O carinha que mora no quarto lá em cima


Eu lembro como se fosse ontem.

Aquele oito de janeiro de dois mil e dezoito. Eu tinha perdido o PC enquanto fazia um maldito vídeo de incentivo para um treinamento religioso no templo que frequento. Naquele computador estava toda minha vida, viagens, memórias, tudo sem backup. Tudo bem que o PC já estava antiguinho (devia ter uns dez anos naquela época), mas ele funciona, e tinha tipo, minha vida lá. Eu, desesperado por não ter um tostão para arrumá-lo caso fosse necessário, procurava tudo quanto é raio de informação na internet para saber o que fazer. Chamamos um técnico do seguro que meu pai contratou na época, e ele disse que não tinha jeito: o HD tinha ido pro ralo, morto por causas naturais, velhice.

Na hora que desci para comunicar à minha mãe, ele olhou pra mim e disse: "Seu pai foi demitido hoje".

As quatro pessoas de casa tiveram três reações diferentes: meu irmão decidiu que seria o momento dele sair e casa e arranjar um emprego. Ironicamente, com toda a ajuda dos meus pais, ele conseguiu a maravilhosa emancipação, com meu pai pagando um apartamento a ele, ajudando no casamento dele, e hoje ele tá lá. Minha mãe achou que a gente ia ter que viver na rua, que estávamos na miséria, viver embaixo da ponte, etc. Já o meu pai, como alguém que deve estar no espectro autista, só pensava na mudança de rotina que iria acontecer sem acordar às 5h da manhã para ir para o mesmo trabalho que ele ia desde sei lá, uns quarenta anos indo pra mesma firma.

E eu? Talvez seja assim que eu me veja sempre. Sempre em último lugar, o que menos importa. Acho que é assim que muitas pessoas me veem também.

O Alain aguenta. Ele sempre incentiva todo mundo, ele deve ser o senhor autoestima. O Alain não precisa de ninguém para desabafar.

Mas cara, tudo o que eu pensava era: como vou fazer pra viver com esse homem dentro de casa, vinte e quatro horas por dia, enquanto lido com minha depressão, minha ansiedade, e meus impulsos suicidas?

Acho que de todos os pesadelos que tinha durante toda a minha vida, na lista dos que mais me aterrorizavam eram os pesadelos em que meu pai era demitido do trabalho. Conviver com meu pai nunca foi fácil. Eu sinceramente nunca entendi o porquê. Talvez seja uma dessas coisas complexas que a gente não entende direito, que é um conjunto de fatores, e talvez muitos dos quais eu nem tenha noção.

Meu pai mente muito. Mente de maneira doentia. Me contava estórias terríveis sobre coisas que o pai dele fazia com ele, como "puxar uma pipa dele quando ele tinha quatorze anos e mandar ele ir trabalhar no dia seguinte". Ou ainda aquela história da mãe dele "ser quase que uma santa em carne e osso, uma pessoa perfeita, que disse 'deus te abençoe filho' como última coisa para ele antes dela morrer sufocada no próprio travesseiro por um ataque epilético".

E durante muito tempo eu sempre acreditei nessas coisas. Meu pai sempre me castigava duramente quando eu mentia, mas isso talvez fosse pois isso o daria aval para que ele pudesse mentir. Ele criava um passado onde ele era uma pessoa perfeita: estudante nota dez (descobri depois que ele sempre foi um burraldo na escola), alguém que namorava todas as meninas do bairro (ele só teve uma namorada antes da minha mãe, não pegava nem gripe), e um mega esportista (ele fazia nada de esporte, pelamor!). Minha mãe não o conhecia antes, e mesmo se conhecesse aqui em casa existe uma política estranha sobre desmentir as pessoas: uma vez eu desmenti minha mãe, eu devia ter uns dez anos, e provei que ela estava contando uma mentira na frente do meu pai. Eu nem lembro direito mais a situação, mas eu lembro que ia sobrar pra mim se eu não fizesse isso.

Sabe o que aconteceu? Meu pai brigou comigo, dizendo que eu não devia desmentir minha mãe. Mesmo se ela estivesse mentindo.

A gente precisa de muita terapia pra entender como é viver com pais assim, cara. Eu sei que muita gente tem pais lindos e amorosos, pais que apoiam os filhos, pais que dizem: "Vai, filho! Lute pelos seus sonhos!". Pais que são amigos, pais que passeiam com os filhos, que brincam com eles.

Eu conto estórias assim e muita gente diz que eu tô inventando, ou que tô exagerando. Eu gostaria de ter tanta criatividade assim, na moral. Infelizmente isso tudo eu vivi. E viver isso deixa uma marca horrível em nossa alma, sabe?

Meu pai sempre fumou e bebeu muito. Durante muito tempo também eu acreditava que ele tinha uns "espíritos maldosos" que faziam ele sempre chegar a noite em casa e ficar brigando com todos nós. Toda noite era horrível. Ele sempre dizia que eu era viado, vagabundo, um inútil, alguém que nunca seria nada na vida. E durante anos minha mãe sempre culpou os "espíritos". Ano passado ele sofreu tanto dessas coisas que chegou a brigar a primeira (e única vez) com meu irmão mais novo. Estresse por conta da chegada do dia do casamento. Dizia umas coisas como "Pra que vai se casar com esse povinho que não tem onde cair morto?", quando se referia à família da esposa do meu irmão. Ele inclusive teve acessos de fúria loucos, cada vez piores conforme a data do casamento ia chegando.

(desses últimos eu me safei, uma vez que estava já lá em Caraguatatuba)

Minha mãe chegou com os olhos vermelhos e irritados. Eu nunca vou esquecer isso. Minha vontade era socar aquele nariz gigantesco daquele imbecil. Socar de tal forma que ficaria desfigurado. Teriam que lacrar o caixão para não verem o rosto de tanto que minha mão ia dar na cara dele. Filho duma puta miserável.

Sempre me colocava pra baixo. Chegava estressado do trabalho e ia lá descontar no Alain. Dizia que eu não tirava notas boas, e qualquer nota abaixo de 8 era motivo de castigo, de duas horas de falatório, onde incluía ameaças de me mandar para o exército para morrer no quartel, ou me expulsar de casa. Aliás, meu pai sempre me ameaça expulsar de casa desde os meus sete anos, e mais uma vez por alguma coisa na imaginação dele, onde ele diz que havia sido expulso de casa pelo meu avô e isso o fez virar homem.

Cara, meu avô disse que nunca fez isso. Ele me disse que isso era viagem da cabeça do meu pai.

E tudo sempre foi culpa dos "espíritos" que minha mãe dizia.

Espírito uma ova!!

Era bebida mesmo.

Era pinga, cachaça. Esse maldito álcool.

Era meu pai que não podia beber nada que virava "o machão".

E depois de gritar com todo mundo, no outro dia era como se nada acontecesse. Ele nunca pedia desculpas.

Dizia que iria me expulsar de casa, me chamava de viadinho, e que eu era um burro, inútil, vagabundo.

E nesses momentos de quarentena, toda essa ansiedade coletiva que todos estamos vivendo, esse verdadeiro inferno, fica ainda mais difícil conviver com ele. Fuma igual uma chaminé, mas pelo menos largou a bebida. Não tem o filho da puta do Jorge ou o velho Silvio (que estes queimem no inferno) para lhe oferecerem cachaça no buteco. Mas tem o cigarro, que ele acende a cada uma hora praticamente.

Hoje eu ainda fiquei revoltado pois ele estava fumando mais que o normal. Em meia hora eu vi três cigarros.

Minha mãe ficou se pergutando o que era, mas aí depois eu fiquei sabendo: Meu irmão está com a corda na garganta, tá com medo de ser demitido, e ele com essa boca grande foi contar isso para meus pais. E meu pai, paranoico, ficou com a ansiedade lá em cima e ficava descontando nos malditos cigarros. E quando eu disse para minha mãe: "Ele tá assim porque tá preocupado com o Danilo, quando ele disse que vai ser demitido. Mas comigo, ninguém se preocupa". Ela falou um be-a-bá lá, mas é a fala padrão de "Nós amamos os filhos iguais".

Tô sabendo. Fiquei anos pra fazer terapia. Ninguém se preocupa com o Alain. Ele é o mais velho, ele que se vire. É o pilar que todos vão lá dar uma mijada. Ele é quem segura a casa afinal, sempre foi assim.

No fundo eu sou apenas o "carinha que mora no quarto lá em cima". Vivo trancado num quarto, deprimido, sem ver nenhuma alternativa a não ser morrer.

Eu quero muito morrer, mas não quero me matar. Queria alguém para conversar. Mas infelizmente parece que quando eu paro para conversar, eu só tenho que ouvir os outros, e ninguém quer me ouvir.

Comentários

Postagens mais visitadas