Amber #98 - O mundo anda muito louco, nada mais me espanta.

“Aquele Kanamori? Aquele idiota que estava lá embaixo com a gente?”, perguntou Eunmi, abismada.

“Sim. Aparentemente sim, Eunmi”, disse Yamada, tão chocado quanto, “Precisamos ir atrás dele agora!!”.

Eunmi foi até a porta e a abriu, sem dizer nada. Yamada foi logo atrás dela, atrapalhado, tropeçando nas caixas e arquivos, tentando coloca-los de volta ao seu lugar o mais rápido possível. Quando saiu da sala, Yamada viu Eunmi parada de frente de uma janela, com um olhar fixado em algo lá fora. Ao se aproximar da janela Yamada procurou, sem dizer nada, o que Eunmi olhava. Era um oficial passando pelo portão.

“Não me diga que ele é o...?”, perguntou Yamada, e Eunmi apenas olhou pra ele e confirmou com a cabeça.

“Yamada, acho que terminamos por aqui. Muito obrigada por toda sua ajuda. Sem você sem dúvida jamais conseguiríamos encontrar Jin-su tão fácil”, nessa hora Eunmi baixou a cabeça, fazendo uma reverência, “Acho que graças a você, vi que os japoneses não são todos iguais. Existem pessoas boas no meio dessas maçãs podres. Muito obrigada novamente!”.

Ligando o rádio comunicador que estava em seu ouvido para dar coordenadas ao time do lado de fora, Eunmi se virou e começou a ir em direção da saída a passos largos. Yamada continuou lá parado, a observando, vendo ela descendo as escadas, naquela que seria a última vez que a veria.

Um vazio imenso foi sentido por Yamada. Mas o jeito era ignorar, afinal aquilo não duraria pra sempre.

“Ei, Yamada!”, gritou o capitão Sasaki, enquanto Yamada ainda continuava olhando Eunmi descendo as escadas e indo até a entrada por onde veio. Por um momento fingiu não ouvir, mas depois da quarta chamada viu que não havia mais motivos para fingir, “Preciso que você desentupa aquele banheiro, seu inútil. Vê se você não desce pro ralo junto com a bosta, seu merdinha!”.

Nesse momento Yamada foi até a sala de limpeza e buscou um desentupidor. No caminho até o banheiro encontrou novamente o capitão Sasaki, com suas banhas e seu cheiro característico desagradável o encarando. E nesse momento diversas coisas passaram pela cabeça do japonês.

Será que, uma vez que provamos o quão deliciosa é a liberdade, temos vontade de voltar à prisão que vivíamos antes? Mesmo que viver na liberdade muitas vezes signifique não ter muito disponível, viver ao relento, não ter sempre comida, mas tivesse esse sentimento incrível de poder viver num local em que não fosse massacrado, humilhado e pudesse observar um mundo que jamais teria visto?

E se, por outro lado, ainda estivesse no meio do conforto e fartura que a prisão oferecia?

Quão dolorido seria dar esse passo para trás? Voltar a ser um militar de baixo escalão em um exército que te manda lutar por um imperador baixinho e burro, com sua própria família e comunidade dizendo que será uma honra servir o seu país, como um ritual de passagem para a sua vida adulta, mesmo que quando você se enfim fosse para lá enxergasse que não tinha nada de heroico, e que o exército imperial japonês fosse apenas mais um local onde os que estavam acima usavam de táticas covardes, acabando com a moral, e fazendo todos seus subordinados se sentirem um lixo apenas para que descontassem as suas frustrações mirando suas baionetas em chineses pobres, os furando como se fosse tofu?

Ao passar pelo capitão Sasaki, Yamada olhou para a janela antes de entrar no banheiro fedido. Embora Nanquim fosse uma cidade grande, viu na janela do sobrado vizinho um pequeno gatinho, se lambendo. E naquele momento ele teve quase uma epifania. Que aquele gato poderia não ter nada. Poderia ser pobre de doer. Mas ele havia nascido livre. E uma vez provada a liberdade, não havia mais motivos para voltar atrás.

“Yamada, o que tá esperando? A merda não vai se desentupir sozinha!”, gritou o capitão Sasaki, mas já era tarde.

O japonês pegou o cabo do desentupidor, o segurando com as duas mãos e o ergueu. Em um só golpe desceu com toda a força na cabeça do capitão Sasaki, partindo o cabo em dois.

Era aquele ímpeto de coragem que Yamada tinha em sua alma. E ele havia feito algo tão corajoso, que com certeza nenhuma outra pessoa teria conseguido fazer. Esse ato era o seu passaporte rumo à liberdade.

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“Certo, Eunmi, estou vendo ele! Ele entrou na rua na sua esquerda!”, disse Li, olhando pelo binóculo, “Rápido, ele está correndo!!”.

“Entendido!!”, disse Eunmi, eufórica, correndo entre as pessoas no meio de uma rua de comércio de Nanquim atrás de Jin-su.

“Estou aqui no final da rua, Li! Estou junto da Chou, estamos indo em direção de Eunmi, não tem pra onde ele fugir!”, disse Schultz indo junto de Chou pelo lado oposto da rua.

“Gente, parece que ele vai virar!”, disse Li, mantendo os olhos pousados sobre Jin-su ao longe, “Ele virou!! Repetindo: Ele virou! Entrou na segunda a direita, Eunmi!!”.

“Já estou chegando! Ah, merda, quanta gente!!”, dizia Eunmi, tentando costurar entre as pessoas que faziam compras naquele local, “Mantenha os olhos nele, Li! Não o perca de vista!”.

Schultz olhou para a sua esquerda e viu um beco vazio, com apenas uma cerca na frente. Nesse momento teve uma ideia.

“Escuta, tem um beco da minha esquerda aqui. Será que ele dá nessa rua que o Jin-su tá indo?”, perguntou Schultz. Rapidamente Tsai, ao lado de Li, verificou o mapa.

“Sim, Schultz!! Vai junto da Chou por aí, você só vai ter que virar para a direita e você pega o Jin-su!”, confirmou a Gongzhu pelo comunicador.

“Joia, princesa! Vamos por aqui, Chou!”, disse Schultz correndo na viela, passando por caixas, restos de comida, latas de lixo e todo tipo de coisa que havia por lá.

“Consegui! Entrei no beco! Tô com ele na minha frente!!”, disse Eunmi ao finalmente passar pelas pessoas e entrar na rua que Jin-su estava, “Jin-su!! Volta aqui!! Desista, você está cercado!!”, gritava Eunmi em coreano, mas Jin-su apenas virou o rosto para ela e continuou correndo fugindo da própria sobrinha.

“Eles vão conseguir, Gongzhu!”, disse Li, otimista. Mas bem nesse momento ela viu algo que chamou a atenção no final da rua que Jin-su corria. Havia uma esquadra de japoneses, entre dez a quinze soldados, andando calmamente do outro lado, “Opa, opa, opa!! Alerta vermelho, pessoal!! Soldados japoneses no final da rua do Jin-su!”.

“Patife sortudo! Justo agora!”, disse Tsai, sem acreditar no que Li via.

“Ah, fala sério! Isso só pode ser brincadeira!”, esbravejou Chou pelo comunicador, “Você acha que consegue engana-los com seu disfarça, Eunmi?”.

E nessa hora Eunmi se ligou que seu disfarce já havia ido pro ralo há muitos metros atrás. A barba falsa descolou, a roupa estava toda suada, e o quepe havia voado da cabeça quando ela começou a correr, revelando seu cabelo curto, porém com um corte inegavelmente feminino.

“Negativo! Meu disfarce já era”, disse Eunmi, que tentava ainda alcançar Jin-su antes dele virar a rua e dar de cara com os membros do exército. Ela corria com toda sua alma, tentando de todas as formas acelerar o passo, mas Jin-su corria igualmente, corria pela sua vida. Observando o movimento ao  longe, Li tomou um susto quando subitamente as coisas mudaram:

“Gente, parece que alguém está desviando os soldados! Alguém os está chamando para a rua do outro lado! Eles estão fora do caminho do Jin-su!”, disse Li, e todos ficaram subitamente aliviados, “Foi obra de um soldado, aparentemente! Eles foram pro outro lado, e esse soldado sozinho está indo em direção da rua que você está correndo atrás do Jin-su, Eunmi!”.

“Deixa comigo! Um só eu consigo me virar!”, disse Eunmi, se aproximando cada vez mais de Jin-su, que mostrava sinais de cansaço, desacelerando a corrida.

Schultz e Chou se aproximavam do outro lado, e viram o soldado japonês solitário. Tomaram um susto, pois aquele rosto lhes era familiar.

“Espera aí, Eunmi! Ele é o...”, disse Schultz no rádio comunicador, mas era tarde.

Como dois sacos de arroz batendo um contra um outro, Jin-su trombou violentamente contra o soldado japonês que vinha no sentido contrário. Nenhum dos dois perceberam que vinha alguém, e Jin-su, que já estava perdendo os sentidos por conta do cansaço de fuga, perdeu completamente a lucidez ao cair no chão. Eunmi se aproximou com sua arma em mãos, mas viu que não havia motivos para alarde.

“Você? Yamada?”, disse Eunmi ao ver que era seu amigo, “O que raios você tá fazendo aqui?”.

“Ah, desculpa, mas quer saber, mudei de ideia. Vocês ainda me aceitam como seu ‘cativo’? Eu prometo que não vou dar trabalho!”, disse Yamada, levando a mão no peito, “Ai, que pancada, ai, ai, ai!”.

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