaram uma mensagem contra a Alemanha de uma rádio que dominaram”.

Alice nessa hora pediu pra Liesl ficar quieta e apontou com o olhar para o lado. Havia um casal de alemães sentados a poucos metros das duas conversando tranquilamente. Alice parecia interessada no que eles falavam, e aguçou o ouvido para ouvir o que eles falavam.

“...Não, não acho! Os franceses também estão com medo, querida. Se eles lançarem uma ofensiva pelo oeste não sei quanto tempo esse governo vai aguentar. Espero que tudo fique calmo depois de tomarmos o que nos lhe é de direito na Polônia”, disse o marido.

“Tenho medo da tia Bemadette. Hitler disse que quer as cidades que tenham mais de 75% de moradores alemães. Eu pensei que ele tomaria apenas Danzig e sairia logo. Agora estamos na mira de ingleses e franceses, espero que nada de pior aconteça”, disse a esposa, preocupada com os rumos daquela batalha.

As duas depois de ouvirem os comentários do casal se viraram, conversando entre si:

“Francamente existe uma coisa que me dá muito medo, muito mais medo. Algo que recebi hoje de manhã a informação”, disse Liesl, olhando pra Alice com apreensão no olhar, “Parece que a União Soviética tirou o embaixador deles de Varsóvia”.

Alice por um momento arregalou os olhos, abismada. Mas depois desviou o olhar para baixo, como se pensasse consigo mesma.

“Não, pensando bem, acho difícil”, disse Alice, um pouco mais calma depois de ter pensado consigo mesma, “Não acho que a União Soviética vai atacar a Polônia do outro lado. Isso seria uma covardia imensa! E se o exército de Stalin alcançar o de Hitler, como vai ser? Isso pode trazer consequências catastróficas! O comunismo é inimigo declarado do nazismo!”.

Liesl não respondeu, apenas balançou a cabeça positivamente. No fundo ela queria realmente acreditar que o embaixador soviético ter sido convocado de volta não significava nada. Com o território polonês como espólio de guerra, ninguém iria sofrer mais perdas que o povo polonês nessa história toda.

“Nossa, não acredito que encontrei vocês!”.

Nessa hora as duas viraram. Em quinze minutos o trem delas sairia, mas a pessoa que havia aparecido era a última pessoa que elas achavam que aparecia por lá.

“Max!”, gritou Alice, se erguendo, assustada. Max estava arfando, completamente sem ar, e transpirando muito. Estava realmente muito cansado, parecia que havia corrido uma maratona, “Minha nossa, não acredito que alcancei vocês!”, nessa hora ele se apoiou no banco que elas estavam sentadas, com a carta que Alice havia escrito nas mãos, “Meu amor, o que significa isso?”.

Alice estava tensa. Sabia que não poderia chorar por conta da maquiagem, mas Max estava com uma expressão tão desesperada que o suor se confundia com as lágrimas que caíam dos olhos dele. Liesl percebeu que talvez o lugar dela não era ali, e viu que o trem estava chegando já para as pessoas embarcarem.

“Alice, eu vou indo pros nossos lugares, tudo bem?”, disse Liesl, deixando o casal a sós. Alice e Max se sentaram um do lado do outro. E Max, desesperado, colocou sua cabeça no colo de Alice e começou a chorar desesperadamente.

“Não há nada que eu possa fazer pra te parar, não é mesmo?”, disse Max, entre os soluços. A ideia de perder Alice, o amor da sua vida, o assombrava muito. Ele a amava profundamente, e ir para a Polônia no meio do ataque alemão era como assinar seu próprio atestado de óbito.

“Eu sinto muito, querido”, disse Alice, fazendo carinho no cabelo do seu esposo, “Mas eu prometo que ficarei bem. Se eu te contar que o plano inicial era ir sozinha atrás do meu pai, aí sim você me acorrentaria em casa, não é mesmo? A Liesl é bem forte, e se não me engano já terminou o treinamento com o papai. É a melhor e mais capaz pessoa para me proteger enquanto estiver por lá. Confie em nós”.

Max ergueu o rosto. Seus olhos estavam vermelhos.

“E o que eu vou fazer se algo acontecer com você?”, disse Max, extremamente triste.

Alice usava todas as duas forças para não derrubar uma única lágrima, embora seus olhos já estivessem pra lá de marejados. Acariciando o rosto do seu marido, ela não sabia o que responder depois de ouvir sua pergunta. Vendo sua mão, toda branca por conta da maquiagem junto do rosto de Max, viu a beleza que ela sempre quis ter e nunca pode ser.

“Será que as coisas teriam sido diferentes se essa fosse a cor da minha pele?”, pensou alto Alice. Mas uma lágrima escorreu do rosto de Max, e ela lavou o pedacinho de pele que tocou na mão de Alice, revelando a verdadeira cor debaixo.

“Jamais, meu amor, jamais!”, nessa hora Max pegou a mão dela que estava no seu rosto e a beijou, “Eu te amo assim, exatamente do jeito que você é, e eu jamais trocaria absolutamente nada em você. Nada!”.

Alice deu um selinho na boca de Max, deixando a marca de batom nos seus lábios. Depois disso nem ela tinha mais nada pra dizer. Alice nunca duvidou do amor do seu marido, nem por um momento. Max no começo do namoro não tinha quase nada pra oferecer, mas em pouco tempo ele havia se tornado um dos maiores empresários da Alemanha. Ela sabia que as lágrimas de Max não era apenas pelo grande amor que ele sentia pela esposa. Mas também da imensa gratidão dela como mulher, de ter o inspirado tanto, de ter sido uma motivadora tão forte para ele, que apenas com sua sinceridade o fez sair do posto de um zé ninguém até onde está hoje.

Até Max sabia que era por mais que pessoas dissessem que ele era um grande homem, ele sabia que ele era pequeno, pois tinha sempre como inspiração e empurrão para ir em frente, uma grande mulher.

Alice se ergueu, pegando suas coisas indo até o trem. Segurando tudo com a mão esquerda, sentiu a mão de Max tocar sua mão direita. Mas ela não virou. Nessa hora foi muito difícil segurar as lágrimas, e os dois não falaram uma única palavra. Nem mesmo um adeus. Fitando o trem na sua frente Alice foi caminhando, passo a passo, enquanto sentia a mão de Max ficar cada vez mais longe, cada vez mais se soltando da dela, cada vez mais sendo deixado pra trás.

Ela embarcou no trem sem olhar uma única vez para trás. Talvez Max acharia isso uma enorme frieza da parte dela. Mas sem dúvida não havia coração no mundo que soubesse a definição de sofrimento do que o coração de Alice Briegel naquela hora ao deixar o marido que tanto amava.

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