Amber #83 - E quando Alice falou da sua gata, Dinah, todos se espantaram.

“Para onde estamos indo?”, perguntou Liesl para Natasha, enquanto corria junto de Brigitte, Alice e Anastazja, que já estava com sua perna recuperada, “Pra onde essa direção irá nos levar?”.

“Consegue ver aquele rio?”, gritou Natasha. Já era possível ver os gritos ao longe dos soviéticos se engajando em combate contra os poloneses em fuga, “É o rio Dniestre. Daquele lado já é território romeno. Temos que ir logo!”, nessa hora Natasha se virou para Brigitte, para lhe perguntar algo, “Brigitte, sabe se aqueles soldados conseguiram ir buscar reforços?”.

“Sim, eles foram sim”, disse Brigitte, enquanto corriam, “Não vai demorar. Tem um batalhão ao norte daqui, vão chegar rapidamente”.

Uma vez que estavam mais próximas do Dniestre, era possível ver do outro lado algumas pessoas, como se estivessem vigiando. Estavam armados, e não era possível definir se eram romenos ou poloneses. Poderiam arriscar a sorte e seguir em frente, mas preferiram fazer uma pausa atrás de algumas pedras e arbustos.

“Você tá bem, Liesl?”, perguntou Anastazja, amparando a amiga.

“Eu que te pergunto! E sua perna?”, perguntou Liesl.

“Está bem já. Foi tratado, deram uns pontos, tá cem por cento!”, disse Anastazja, acalmando Liesl.

“Merda. Parece que tinham poucos russos pra retarda-los. Parece que alguns soldados soviéticos estão recuando naquela base perto da fronteira. Porque será que esses poloneses estão desesperados?”, perguntou Brigitte, enquanto Natasha tentava olhar na sua frente pra descobrir quem são os soldados do outro lado da fronteira.

“São poloneses do outro lado. Membros do exército exilados”, disse Natasha, quando enfim percebeu do que se tratava, “Tem muita carne disponível, os nazistas e os soviéticos querem fazer o maior número de prisioneiros de guerra possível, para usa-los depois do jeito que bem entenderem. E assim não apenas acabar com o exército polonês, mas usar os que sobreviveram para guerrearem do seu lado”, então fez uma pausa, olhando para Alice e Liesl, “Clássica tática de guerra”.

“Ei, Natasha, temos que decidir se vamos ou ficamos! O tempo está acabando!”, disse Brigitte.

“Certo, eu tenho um plano! Será que em uns cinco minutos os soviéticos chegam aqui?”

“Sim! Cinco minutos no máximo! Porquê? O que você tá pensando?”.

Natasha nessa hora deu um grito e chamou três soldados soviéticos que estavam recuando. Depois de falar algo em russo com eles, virou pra Brigitte pra falar do seu plano.

“Vou com esses três aqui de volta, e vou ordenar que as tropas cessem fogo. Vou conseguir negociar e parar temporariamente essa caravana de poloneses. Enquanto isso, sigam em frente”, explicou Natasha, depois se virando para Anastazja, “Como você é polonesa, quero que converse com eles para que aceitem dar refúgio a vocês na Romênia. Ouviu bem, Anastazja?”.

Anastazja sentiu então nos seus ombros o peso da responsabilidade. Balançou a cabeça positivamente, confirmando.

“Tudo bem, deixe comigo!”, disse Anastazja.

Brigitte sacou sua pistola Steyr-Hahn do coldre dentro do seu sobretudo. Não havia nada na sua roupa que a identificasse como nazista e menos ainda soviética. Mas ao fitar Natasha as duas estavam tão em sintonia, que o que Brigitte disse apenas era uma confirmação do que seu olhar de determinação queria avisar.

“Eu irei contigo. Acho que serei mais necessária ali te ajudando do que aqui ao lado delas”, disse Brigitte, e depois se virou para Liesl, “E você, veja se consegue ao menos ter um êxito no meio de tantas falhas desde que pisou aqui na Polônia, pode ser?”, como sempre parecia muito ríspida.

Liesl apenas consentiu com a cabeça.

Anastazja então seguiu em frente, seguida por Liesl e Alice, enquanto Natasha e Brigitte iam pelo outro lado. O rio Dniestre era bem largo, não era possível atravessa-lo a pé ou nadando. Havia uma ribanceira um pouco íngreme, mas Liesl conseguiu descer com a ajuda de Alice. Ao longe as duas ouviam os tiros e gritos do confronto entre os soviéticos e os militares poloneses fugindo, mas a hora era de ignorar aquilo e seguir em frente.

“Ei, tem um barco ali!”, gritou Anastazja quando viu um barco cruzando o rio com a bandeira romena. Ela gritava em polaco, lhes chamando a atenção, e rapidamente o barco virou e foi até elas, “Senhor, obrigada por voltar! Meu nome é Anastazja Maslak, preciso cruzar para a Romênia com minhas duas amigas! Será que o senhor pode nos ajudar?”, disse Anastazja, em polaco.

“Sim, você disse Anastazja Maslak, certo?”, disse o soldado, pegando uma prancheta com papéis. Não tinha sotaque algum, então era claro que devia realmente ser polonês, “Sim, Maslak. Seus pais já cruzaram a fronteira. Pode vir conosco nesse barco, vamos, entre”, disse o soldado, pedindo para Anastazja entrar.

Logo atrás delas parecia que estava cada vez mais próximo o som de balas, tiros e gritos do embate que acontecia ali. Nessa hora se preocuparam com o que poderia acontecer com Brigitte e Natasha, mas ao mesmo tempo sabia que as duas eram muito mais experientes que elas, e que eventualmente sairiam bem daquela situação.

Porém quando Alice avançou para embarcar, o soldado a barrou.

“Espere um momento aqui. Traremos outro barco, esse aqui já está cheio de refugiados”, disse o soldado. Ao olhar Liesl percebeu que o barco estava até que vazio, com muito espaço em sua popa para que as duas se acomodassem e com pelo menos mais uma dez pessoas, “Vocês dois, soldados, aguardem aqui ao lado das duas senhoritas enquanto levamos a senhorita Maslak até seus pais”, e então dois soldados desceram, com cara de poucos amigos, com um olhar nem um pouco amistoso para Liesl e Anastazja.

“Alice, isso não vai dar certo. Isso definitivamente não está me cheirando bem”, sussurrou Liesl para Alice, que nessa hora suou frio.

Mas Alice ainda acreditava nas pessoas. Talvez o barco estivesse com algum problema, ou algo assim. Com certeza eles voltariam e as buscariam. O barco deu partida e começou a ir, com Anastazja olhando para as duas amigas.

E então um dos soldados pegou forte no cabelo de Liesl, a empurrando. O outro pegou forte no braço de Alice e também a puxou subindo a ribanceira, enquanto as duas se debatiam para tentar fugir.

“Ei, ei, ei!”, gritou Anastazja quando viu a cena, “Você disse que só iria buscar um outro barco para as duas! Para onde vocês estão a levando?!”.

“Elas não são polonesas. Eu ouvi você falando alemão com elas, mocinha! Alemães devem morrer! Arruinaram nosso país!”, disse o soldado, “E você ainda as defende?!”.

“Não! Isso é um engano! As duas são boas pessoas! Elas precisam ser salvas!”,

“Tarde demais, mocinha. As duas serão executadas logo ali, e a única maneira que as duas entrarão na Polônia serão como cadáveres!”, disse o soldado.

Anastazja então nesse momento sentiu a mesma dor no peito que sentira quando dias atrás estava prestes a ser morta dentro daquele celeiro em Cracóvia. O barco lentamente cruzava o rio, que a quilômetros dali desembocaria no Mar Negro. Um turbilhão de coisas passou pela sua cabeça, e lembrou do olhar das duas. Não havia nada demais, não parecia um olhar, uma última mensagem de uma pessoa que morreria. E entre todas as coisas que poderia se perguntar, Anastazja se questionou se ela deixaria que aquela fosse a sua última memória que teria das duas amigas que tanto lhe fizeram, a salvando das mais inúmeras coisas dentro da Polônia sitiada pelo exército nazista. Assim como tiveram diversas situações em que as duas não hesitaram em salva-la, Anastazja sentiu que devia isso não apenas à elas, mas também para sua consciência. Não queria ver mais ninguém morto. E menos ainda de forma injusta.

A polonesa então olhou para o rio, e viu seu reflexo dançando nas marolas que surgiu no propulsar dos motores. Só tinha uma pergunta a fazer:

“Escuta, essa água é muito fria?”.

“Um pouco. Porquê?”, respondeu o soldado.

E Anastazja então jogou seu casaco e sem hesitar pulou na água.

Na outra margem os soldados carregavam Alice e Liesl. Apenas um deles falava alemão, e ainda falava cheio de sotaque, era um bocado difícil de se entender.

“Bom, eu acho que qualquer minuto de vida depois daquela luta contra o Dirlewanger foi lucro. Com certeza era pra eu ter morrido lá”, disse Liesl, brincando. Mas ao olhar pra Alice, via que ela estava completamente desesperada, “Ei, Alice, fica calma! Acho que já passaram mais de cinco minutos”, ao dizer, Liesl deu uma piscadinha com o olho, mas Alice parecia desesperada demais pra reparar. Seu olhar estava distante, seus olhos em prantos, e ver essa cena deixava Liesl um pouco mais desesperada e ciente do que poderia acontecer se as coisas não saíssem como planejadas.

“Liesl, a gente vai morrer?”, foi a única coisa que Alice pode dizer. Estranhamente o soldado que a carregava parou por um momento ao ouvir a fala dela. Como ele não falava alemão, perguntou algo pro outro em polaco. As duas não entendiam nada desses poucos minutos de conversa entre os dois. Os dois continuaram subindo a ribanceira, e no topo era possível ver logo ali tiros lançados em todas as direções, deixando rastros naquele céu de um dia que estava se pondo. Era algo lindo as cores do céu junto dos traços dos tiros fazendo linhas retas ao seu redor.

“Ah, que merda. Seu pai vai ficar uma fera”, disse Liesl, que também não entendia como ela mesma conseguia ficar tão tranquila numa situação daquelas. Alice já estava inconsolável ao redor, tremendo e chorando, completamente amedrontada. As duas foram jogadas, e caíram de joelhos no gramado, e era possível ouvir os soldados preparando suas pistolas para a execução.

“Liesl! Liesl!! Me tira daqui. Eu não quero morrer, Liesl!”, gritava e gemia Alice, mas novamente o soldado parecia tomar um susto quanto Alice falava, e novamente os dois começaram a discutir em polonês. Uma discussão até que acalorada. E Liesl e Alice não entendiam nada o que estava acontecendo, até que um deles virou para Liesl e lhe fez uma pergunta:

“Liesl? Ela disse Liesl?”, disse o alemão, com sotaque, “Você se chama Liesl? Liesl do quê?”.

Mas dessa vez era Liesl que ficou aterrorizada. O homem parecia suar frio, ficava com os olhos arregalados aguardando a resposta, com uma cara totalmente apreensiva. E Liesl não conseguia dizer uma única palavra, pois aquilo era totalmente inesperado.

“É Liesl. Liesl Pfeiffer!”, disse Alice, quase que como num grito, no meio do seu pranto.

E novamente os dois começaram a discutir. Falavam, falavam, falavam e depois olhavam pra Liesl. Falavam mais um pouco em polonês e depois olharam para Liesl uma última vez, que sentada no chão e apoiada nos seus braços não sabia o que eles estavam dizendo.

“Escuta, sai logo daqui menina!”, disse o soldado, apontando a pistola pra cima e dando dois tiros para o alto, “Pronto, o nosso capitão não pode saber que não matamos vocês”.

“Espera aí, o que aconteceu?

“Por acaso querem que eu volte atrás e mate vocês duas?”, disse o soldado, “Eu vou ser breve. O irmão desse meu camarada, e também meu primo, foi morto em uma emboscada em Cracóvia. Haviam uns moradores poloneses espiando o local, e disseram que uma alemã chamada Liesl Pfeiffer estava lá e deu um jeito naquela briga. Aquele soldado alemão, Sundermann, ele é um psicótico doente, ele matou diversos dos nossos soldados, e inclusive um que era da nossa família! É verdade que essa guerra está sendo lutada sem nenhuma honra ou ética, pessoas atacam civis, matam inocentes. Mas quero acreditar na gratidão. E se você não tivesse detido Sundermann naquele momento, eventualmente nós seríamos os próximos que seriam aniquilados pelos seus homens, pois estávamos indo de encontro à tropa dele”.

Liesl não conseguia dizer nada. Apenas arregalou os olhos sem acreditar naquilo.

“Minha nossa, muito obrigada! Muito obrigada mesmo!”, disse Alice, abraçando as pernas do soldado.

“Não. Sou eu quem devo lhe agradecer”, disse o soldado, “Agora vão, fujam logo!”.

Naquele momento as duas se perguntavam aonde deveriam ir, mas não era importante naquele momento. O importante era dar o fora dali o quanto antes. Ao se virarem para trás viram que diversos soldados marchavam até onde estava a caravana de poloneses, as duas viram que aquele seria o momento em que a carnificina começaria. Tiros e mais tiros eram disparados contra poloneses, os soviéticos estavam em número muito maior, e com armas extremamente mais potentes. Poloneses lutavam pelas suas vidas, até o último momento, mas quando as outras tropas chegaram sabiam que aquele era o prenúncio do fim.

Balas perdidas voavam em todas as direções, e Alice e Liesl corriam para descer a ribanceira e sair daquele fogo cruzado. Quando viraram pra trás viram um dos tiros que viam de lá acertarem as costas de um dos soldados que iam lhes executar, e ele caiu no chão, rolando ribanceira abaixo. O outro soldado desesperado gritava chamando pelo seu parente, descendo o mais rápido que conseguia, enquanto Alice e Liesl já estavam praticamente na margem.

“Liesl! Alice!! Vocês estão bem?”, gritou Anastazja.

Mas nessa hora o soldado levou um susto imenso com a presença de Anastazja, ainda mais ela falando alemão. Ela estava ensopada, e tremia de frio, mas ainda assim tinha um sorriso no seu rosto. Um sorriso corajoso, um sorriso de alívio. Mas a expressão que Alice e Liesl tinha no rosto não era de alívio. Viam o soldado polonês desesperado descendo a ribanceira com a pistola em punhos, a mesma que iria executar as duas. No susto, e na escuridão, ao ver uma pessoa falando em alemão não hesitou:

“ANASTAZJA!! SAIA DAÍ AGORA!!”, gritou Alice, mas era tarde demais.

Dois tiros foram disparados na direção de Anastazja, que caiu no chão. Liesl desesperada saiu gritando em sua direção.

“Você tá bem? Anastazja!! Não!! Os tiros te acertaram?”, perguntava Liesl, buscando sangue no corpo de Anastazja.

“Ah, como eu sou atrapalhada! Acho que como eu estou toda ensopada, acabei escorregando”, disse Anastazja, sem jeito dando risada de si mesma, “Nenhum tiro me acertou. Mas da onde saiu aqueles tiros? Não parecia ter sido da arma daquele polonês.”.

Quando Liesl olhou pra trás, o soldado havia caído. E ao longe estava Natasha e Brigitte, a primeira com um rifle na mão saindo fumaça dele.

“Vão! Atravessem!”, ordenou Brigitte.

“E vocês duas? Não vamos voltar para a Alemanha?”, perguntou Alice, ajudando Anastazja a se erguer depois do tombo.

“Não se preocupem conosco. Cuidem da Anastazja!”, disse Natasha, como um último pedido, até a próxima vez que se encontrassem.

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