Amber #67 - O demônio interior.

Era incrível como uma guerra era capaz de fazer na feição de uma pessoa comum. Era o mesmo Lars Sundermann de dois anos atrás, o mesmo jovem cabo que estava vendo as atrocidades que aconteciam contra civis em Guernica. Mas não parecia que haviam se passado dois anos apenas. Sundermann estava com uma feição cansada, um bocado abatida, com marcas de expressão no rosto. Tinha uma barba grossa, vistosa e loira bem aparada. Olhos fundos com olheiras ao redor. Os mesmos que ao verem Liesl não deixaram um único segundo de expressar uma única emoção: ódio.

“Minha nossa, graças a deus era você...”, disse Liesl, aliviada.

Liesl estava ainda agachada na frente de Anastazja, a protegendo. Mas ao ver que era Sundermann começou a ficar um pouco mais tranquila, mas essa tranquilidade não foi completa. Ao ver o rosto de Sundermann, não entendeu porque ele a encarava com aquele olhar de fúria, como se ele estivesse no meio de uma batalha.

E então, sem dizer nada, Sundermann sacou sua pistola a apontou para a testa de Liesl, puxando o gatilho.

“Não!!”, gritou Anastazja, que tentou correr para o outro canto, onde estava a porta que ela havia trancado. O tiro ecoou ainda mais alto dentro do celeiro velho, pássaros de assustaram e começaram a voar no lado de fora. Aquele local parecia um amplificador. Até Alice de longe ouviu e olhou para a direção do barulho, se lembrando que foi lá que Liesl havia ido. Obviamente ela ficou extremamente preocupada e deixou as coisas lá e foi correndo ver o que estava acontecendo.

“Você tá louco?”, disse Liesl, segurando a arma de Sundermann no alto, “Porque veio atirar em mim?!”.

Liesl no último momento, movida por um reflexo extremamente eficaz por conta dos treinamentos com Briegel, conseguiu erguer a segurar a arma de Sundermann pro alto, fazendo com que o disparo dele atingisse o teto do celeiro.

Sundermann fechou seu outro punho e deu uma investida no rosto de Liesl, a lançando pra trás. Tentando se manter firme, Liesl acabou ficando com os joelhos flexionados, enquanto com sua outra mão pressionava seu rosto, que pulsava de tanta dor por conta do soco.

Ainda sem dizer nada Sundermann se aproximou e novamente mirou em Liesl. Nessa hora ela viu que era o momento de atacar. Por algum motivo que ela desconhecia ele estava aparentemente fora de si e queria mata-la. Liesl correu e se jogou no chão, escorregando e lhe dando uma rasteira, fazendo Sundermann novamente errar o disparo, acertando a parede do celeiro e caindo de costas no chão, com Liesl em cima dele, o imobilizando.

Liesl não perdeu tempo e rapidamente tirou a arma das mãos dele, a chutando pra longe. Anastazja não conseguia tirar a madeira que trancava da porta, ela parecia emperrada depois dos chutes da esposa da família assassinada do outro lado. A cada som vindo de Sundermann e Liesl ela perdia a concentração e olhava pra trás, pois nunca havia visto uma luta assim tão de perto, e estava com muito medo de que sobrasse pra ela no meio daqueles desconhecidos.

“Mas que merda, me solta!”, gritou Sundermann puxando Liesl pela mochila militar dela. Como Sundermann era maior e mais pesado, acabou lançando Liesl pra parede da porta que eles haviam entrado, fazendo a garota bater violentamente suas costas.

Rapidamente Liesl se ergueu. Ainda não acreditava no que estava acontecendo ali.

“Sundermann, não é possível que não lembre de mim! Em Guernica! Dois anos atrás!”, gritava Liesl tentando fazer Sundermann se recordar.

Mas Sundermann parecia não querer ouvir. Se ergueu, procurou a sua arma, mas parecia não encontrar, por mais que olhasse pra todas as direções. Olhou para Anastazja, que estava já com os olhos em lágrimas, gritando enquanto tentava destrancar a porta sem sucesso. Era um alvo mais fácil, e antes um pássaro na mão do que dois voando. Pegou um facão, desses usados por fazendeiros, que estava colocado na parede do celeiro e mirou em Anastazja, lançando contra a polonesa.

A sorte foi que na hora que ele ia jogar Liesl jogou seu corpo contra ele, o fazendo perder a mira. Ainda assim o facão foi lançado na direção de Anastazja, e acertou a parede a poucos centímetros dela, permanecendo fincado lá.

Anastazja se assustou ao ouvir o barulho e gritou, em pânico. Levou as mãos até sua cabeça e foi até um canto, e por lá ficou, agachada contra a parede, com os olhos fechados em lágrimas, gritando, com as mãos na cabeça.

“Meu deus, por favor, que tudo isso seja um sonho! Eu não quero morrer, eu não quero morrer, eu não quero morrer!!”, Anastazja gritava sozinha.

Sundermann foi jogado contra uma mesa fraca de madeira, que não aguentou muito o impacto e quebrou uma das pernas. Liesl viu que não havia espaço pra discutir verbalmente com o alemão. Ele estava completamente fora de si. Tão fora de si que nem mesmo conseguia se erguer. De tanto ter Liesl como alvo, sequer parecia raciocinar e ver que a mesa havia quebrado uma das pernas e não dava pra ser usado como apoio para se erguer.

Gritava toda vez que falhava em se levantar até que, depois de tanto tentar, enfim conseguiu se erguer usando a mesa que estava mal se mantendo em pé.

Liesl constatou que ele realmente estava fora de si ao ver a dificuldade dele em se erguer. Já mais recuperada aproveitou o tempo para estudar seu inimigo e deduziu corretamente seu atual estado de espírito. Era um demônio. Um demônio que não descansaria e não mediria esforços até vê-la morta.

Não tenho opção. Ele está completamente fora de si. Bom, agora é hora de ver se o treinamento do coronel deu certo, pensou Liesl, preparando-se para combater Sundermann. Não havia jeito, apenas talvez depois que cansasse ele talvez ele voltaria a si. E Liesl estava disposta a tentar fazer que a luta terminasse sem ela nem precisar gastar muita força contra ele.

“Sundermann, chega! Eu tenho a vantagem. Você já tá cansado e machucado demais pra uma luta comigo. Você tá fora de si! Seu estado de espírito é tão fraco que acho que nem preciso de muito pra vencer essa luta”, disse Liesl, desafiando Sundermann, “Eu não quero te machucar! Ambos vivemos e vimos com nossos próprios olhos uma coisa terrível! Deveríamos mais do que ninguém nos ajudar, e não lutar!”.

Mas Sundermann nem respondeu. Apenas deu um grito e foi até Liesl, correndo e se jogando pra cima dela com seu corpo. Liesl apenas deu um passo pro lado pra desviar ele no momento certo e ele foi direto pra um monte de feno que havia lá.

Se ergueu ainda mais enfurecido e novamente foi pra cima de Liesl, dessa vez desferindo muitos socos, que Liesl apenas desviava. Quando ela percebeu que ele após lançar esses socos menores gritou para dar um soco mais forte, ela aproveitou sua própria força e o jogou violentamente contra o chão, trincando o piso de madeira do celeiro.

“Agora chega disso!”, disse Liesl enquanto aplicava nele uma chave de braço, “Se você se mexer, vou quebrar seu braço igual um osso de galinha!”.

Era invejável a dominação que Liesl havia feito nele. Invejável e humilhante. Obviamente as aulas de combate que recebera de Briegel envolvia além de tudo artes marciais. Liesl era excelente em judô, e sabia exatamente o que fazer num momento daquele contra seu inimigo.

Sundermann gritava e esperneava, tentando se soltar, mas não conseguia. Foi então perdendo o ar cada vez mais conforme gritava e tentava bater em Liesl, sem sucesso, que apenas mantinha firme o braço dele, o impedindo de mexer. Conforme foi perdendo o ar, Sundermann foi ficando mais e mais cansado, perdendo completamente as energias. O alemão estava esgotado, e quando Liesl viu que ele não representava mais nenhum perigo o soltou.

Liesl havia realmente ganhado dele sem muito esforço. Na verdade ela ganhou a luta da forma mais inteligente possível: usando a própria força de Sundermann contra ele mesmo. Sem dúvida Briegel a havia feito pra ser uma agente muito além do que ela podia imaginar. Poder derrotar um oficial do exército nazista assim não era pra qualquer um.

Esgotado e derrotado no chão Sundermann estava arfando. Liesl se apoiou em uma pilastra de madeira próxima e ficou observando o alemão. Anastazja, que ainda estava virada pra parede e gritando que não queria morrer ao ver o silêncio se virou, e quando viu Sundermann deitado no chão ficou novamente aterrorizada.

“Não! Não me diga que você matou esse homem?!”, gritou Anastazja, do nada. Liesl virou o rosto pra ela e deu um sorriso tímido pra confortá-la.

“Nada, ele tá vivinho da silva aí no chão. Só está cansado”, disse Liesl pra Anastazja, “Agora eu quero explicações, Sundermann. Onde é que você estava com a cabeça?”.

Sundermann estava já começando a se recuperar. Colocou o braço na sua testa pra secar o suor e ali o manteve. Deu uma pequena risada entre as respiradas.

“Hahaha! E você ainda pergunta porque eu te ataquei? Uma pessoa como você nem devia dirigir uma única palavra pra mim, sua nojentinha!”, disse Sundermann, tomando impulso e se sentando, com as pernas cruzadas na frente de Liesl, “Eu lembro sim de Guernica. Eu lembro sim do que aconteceu lá. E sim, eu me lembro muito bem de você. E lembro claramente que você é essa raça desses nojentos que estragaram nossa Alemanha, nossa cultura, nossa economia, e que merecem a morte, sua judiazinha porca e imunda sem pátria!”.

Sundermann então sacou uma faca militar de uma bainha de couro nas suas costas e foi pra cima de Liesl. Foi bem nessa hora que Alice chegou na porta, e viu o brilho da faca em movimento cortando Liesl.

Tudo o que Alice conseguiu fazer foi soltar um grito, repleto do imenso medo de que algo tivesse acontecido com Liesl.

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