Livros 2020 #2 - O peso do pássaro morto

No Sesc Paulista estava rolando um evento chamado "Alerta de Spoiler", onde livros eram colocados em sacos lacrados e a brincadeira era escolher um de acordo com o spoiler que mais lhe interessasse. Como a brincadeira só ia rolar em janeiro, consegui pegar dois livros em dois spoilers excelentes: "Se deus me chamar não vou", da Mariana Salomão Carrara, e "Sem Gentileza" da Futhi Ntshingila.

No entanto, hoje não vou falar de nenhum desses dois livros, e sim de um livro que uma umas das pessoas que escreveram o spoiler fez, a autora Aline Bei, e sua obra O peso do pássaro morto.

É um livro curto, mas muito denso. Ele tem o ritmo quase de uma epopéia, parece uma poesia modernista, sem muita regra de quantidade de sílabas, mas isso lhe trouxe um ar muito dramático, uma qualidade única. Muitas vezes eu lia umas dez páginas e tinha que parar e dar uma respirada, de tão abalado que eu ficava. Isso num livro de 165 páginas. Talvez a maior qualidade da narrativa da Aline Bei seja essa: como o livro transcorre como uma poesia, com palavras bem colocadas, o ritmo dos acontecimentos ditados pelos versos, o livro foi pensado nos mínimos detalhes: até a troca das páginas foi pensada para marcar transições na vida da eu-lírico do livro. É uma sacada genial.

Tá, mas sobre o que se trata?

É basicamente a vida de uma mulher, dos seus oito até sua morte, pra lá da terceira idade. Porém, essa mulher passa por muitos acontecimentos doloridos em sua vida: aos oito perde a sua melhor amiga na infância, a Carla, morta por um cachorro, na adolescência depois de ir num show de rock e ter se divertido, acaba sendo sumariamente estuprada pelo namorado na época (e engravidando do crápula), por não poder abortar ela cria o filho que é a cara do pai que a havia estuprado, e apesar de não deixar nada faltar para ele, ela convive com a dor da lembrança do estupro pelo resto da vida, e depois do filho já adulto ela resolve morar sozinha e adota um cachorro da rua (e muito grande, como é descrito no livro), chamado Vento, que tem uma vida surpreendentemente longa, e quando o cãozinho morre, ela meio que perde o sentido da vida e falece também pouco depois.

Parece um resumo bem simples, mas como eu disse, o esquema é como é escrito. É óbvio que uma coisa como um estupro é uma dor incalculável, mas a autora descreve a cena de uma maneira tão forte, que é impossível não sentir todo o nojo, repúdio, toda a revolta, toda a incapacidade, da personagem. É uma das partes mais pesadas. E pela maneira que ela escreve, as pausas dos versos, é como se a cena toda acontecesse como flashes na nossa mente que está lendo.

Só lendo mesmo pra entender. Ao mesmo tempo existem coisas boas também, talvez mais nas extremidades da vida, como a linda amizade com a Carla, que tentava fazer com que a protagonista anônima perdesse o medo de borboletas, e o doce cachorro Vento, que foi o parceiro que trouxe luz pra vida dela no final da vida. Nem tudo são dores, mas o livro em si é muito intenso, forte, e toca no fundo da alma.

É um livro excelente para se discutir não apenas as perdas que todas as mulheres sofrem durante suas vidas, como também a maneira que elas mesmos encontram para seguir em frente e retirar força sabe lá deus da onde. O estilo dela também é algo bem particular dela, e depois de uma googlada achei textos dela que são todos no mesmo estilo do livro: o que é ótimo, pois como todo diamante, vamos lapidando nosso estilo na arte que mais apreciamos. Eu escrevo e tenho que admitir que poesia é muito difícil. E a Aline tem talento pra coisa. Criou uma coisa única muito doida, e vale a pena ler.

Nota: 10

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