Amber #87 - O chefe e o líder.

30 de outubro de 1939
16h02

Os primeiros ventos gelados de novembro já começavam a passar pela janela, entrando no quarto de Schultz. O ano estava acabando, logo seria 1940, e cada vez mais o mundo parecia mergulhar num período mais e mais tenebroso a cada dia que passava. Schultz estava relaxando no seu quarto depois de mais um dia de treinamento. Li era uma excelente aluna, assim como Chou, absorvia tudo como se fosse uma esponja. Não era muito diferente as técnicas de militares e de Inteligência do ocidente, apenas talvez a metodologia que era diferente. E tudo estava se encaixando. Ainda faltavam mais três pessoas, e Schultz já estava começando a se acostumar a viver entre o povo chinês.

Talvez demoraria um pouco para se criar uma boa amizade, mas uma vez amigos, não havia diferença nenhuma do que acontecia em outros locais do mundo: um laço de companheirismo e confiança estava feito. Naquela época não havia tantos estrangeiros, e menos ainda no interior. Então todos pareciam ser ainda mais gentis com Schultz por ser europeu. Havia realmente um ar de sinceridade em todo canto que ele ia.

Mas volta e meia sentia falta das pessoas que havia deixado na Alemanha. Não sabia quanto tempo mais teria que ficar. Porém, embora ele não tenha falado nada para ninguém da saudade que sentia do seu país natal, havia uma surpresa que estava chegando pra ele naquele momento.

“Ei, tá dormindo de olhos abertos, senhor Schultz?”, disse Chou entrando. Schultz, que estava distraído olhando para a chama de uma vela se assustou ao ver Chou entrando com tudo, “Ou não existe velas na Europa?”.

“Claro que existe, menina! Apenas me bateu uma saudadezinha daquele lado do mundo”, brincou Schultz. Ele percebeu que Chou trazia algo em uma sacola atrás dela, e pelo som dos vidros se batendo, parecia ser uma garrafa, “Ei, o que você trouxe aí? É o que eu tô pensando?”.

“Se você pensou cerveja...”, disse Chou, mostrando a sacola, “Acertou em cheio! Olha só, marca alemã! A Gongzhu conseguiu de uns ‘moços simpáticos’ que moram em Jiujiang. Tem um abridor de garrafas aí?”.

Schultz pegou as garrafas na mão enquanto Chou ia buscar algo para abrir as garrafas. Ele nem conseguia acreditar, tinha semanas que ele não bebia uma! E era justamente uma das suas marcas favoritas.

“Poxa, deve ter sido difícil conseguir uma belezinha dessas. Ainda bem que existem uns traficantes no mundo ainda”, disse Schultz, pegando uma colher pra abrir a garrafa. Ao destampar, sentiu o cheiro que vinha da garrafa. Sentiu sua boca salivar bastante, “Uma pena que só tem duas. Vai lá, pega um copo pra nós dois, Chou!”.

“Ah, eu só vou querer um pouquinho! Ainda tenho coisas pra fazer, não posso sair por aí bêbada”, disse Chou, e Schultz colocou apenas meio copo pra ela, “Ei, mas pode ser um copo cheio! Que miséria é essa?”.

“Ei, eu disse que ia te dar um pouco. Isso é um pouco! O resto, é claro, é pra mim!”, disse Schultz, que dispensou o copo e bebeu na gargalo. Chou deu um risinho irônico e também bebeu a cerveja no seu copo.

“Uau. É realmente delicioso. Bem diferente das cervejas japonesas”, brincou Chou, que detestava tudo o que era japonês, “Cerveja alemã é realmente outro nível”, enquanto Chou dizia, Schultz continuava virando a garrafa no gargalo.

“Hã? O que você disse?”, perguntou Schultz, e Chou ficou olhando com raiva pra ele, “Me desculpa, isso é tão bom!”.

Chou então se levantou e pegou sua maleta médica e sua bolsa.

“Bom, senhor Schultz, eu vou nessa que ainda tenho coisas a fazer. Não se esqueça de agradecer à Gongzhu pelo presente!”, disse Chou, indo até a porta. Schultz rapidinho guardou a garrafa e se apressou para ir atrás dela.

“Ei, peraí, eu te acompanho até lá embaixo!”, disse Schultz, jogando conversa fora com Chou e dando risadas com ela.

Quando saíram do casarão, viram Eunmi andando aos berros na direção que eles estavam indo. Ela misturava chinês com coreano, gesticulava erguendo os braços e a voz. Como estava de costas, Eunmi não viu que Schultz e Chou estavam logo atrás dela.

“Eu já tô por aqui desse treinamento inútil, Tsai!”, disse Eunmi, depois gritando uns palavrões em coreano, “Quer saber o que eu acho? Que você tá me enrolando! Ninguém quer me levar pra Coréia pra pegar o idiota do Miura que matou meu noivo! Enfia no meio do seu cu esse treinamento de merda! Com ou sem o Schultz eu vou sozinha pra lá, e pau no cu de todos vocês!”.

Schultz então continuou seguindo. Chou tentou puxar Schultz para não seguir Eunmi, mas quem apareceu depois foi Tsai, que viu os dois ouvindo os xingamentos que Eunmi gritava para todos os lados. Chou ficou embaraçada ao ver Tsai, mas a Gongzhu não fez nada, apenas foi em direção de Eunmi.

“Ih, vai dar briga! Vamos dar uma espiadinha, vai!”, disse Schultz, puxando Chou, “Do jeito que a Eunmi tá uma fera vai voar no cabelo da Tsai! É sempre bom ser mulheres brigando!”.

“Senhor Schultz, não!”, disse Chou, sendo puxada por Schultz para ver o que Tsai iria dizer pra Eunmi. Talvez qualquer pessoa imaginaria que Tsai, numa posição de liderança, daria um imenso sermão e falaria um monte para Eunmi por conta da sua desobediência. Mas, escondidos atrás de uma árvore, o que Schultz estava pra ouvir mudaria suas convicções e conceitos sobre liderança. Assim como também reforçaria as crenças que Chou já tinha, por conhecer e seguir Tsai já há tanto tempo.

“Eunmi, por favor, espera”, disse Tsai indo atrás de Eunmi, “Por favor, só me dá uns minutos, espera aí”.

“Já disse pra me deixar em paz! Eu só perdi meu tempo aqui! Minha família tá toda na Coréia, sabe lá deus o que tá acontecendo com eles!”, disse Eunmi, furiosa, andando na frente de Tsai, “Gongju, Gongju, Gongju... Quer saber o que eu acho de vocês? São todos um pelotão de fracassados!”

Tsai então parou. Ela encarava Eunmi, mas seu rosto ainda continuava sereno como se não tivesse se sentindo ofendida por nada que Eunmi havia dito.

“Eunmi, então por favor, joga tudo pra fora. Desabafa o que você está sentindo”, disse Tsai, parada. Quando Eunmi ouviu isso, ela parou e olhou para trás, onde estava Tsai. Chou e Schultz estavam escondidos atrás da árvore, conseguiam ouvir tudo, já que a distância era pouca, “Eu juro que vou ouvir. E agradeço de coração por você colocar pra fora seu ponto de vista. Por favor, diga. Diga o que acha sobre tudo isso”.

“Ah, então se você quer ouvir, vai me ouvir agora! Umas poucas e boas!”, gritou Eunmi se aproximando de Tsai, que estava parada, e com o rosto tranquilo, apenas ouvindo Eunmi, “Eu nunca quis ficar aqui. Nunca! Acabamos vindo por acaso aqui nesse fim de mundo. E menos ainda eu queria treinar! Eu não fiz progresso algum! Eu não sou uma pessoa feita para guerrear e lutar. Eu só quero vingança, apenas isso! Não preciso de vocês. Não quero virar uma de vocês”, nessa hora Eunmi tomou ar e disse pausadamente, num tom alto e claro: “Eu nunca vou ser uma de vocês. Nunca”, mas não importasse o que ela falasse, Tsai continuava tranquila, apenas ouvindo e confirmando com a cabeça, “Eu tô cansanda, Tsai. E eu não tô falando isso como desabafo pra voltar. Apenas pelo mínimo de consideração pelo seu esforço, estou te dando explicações antes de eu dar o fora daqui!”.

É verdade que o tom de Eunmi era rude e violento. Mas a resposta de Tsai foi dada de maneira calma, até com um sorriso, um raro sorriso, dada a sua natureza séria.

“Eu agradeço muito por você colocar pra fora”, disse Tsai, baixando a cabeça, “Muito obrigada. Você tem todo o direito de se sentir assim, Eunmi. É muito bom poder ouvir suas reclamações, e eu sinceramente consigo entender exatamente o que você sente”.

“Uau. Incrível”, sussurrou Schultz para Chou, “É difícil hoje em dia uma pessoa ouvir reclamações, ainda mais nesse tom, e não retrucar, ou algo do gênero”.

“Eunmi, você é livre para nos deixar quando quiser. Ninguém vai te impedir. Nem eu”, disse Tsai. Schultz nessa hora ficou abismado. Parecia que ela abria a porta para que Eunmi fosse embora de vez, “E eu não consigo deixar de ver mais culpa em mim como líder do que em você. Eu deveria ter sido mais didática, mais paciente, e mais dedicada. Todos nós temos defeitos, Eunmi. E eu tenho ainda muito a crescer. E nunca quero deixar de sempre crescer, e mesmo essa situação me ensina muito. Me mostra o quanto eu ainda preciso desenvolver em mim mesma pra ser uma líder melhor, que inspire mais as pessoas, que nunca as deixe desanimar, e que sempre desperte nos outros a busca pelo seu melhor”.

Schultz realmente não conseguia acreditar. Tsai sempre pareceu uma pessoa madura, mas nesse momento ele a viu em um outro patamar. Chou, vendo o quão espantado Schultz estava, colocou a mão em seu ombro.

“É. Essa que é a diferença da Gongzhu. E por isso tantas pessoas a admiram tanto”, disse Chou, “Ela não é nossa chefe. Ela é uma verdadeira líder. E uma líder caminha junto dos outros, tem humildade, e sempre busca se melhorar, pois não tem apego pela posição ou desejo de mandar nas pessoas. A Gongzhu não é a que senta na carruagem e manda os outros a puxarem. Ela está junto dos que puxam a carruagem, incentivando, os inspirando. Isso que é uma boa líder”.

“Eunmi, por favor, me perdoe. Me desculpa por não termos partido para a Coréia ainda. Me desculpa por ter te treinado assim, de maneira tão rígida. E me desculpa por passar essa impressão de que estou te pressionando”, disse Tsai. A sinceridade era plena em seu olhar para Eunmi, “Um verdadeiro mestre não é o que negligencia conhecimento para se manter superior ao aprendiz. Um verdadeiro mestre é aquele que oferece tudo, para que o pupilo possa ser ainda melhor que o mestre, e alcançar patamares que o mestre nunca alcançaria. De alguma forma foi bem puxado, mesmo pra mim, te oferecer esse treinamento. É como um curso intensivo, tentar te passar o que levei anos para aperfeiçoar em apenas algumas semanas. Talvez seja por isso que isso te sufocou”, nessa hora Tsai se aproximou de Eunmi, que estava com o rosto profundamente tocado com as palavras de Tsai, “Mas você é muito boa. Você é a pessoa quem mais me orgulha, e eu tenho certeza absoluta que você vai ser a única que vai me superar um dia, dado a todo o progresso que você tem feito. Se eu fosse pra Coréia com você agora eu tenho certeza que, com o treinamento que você já passou, você tiraria tudo lá de letra”.

“O quê? Então porque a gente não vai agora?”, perguntou Eunmi, emocionada com tudo o que Tsai dizia.

“Talvez você esteja em noventa porcento do seu treinamento. Falta muito pouco pra você estar cem porcento. Questão de dias para finalizar seu treinamento”, disse Tsai, dando mais um sorriso gentil, “Uma colheita só vai resultar nos melhores frutos quando forem colhidos na hora certa. Nessas semanas que você passou aqui nós capinamos o terrenos, adubamos, regamos, esperamos germinar, crescer, e em poucos dias a colheita será farta. Não desista agora, Eunmi. Daqui a pouco você vai estar completa. E vai ser uma das coisas que eu mais terei orgulho de dizer que ajudei a transformar de uma menina que mal sabia pegar numa arma, em uma soldado com inteligência, habilidade e equivalência de um exército de dezenas de homens!”.

Eunmi ao ouvir ficou parada, com uma feição emocionada, olhando pra baixo. Seus olhos ficaram vermelhos, cheios de lágrimas, mas ainda assim ela não derrubou uma lágrima. Parecia que um filme havia passado na sua mente, todo o esforço, tudo o que ela passou.

E nesse momento ela viu que valeu a pena.

Eunmi então olhou para Tsai, e, emocionada, sorriu de volta. E então as duas se abraçaram.

“Puxa! Me diga uma coisa, Chou: como não amar essa mulher?”, disse Schultz, sorrindo e surpreso com que acabara de ver.

“Vamos deixar as duas aí e vamos voltar pra cima. Hoje você conheceu um lado nobre da Gongzhu!”, disse Chou, se virando e subindo. Schultz subiu, parou, deu uma última olhada pras duas se abraçando e conversando, e seguiu Chou, subindo de volta.

Ao chegar no topo do aclive, bem perto da entrada da casa deles, viu Li conversando com um casal de chineses. O homem tinha um corpo atlético, mas sem muitos músculos. Era meio baixo, tinha 1,70m, e o cabelo estilo militar, bem baixo. Ele estava ao lado de uma mulher mais alta que ele, provavelmente com 1,80m, e com um porte físico maior. Talvez a primeira vista parecesse uma mulher um pouco gorda. Tinha o cabelo amarrado num coque com um palito, vestindo roupas leves de viagem e carregando uma pesada mochila nas costas.

“Schultz, mais dois pra lista!”, disse Li, apontando pra eles, “Esse é o casal Chen. Também fazem parte da nossa unidade”.

Schultz surpreso se aproximou deles, estendendo a mão.

“Oh, prazer! Sou Ludwig Schultz. Sou da Alemanha, vim junto da Eunmi, uma coreana, para vingar a morte do noivo dela lá na Coréia. Acabamos conhecendo a Tsai, e ficamos amigos”, disse Schultz, e os dois, simpáticos, apertaram sua mão, “Uau, você é grandona! E bem fortinha! A Li disse que vocês são o casal Chen, são casados?”.

O marido tomou a frente pra falar.

“Sim! Muito prazer, senhor Schultz”, disse o homem, virando seu ouvido direito, como se tentasse ouvir melhor, “Meu nome é Chen Jiekai. Nasci em Pequim, tenho 39 anos. Essa é a minha esposa”, ele terminou, apontando para a mulher grande do seu lado.

“Prazer em conhece-lo, eu sou Ho Angmeng”, disse a mulher, fazendo uma reverência, “Também sou natural de Pequim, tenho 36 anos. Conto com o senhor, tenho certeza que nos daremos muito bem com sua ajuda e seus preciosos conhecimentos”.

“Ah, nada, que isso! Gentileza sua, vocês já são excelentes apenas vocês todos!”, disse Schultz, sem jeito, “Mas seu nome é bem bonito. Angmeng. É caractere ‘meng’ de ‘sonho’?”.

“Puxa, vejo que realmente aprendeu bem nossa língua! Sim, é o ‘meng’ de sonho, e ‘ang’ de valioso, caro”, disse Ho, explicando seu nome.

“Mas vocês são casados?”, perguntou Schultz, “Pensei que aqui na China o marido dava o sobrenome pra esposa, igual na Europa”.

“Meu esposo já foi casado. A gente meio que começou a morar juntos, então decidimos não mudar o sobrenome”, explicou Ho, “Somos bem moderninhos, mesmo pra essas bandas!”.

“E o pimpolho? Cadê o filhote?”, perguntou Li.

“Deixamos com a avó. Ele se dá bem com os meio irmãos, é bom criar uma boa convivência agora”, disse Ho.

“Filhos? Nossa, vocês são corajosos!”, disse Schultz para Chen. Ele parecia distraído e demorou pra perceber que estavam falando com ele.

“O quê? Desculpa, eu não ouvi”, disse Chen, virando o ouvido direito para Schultz. Nessa hora a esposa colocou a mão no ombro e olhou pro marido, balançando a cabeça positivamente, como se tomasse a frente na conversa pra explicar algo.

“Ah, senhor Schultz, meu marido é surdo do lado esquerdo, e tem pouca audição do lado direito”, disse Ho, gentilmente abraçando de lado seu marido, “Querido, pode levar nossas coisas para o quarto, por favor?”, e ao dizer isso, Chen pegou as bagagens e subiu para o casarão. Todos ficaram olhando enquanto ele subia para voltar pra conversa, “Sim, nós dois temos um filho juntos. Mas ele tem outros dois do primeiro casamento”.

“Ho? Minha nossa, porque raios vocês não responderam a carta que mandei?”, disse Tsai, subindo de volta e vendo sua amiga, “E o Chen? Prisioneiro de guerra? Conseguiu tirar ele da mão dos japoneses?”.

“Sim!”, disse Ho, “Que sufoco foi esse, você viu? Eles abusaram muito do meu esposo, e no dia que tiramos ele da prisão a sua carta chegou. Tínhamos que no mínimo vir aqui te agradecer”, nessa hora a feição de Ho ficou séria. Ela parecia estar prestes a mudar de assunto, “Ele disse que viu coisas terríveis. Parece que estão sumindo com diversos chineses. Não sei se estão colocando em campos de concentração, executando, ou sabe lá deus o quê. Ele só lembra que ouvia os japoneses se referindo aos chineses por um termo japonês que não tenho ideia do que significa”.

“Nossa. Lembra o que seu marido disse que chamavam ele?”, perguntou Tsai, prestando atenção, pois sabia falar japonês fluentemente.

“Marutá”, disse Ho. Tsai ficou por um tempo pensando, e desenho na mão com os dedos dois caracteres chineses.

“Marutá, marutá... Só consigo pensar em ‘tronco’. Tipo os de árvores”, disse Tsai, tentando entender o que talvez queriam dizer, “Não consigo ter ideia do que seja. Mas, enfim, o importante é que vocês chegaram. Vou subir lá para encontrar o Chen. Agora falta só o Huang e o time estará completo”.

“Gongzhu, espera, por favor, tem mais uma coisa”, disse Ho, e Tsai parou no meio da escada e se virou para ela, “Na vinda pra cá passamos na casa do Huang. E fomos avisados pelo pai dele, que mora ao lado da casa dele, que o Huang está desaparecido”.

Comentários

Postagens mais visitadas