Amber #92 - 위안부 (Wianbu)
12 de novembro de 1939
09h08
“Uau. Quando me falaram que o ‘estupro de Nanquim’ havia acontecido aqui, eu pensei que a cidade inteira estaria um caos. Mas até que ela está inteira”, disse Schultz, ao olhar ao seu redor. Já havia meia hora que haviam entrado na cidade, andando entre as pessoas, com os rostos escondidos sobre chapéus e roupas simples ocidentais, para não chamarem a atenção.
“Depois que Xangai caiu, Nanquim foi praticamente entregue de bandeja pro exército japonês, já que as duas cidades são bem próximas uma da outra”, explicou Tsai. Sua voz tinha um peso triste.
Nanquim parecia estar vivendo uma vida comum. O bairro comercial que eles caminhavam fervilhava de gente, todos andavam no meio das pessoas desviando para não trombarem com os moradores locais. Haviam soldados japoneses praticamente a cada esquina, e a língua japonesa se confundia com a língua chinesa nas bocas das pessoas. Parecia que a China estava caminhando para uma “japonização” em massa, mas ainda pareciam ser os primeiros passos da supressão cultural e de costumes chineses sendo substituídos pelos valores e organização social nipônica.
Tsai apontou para os dois entrarem num edifício que parecia uma galeria. Haviam algumas mesas em um átrio central, e ela apontou para que todos se sentassem ali ao redor. Tsai ficou na mesma mesa junto de Schultz, Li e Chou. Mas nas mesas vizinhas ficaram o resto das pessoas, e cada um cuidaria da segurança de todos ao mesmo tempo, de olho em tudo ao redor.
“Um veterano meu me contou coisas horríveis que aconteceram aqui”, disse Yamada, com um tom de voz encabulado, “Parece que amarraram um chinês pelos braços e pernas em dois postes, e uns 50 soldados fizeram fila com suas baionetas para empala-lo”, todos viraram o rosto para baixo, ou desviaram o olhar, como se imaginar aquela cena por si já fosse algo horrível. Tsai, no entanto, ficou ainda encarando Yamada ouvindo o resto da estória dele, que prosseguiu: “Esse veterano me contou que esse chinês não morreu tão rápido, pois as pessoas simplesmente não acertavam no ‘local certo’ dele. O pobre chinês gritava pedindo para irem logo, pois no meio de toda aquela dor ele só queria morrer logo”, ao dizer isso até Tsai baixou o rosto e levou sua mão na testa sem acreditar. Yamada então concluiu: “Esse meu veterano me disse que a baioneta o furava como se fosse tofu”.
“Por deus...”, disse Tsai, balançando a cabeça e tentando esquecer essa cena que surgiu na sua imaginação. Como os japoneses conseguiam ser tão cruéis? Como poderia haver tanta crueldade de um ser humano contra outro?
“Japoneses se colocam como membros de uma raça divina descendente dos deuses”, disse Ho, com total asco em sua fala ao se referir ao povo nipônico, “Já chineses estão abaixo dos porcos”.
Tsai estava abrindo um mapa de Nanquim que ela havia riscado com um círculo vermelho onde é a casa de Chou Xuefeng. Olhando para as placas ao redor ela tentava se guiar para saber onde mais ou menos estava. Schultz deu uma espiada no mapa, mas viu caracteres que não entendia no meio de caracteres chineses que entendia o sentido. Logo ele viu que Tsai já tinha em mãos um mapa em japonês de Nanquim.
“Sabe, eu não consigo ver como as pessoas podem ser tão cegas! Aquele imperador idiota seguindo aquele manual sem pé nem cabeça”, disse Yamada. Ao dizer ‘manual’, Li e Chou se viraram pra ele, enquanto Tsai e Schultz olhavam no mapa para se localizarem.
“Manual? É isso que você disse?”, perguntou Li.
“É. Se chama ‘Memorial de Tanaka’. É uma merda escrita por um barão japonês, como se fosse um manual pro imperador Hirohito para leva-lo direto à conquista mundial. A China é apenas o primeiro passo. O Japão quer dominar totalmente o Pacífico, chegando até a Austrália, de norte a sul. Sabe uma coisa que poderia para-los? A União Soviética. Mas parece que eles estão muito ocupados do outro lado brincando de dominar o mundo de mãos dadas com os nazistas”, disse Yamada, com muita indignação. Ele dizia com um tom profundo de desabafo, como se não aguentasse ver o que todos negavam querer enxergar no seu país.
Eunmi viu do outro lado, atrás de Schultz, uma casa no meio da galeria que não tinha cara de loja. Dois soldados e um homem saíram dessa construção. Eles estavam todos sorridentes, e era possível ver que estavam arfando, por conta do vapor que saía das suas respirações. Yamada continuava conversando com eles enquanto Tsai e Schultz estavam verificando o mapa na mesa. Eunmi não estava prestando atenção na conversa paralela deles, e tinha dificuldade em ver o que estava escrito na placa acima da edificação que ela viu aquelas três pessoas saindo.
“Chou, você consegue ver o que está escrito naquela placa perto da entrada de onde estão aqueles dois soldados japoneses?”, perguntou Eunmi para Chou, que estava mais perto e talvez teria uma visão melhor.
“Sim, consigo ver sim, espera aí...”, disse Chou, aguçando sua vista, “Wei... An... Fu, e não sei o quê do Império Japonês”.
Eunmi arregalou os olhos. Ficou em silêncio, quase que chocada. Não conseguia acreditar no que estava escrito na placa. Tsai, que estava debruçada sobre o mapa também ergueu a cabeça ao ouvir as palavras ditas por Chou. Schultz percebeu isso, mas não prestou atenção no que Chou havia dito, segundos antes, então não sabia exatamente do que estavam falando. Todos estavam tensos, mas Eunmi estava mais. Não imaginavam que encontrariam um local daqueles assim, no meio de Nanquim, em um centro comercial.
“Não, não me diga que você leu isso. É ‘wianbu’? ‘Wianbu’?”, disse Eunmi, elevando o tom de voz. Seus olhos estavam tomados pela indignação, ela não queria acreditar no que havia acabado de ouvir. Mas a expressão de todos os chineses era de raiva contida, olhando pros lados, desviando de Eunmi, que ficava repetindo: “Wianbu? Me diga!! Tsai!! Aquele é um edifício dedicado a isso?”.
“Ei, dá pra alguém me explicar o que tá acontecendo? Não tô entendendo nada, cacete!”, disse Schultz, ficando incomodado com a euforia de Eunmi.
Foi Tsai quem virou pra Eunmi e manteve seus olhos focados nela. Ninguém estava querendo dizer a verdade pra ela. E Schultz não conseguia entender nada do que todos falavam ali. Tsai viu que teria que ser ninguém menos que ela pra falar o que Eunmi menos queria ouvir.
“Sim, Eunmi. Em coreano é exatamente o que você tá pensando. É uma casa de wianbu”, disse Tsai, com pesar na sua voz. Eunmi nessa hora ficou completamente indignada. Se ergueu da mesa e colocou a mão na testa, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. Ela olhava pra todos os lados, caminhava de um lado para outro, e olhava com nojo para aqueles dois oficiais do exército e o homem que estava ao lado deles. Eunmi se separou do grupo, e Schultz se ergueu para ir atrás dela, mas Tsai colocou a mão no braço do alemão, o segurando, “Não, deixa ela ir. Ela precisa tomar um ar”.
“Eu realmente não estou entendendo o que tá acontecendo? O que é aquele lugar?”, perguntou Schultz, também quase perdendo a paciência.
“Em japonês falamos ‘ianfu’. Se traduz algo como ‘mulheres de conforto’”, disse Yamada, engolindo seco.
“Um prostíbulo? Qual é o problema? Todo lugar tem! Ela nunca viu um?”, perguntou Schultz, ainda tentando compreender.
“O termo ‘ianfu’ é um eufemismo japonês pra prostitutas, mas o que elas fazem lá é a última coisa que podemos chamar de prostituição”, disse Yamada, com uma expressão abalada, com vergonha de admitir que poderia existir um local como esse, “São escravas sexuais pro exército japonês. Chinesas capturadas que são constantemente mantidas nesses locais e sempre são estupradas e abusadas por oficiais japoneses. Mulheres, crianças, velhas, adolescentes. Não veem a luz do sol, pouca comida, vida inóspita. E sem contar que muitas são mortas e torturadas sem motivo, como se passar pelo resto das coisas não fosse humilhante e deteriorante o suficiente”.
“Minha nossa. Isso é... Inacreditável”, disse Schultz, se sentando na cadeira. Ele não sabia mais o que dizer. Entendeu enfim o porquê do silêncio dominando o clima depois da pergunta de Eunmi. Ao virar o rosto buscando a coreana, Schultz viu ela virando a esquina, a perdendo de vista. É verdade que qualquer pessoa ao saber que existia um local desses ficaria no mínimo desconsertado. Mas o jeito que Eunmi havia reagido era muito além do esperado. Com certeza havia alguma coisa.
Eunmi, por outro lado, estava inconsolável. Seus olhos derrubavam lágrimas e mais lágrimas enquanto ela andava na rua, dando a volta na esquina. Nem ela tinha noção mais do tempo. Muitas coisas passavam na sua cabeça, e as pessoas na rua ficavam surpresas ao ver aquela mulher que andava entre eles em prantos, esbarrando nas pessoas, como se fugisse de algo.
Foi aí que Eunmi acabou vendo do outro lado da rua os dois oficiais japoneses e o civil junto deles. Na hora que os reconheceu suas lágrimas começaram a secar. E aquela visão embaçada foi enfim se tornando mais e mais nítida. Ela queria ver quem eram aqueles resquícios de merda humana. Ela queria olhar nos olhos daqueles homens que faziam tão pouco de uma mulher, de um ser humano, que abusavam e estupravam pois se achavam no direito de fazer isso. Ela queria gravar na sua mente o rosto deles e prometia no fundo seu coração que iria atrás deles, e não desistiria até que os fizesse passar por coisas dez vezes pior do que haviam feito as pobres mulheres passarem naquele local. Primeiro viu o rosto do primeiro oficial, e depois o do segundo, guardando a feição. Mas quando viu o rosto do civil, não acreditou. Esfregou os olhos como se tentasse limpar os restos de lágrimas dos olhos para ver se conseguiria distingui-lo melhor, mas acabou confirmando o que suspeitava. Não adiantava de forma alguma tentar memorizar os rostos os japoneses do exército, pois o rosto do terceiro a deixou muito mais chocada do que ela poderia imaginar.
Era ninguém menos que seu primo, Jin-su.
Eunmi o reconheceu, mas era tarde, ele a havia visto. Ele cumprimentou os soldados e foi caminhando em direção de Eunmi, pedindo para ela esperar. Talvez esse seria o melhor momento para sair de lá, mas Eunmi estava tão em choque que não conseguia acreditar que era justamente ele.
“Eunmi-ya? Eunmi-ya?”, disse Jin-su enquanto se aproximava dela, “Minha nossa, não acredito! Você está viva?”.
Eunmi estava apoiada na parede, e viu a mão do seu primo ser colocada no seu ombro, e ficou encarando aquilo, aparentando que não estava prestando atenção no que ele dizia. Uma enxurrada de memórias apareceu na sua mente, e em destaque a lembrança do primeiro encontro com Tsai. A carroça, o chinês que as levou, a arma e o fato dele ter estar as buscando, como se quisesse matar ela e Schultz.
Obviamente toda a carona até Changsha na época foi arranjada justamente por Jin-su. Tudo subitamente fez sentido.
“O que quer dizer perguntando se estou viva?”, disse Eunmi, tirando a mão dele do seu ombro, “Estava esperando que eu estivesse morta, ou algo do gênero?”.
“Não diga uma coisa dessas, Eunmi-ya! Esse país está um caos! Quando não são os japoneses matando e torturando chineses, são o pessoal do Kuomintang querendo matar os comunistas. Sobreviver no meio dessa bagunça é uma vitória que celebramos todos os dias!”, disse Jin-su.
Eunmi tinha muitas perguntas. Mas estava tão chocada, que seu lado humano falou mais alto. Queria levar Jin-su para Tsai, mas esse não era o objetivo. Seu primo e o que ele fazia naquela casa das mulheres de conforto era algo particular que ela devia resolver. Ficou encarando Jin-su, querendo apontar o dedo pra ele e falar um monte, mas a coreana não conseguia. Apenas mantinha seus olhos cerrados olhando fixamente para seu primo, que vendo que ela não falaria nada, continuou conversando:
“Por onde você andou? Você parece mais forte, Eunmi-ya”, disse Jin-su, apertando com os dedos o braço dela, sentindo seus músculos, “O que você andou fazendo?”
“Não toca em mim”, disse Eunmi, puxando seu braço.
“Não me diga que você se juntou com aqueles chineses?”, perguntou Jin-su. Eunmi não respondeu nada, ficou calada ainda o encarando, e Jin-su interpretou isso como uma confirmação, “Eles devem ter feito uma lavagem cerebral em você, Eunmi! Me diga, onde eles estão? Vai, me diga!”.
“Não vou dizer nada, me deixa em paz!”, disse Eunmi, empurrando Jin-su, que tomou um susto ao ver a força da garota. Não era mais a frágil priminha de outrora.
“Eunmi-ya, me escuta!”, disse Jin-su, se colocando na frente dela. Eunmi virou o rosto, evitando seu olhar, mas o coreano era insistente, “Olha, não quero saber se você está envolvida em algum grupo ou algo do gênero. Não precisa me dizer nada sobre isso também, apenas me escuta”, nessa hora Eunmi virou o olhar pra ele, ainda na defensiva, tentando tirar ele da sua frente, “Olha, eu tenho uns contatos aí, uns japoneses vão nos conseguir uma nova vida no Japão! Vamos poder recomeçar lá, com um sobrenome japonês, e tudo mais! Vamos ter de volta nossa dignidade, Eunmi! Vamos deixar essa coisa ingrata que é ser coreano e vamos nos tornar cidadãos japoneses!”.
Aquilo deixou Eunmi profundamente ofendida. Era visível em seu rosto.
“Jin-su, como você ousa me propor uma coisa dessas? Eu tenho orgulho de quem eu sou! Eu não sou japonesa! Nós somos coreanos, um país milenar, com história, cultura, etnia, e um povo único que está nesse momento sofrendo na mão de japoneses! Você deveria ser a última pessoa a me propor uma insanidade dessas!”, disse Eunmi, indignada.
“Eunmi-ya, estou pensando em nossa sobrevivência! A gente tem é que sobreviver! Ser coreano nunca nos trouxe nada, exceto desgraça. Nossa língua, nossa história, nossa cultura, serão todos substituídos pela japonesa, e eu não pensaria duas vezes se isso significasse sobreviver!”, disse Jin-su, que começou a elevar a sua voz pra tentar ser ainda mais incisivo ao falar com Eunmi, “Pare de viver esse sonho, Eunmi! A Coréia nunca vai ser livre, vamos ficar pra sempre sob domínio japonês, quanto antes nos adaptarmos, mais longe conseguiremos sobreviver!”.
“Jamais, Jin-su! Eu prefiro morrer lutando para ter meu país de volta, sem domínio japonês, chinês, nem de ninguém, do que entregar e perder tudo o que significa pra mim, tudo o que amo, tudo o que me faz ser quem eu sou!”, disse Eunmi, dando um novo empurrão em Jin-su, e virando as costas pra ele, caminhando de volta pra onde estava Tsai e os outros.
“Eunmi. Essa sua escolha pode ter graves consequências. Você tem certeza que essa é a sua decisão final?”, perguntou Jin-su, num tom ameaçador.
Eunmi apenas virou o rosto e o encarou de lado. Seu rosto tinha um misto de raiva com tristeza. Não acreditava que uma pessoa poderia se vender por tão pouco. E menos ainda que seria alguém como seu primo, que ela tanto amou.
A guerra muda as pessoas. Não dá pra se negar que existiam muitas pessoas que tinham o mesmo pensamento de Jin-su. Pessoas com medo, pessoas com incerteza. Pessoas que trocariam o sonho de um futuro livre, para viver numa mentira enclausurada. Era assim que Eunmi via seu primo. Mas não havia nada que ela poderia fazer. Era a decisão dele. E ela trilharia sua verdade, não importasse as consequências disso.
------
21h28
“Ele acabou de entrar, Gongzhu”, disse Li, ao ver Chou Xuefeng entrando em sua casa.
O pelotão de Tsai invadiram uma casa abandonada na mesma quadra do local onde Chou Xuefeng morava. Durante o dia inteiro ficaram observando todos os movimentos do local: as vezes que Chou saía de casa, as pessoas que encontrava, o que era possível ver através do visor do rifle de Li do que ele fazia dentro de casa, tudo. Conforme adentravam na noite, menor o movimento era nas ruas. O clima estava propício para fazerem enfim o que haviam planejado.
“Gongzhu, os soldados que estavam fazendo ronda duas quadras daqui já foram embora. O arredor está limpo”, disse Ho, fazendo o relatório à Gongzhu.
“Ótimo. Acho que podemos seguir em frente e invadir”, disse Tsai, se voltando para todos, “Lembrem-se que o objetivo é que Chou fique vivo. Eu entrarei na casa com Schultz, e Chou. Eunmi quero que você vigie os fundos da casa, Ho e Chen ficam na parte da frente para nos dar apoio. Li, fique como batedora se olho em qualquer coisa. Yamada fica aqui dando suporte a ela. Não hesite em abater se acreditar que é uma ameaça”.
Todos confirmaram, até que com uma certa euforia. A captura de Chou Xuefeng seria rápida e fácil.
Pelo menos era isso que todos imaginavam...
09h08
“Uau. Quando me falaram que o ‘estupro de Nanquim’ havia acontecido aqui, eu pensei que a cidade inteira estaria um caos. Mas até que ela está inteira”, disse Schultz, ao olhar ao seu redor. Já havia meia hora que haviam entrado na cidade, andando entre as pessoas, com os rostos escondidos sobre chapéus e roupas simples ocidentais, para não chamarem a atenção.
“Depois que Xangai caiu, Nanquim foi praticamente entregue de bandeja pro exército japonês, já que as duas cidades são bem próximas uma da outra”, explicou Tsai. Sua voz tinha um peso triste.
Nanquim parecia estar vivendo uma vida comum. O bairro comercial que eles caminhavam fervilhava de gente, todos andavam no meio das pessoas desviando para não trombarem com os moradores locais. Haviam soldados japoneses praticamente a cada esquina, e a língua japonesa se confundia com a língua chinesa nas bocas das pessoas. Parecia que a China estava caminhando para uma “japonização” em massa, mas ainda pareciam ser os primeiros passos da supressão cultural e de costumes chineses sendo substituídos pelos valores e organização social nipônica.
Tsai apontou para os dois entrarem num edifício que parecia uma galeria. Haviam algumas mesas em um átrio central, e ela apontou para que todos se sentassem ali ao redor. Tsai ficou na mesma mesa junto de Schultz, Li e Chou. Mas nas mesas vizinhas ficaram o resto das pessoas, e cada um cuidaria da segurança de todos ao mesmo tempo, de olho em tudo ao redor.
“Um veterano meu me contou coisas horríveis que aconteceram aqui”, disse Yamada, com um tom de voz encabulado, “Parece que amarraram um chinês pelos braços e pernas em dois postes, e uns 50 soldados fizeram fila com suas baionetas para empala-lo”, todos viraram o rosto para baixo, ou desviaram o olhar, como se imaginar aquela cena por si já fosse algo horrível. Tsai, no entanto, ficou ainda encarando Yamada ouvindo o resto da estória dele, que prosseguiu: “Esse veterano me contou que esse chinês não morreu tão rápido, pois as pessoas simplesmente não acertavam no ‘local certo’ dele. O pobre chinês gritava pedindo para irem logo, pois no meio de toda aquela dor ele só queria morrer logo”, ao dizer isso até Tsai baixou o rosto e levou sua mão na testa sem acreditar. Yamada então concluiu: “Esse meu veterano me disse que a baioneta o furava como se fosse tofu”.
“Por deus...”, disse Tsai, balançando a cabeça e tentando esquecer essa cena que surgiu na sua imaginação. Como os japoneses conseguiam ser tão cruéis? Como poderia haver tanta crueldade de um ser humano contra outro?
“Japoneses se colocam como membros de uma raça divina descendente dos deuses”, disse Ho, com total asco em sua fala ao se referir ao povo nipônico, “Já chineses estão abaixo dos porcos”.
Tsai estava abrindo um mapa de Nanquim que ela havia riscado com um círculo vermelho onde é a casa de Chou Xuefeng. Olhando para as placas ao redor ela tentava se guiar para saber onde mais ou menos estava. Schultz deu uma espiada no mapa, mas viu caracteres que não entendia no meio de caracteres chineses que entendia o sentido. Logo ele viu que Tsai já tinha em mãos um mapa em japonês de Nanquim.
“Sabe, eu não consigo ver como as pessoas podem ser tão cegas! Aquele imperador idiota seguindo aquele manual sem pé nem cabeça”, disse Yamada. Ao dizer ‘manual’, Li e Chou se viraram pra ele, enquanto Tsai e Schultz olhavam no mapa para se localizarem.
“Manual? É isso que você disse?”, perguntou Li.
“É. Se chama ‘Memorial de Tanaka’. É uma merda escrita por um barão japonês, como se fosse um manual pro imperador Hirohito para leva-lo direto à conquista mundial. A China é apenas o primeiro passo. O Japão quer dominar totalmente o Pacífico, chegando até a Austrália, de norte a sul. Sabe uma coisa que poderia para-los? A União Soviética. Mas parece que eles estão muito ocupados do outro lado brincando de dominar o mundo de mãos dadas com os nazistas”, disse Yamada, com muita indignação. Ele dizia com um tom profundo de desabafo, como se não aguentasse ver o que todos negavam querer enxergar no seu país.
Eunmi viu do outro lado, atrás de Schultz, uma casa no meio da galeria que não tinha cara de loja. Dois soldados e um homem saíram dessa construção. Eles estavam todos sorridentes, e era possível ver que estavam arfando, por conta do vapor que saía das suas respirações. Yamada continuava conversando com eles enquanto Tsai e Schultz estavam verificando o mapa na mesa. Eunmi não estava prestando atenção na conversa paralela deles, e tinha dificuldade em ver o que estava escrito na placa acima da edificação que ela viu aquelas três pessoas saindo.
“Chou, você consegue ver o que está escrito naquela placa perto da entrada de onde estão aqueles dois soldados japoneses?”, perguntou Eunmi para Chou, que estava mais perto e talvez teria uma visão melhor.
“Sim, consigo ver sim, espera aí...”, disse Chou, aguçando sua vista, “Wei... An... Fu, e não sei o quê do Império Japonês”.
Eunmi arregalou os olhos. Ficou em silêncio, quase que chocada. Não conseguia acreditar no que estava escrito na placa. Tsai, que estava debruçada sobre o mapa também ergueu a cabeça ao ouvir as palavras ditas por Chou. Schultz percebeu isso, mas não prestou atenção no que Chou havia dito, segundos antes, então não sabia exatamente do que estavam falando. Todos estavam tensos, mas Eunmi estava mais. Não imaginavam que encontrariam um local daqueles assim, no meio de Nanquim, em um centro comercial.
“Não, não me diga que você leu isso. É ‘wianbu’? ‘Wianbu’?”, disse Eunmi, elevando o tom de voz. Seus olhos estavam tomados pela indignação, ela não queria acreditar no que havia acabado de ouvir. Mas a expressão de todos os chineses era de raiva contida, olhando pros lados, desviando de Eunmi, que ficava repetindo: “Wianbu? Me diga!! Tsai!! Aquele é um edifício dedicado a isso?”.
“Ei, dá pra alguém me explicar o que tá acontecendo? Não tô entendendo nada, cacete!”, disse Schultz, ficando incomodado com a euforia de Eunmi.
Foi Tsai quem virou pra Eunmi e manteve seus olhos focados nela. Ninguém estava querendo dizer a verdade pra ela. E Schultz não conseguia entender nada do que todos falavam ali. Tsai viu que teria que ser ninguém menos que ela pra falar o que Eunmi menos queria ouvir.
“Sim, Eunmi. Em coreano é exatamente o que você tá pensando. É uma casa de wianbu”, disse Tsai, com pesar na sua voz. Eunmi nessa hora ficou completamente indignada. Se ergueu da mesa e colocou a mão na testa, enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas. Ela olhava pra todos os lados, caminhava de um lado para outro, e olhava com nojo para aqueles dois oficiais do exército e o homem que estava ao lado deles. Eunmi se separou do grupo, e Schultz se ergueu para ir atrás dela, mas Tsai colocou a mão no braço do alemão, o segurando, “Não, deixa ela ir. Ela precisa tomar um ar”.
“Eu realmente não estou entendendo o que tá acontecendo? O que é aquele lugar?”, perguntou Schultz, também quase perdendo a paciência.
“Em japonês falamos ‘ianfu’. Se traduz algo como ‘mulheres de conforto’”, disse Yamada, engolindo seco.
“Um prostíbulo? Qual é o problema? Todo lugar tem! Ela nunca viu um?”, perguntou Schultz, ainda tentando compreender.
“O termo ‘ianfu’ é um eufemismo japonês pra prostitutas, mas o que elas fazem lá é a última coisa que podemos chamar de prostituição”, disse Yamada, com uma expressão abalada, com vergonha de admitir que poderia existir um local como esse, “São escravas sexuais pro exército japonês. Chinesas capturadas que são constantemente mantidas nesses locais e sempre são estupradas e abusadas por oficiais japoneses. Mulheres, crianças, velhas, adolescentes. Não veem a luz do sol, pouca comida, vida inóspita. E sem contar que muitas são mortas e torturadas sem motivo, como se passar pelo resto das coisas não fosse humilhante e deteriorante o suficiente”.
“Minha nossa. Isso é... Inacreditável”, disse Schultz, se sentando na cadeira. Ele não sabia mais o que dizer. Entendeu enfim o porquê do silêncio dominando o clima depois da pergunta de Eunmi. Ao virar o rosto buscando a coreana, Schultz viu ela virando a esquina, a perdendo de vista. É verdade que qualquer pessoa ao saber que existia um local desses ficaria no mínimo desconsertado. Mas o jeito que Eunmi havia reagido era muito além do esperado. Com certeza havia alguma coisa.
Eunmi, por outro lado, estava inconsolável. Seus olhos derrubavam lágrimas e mais lágrimas enquanto ela andava na rua, dando a volta na esquina. Nem ela tinha noção mais do tempo. Muitas coisas passavam na sua cabeça, e as pessoas na rua ficavam surpresas ao ver aquela mulher que andava entre eles em prantos, esbarrando nas pessoas, como se fugisse de algo.
Foi aí que Eunmi acabou vendo do outro lado da rua os dois oficiais japoneses e o civil junto deles. Na hora que os reconheceu suas lágrimas começaram a secar. E aquela visão embaçada foi enfim se tornando mais e mais nítida. Ela queria ver quem eram aqueles resquícios de merda humana. Ela queria olhar nos olhos daqueles homens que faziam tão pouco de uma mulher, de um ser humano, que abusavam e estupravam pois se achavam no direito de fazer isso. Ela queria gravar na sua mente o rosto deles e prometia no fundo seu coração que iria atrás deles, e não desistiria até que os fizesse passar por coisas dez vezes pior do que haviam feito as pobres mulheres passarem naquele local. Primeiro viu o rosto do primeiro oficial, e depois o do segundo, guardando a feição. Mas quando viu o rosto do civil, não acreditou. Esfregou os olhos como se tentasse limpar os restos de lágrimas dos olhos para ver se conseguiria distingui-lo melhor, mas acabou confirmando o que suspeitava. Não adiantava de forma alguma tentar memorizar os rostos os japoneses do exército, pois o rosto do terceiro a deixou muito mais chocada do que ela poderia imaginar.
Era ninguém menos que seu primo, Jin-su.
Eunmi o reconheceu, mas era tarde, ele a havia visto. Ele cumprimentou os soldados e foi caminhando em direção de Eunmi, pedindo para ela esperar. Talvez esse seria o melhor momento para sair de lá, mas Eunmi estava tão em choque que não conseguia acreditar que era justamente ele.
“Eunmi-ya? Eunmi-ya?”, disse Jin-su enquanto se aproximava dela, “Minha nossa, não acredito! Você está viva?”.
Eunmi estava apoiada na parede, e viu a mão do seu primo ser colocada no seu ombro, e ficou encarando aquilo, aparentando que não estava prestando atenção no que ele dizia. Uma enxurrada de memórias apareceu na sua mente, e em destaque a lembrança do primeiro encontro com Tsai. A carroça, o chinês que as levou, a arma e o fato dele ter estar as buscando, como se quisesse matar ela e Schultz.
Obviamente toda a carona até Changsha na época foi arranjada justamente por Jin-su. Tudo subitamente fez sentido.
“O que quer dizer perguntando se estou viva?”, disse Eunmi, tirando a mão dele do seu ombro, “Estava esperando que eu estivesse morta, ou algo do gênero?”.
“Não diga uma coisa dessas, Eunmi-ya! Esse país está um caos! Quando não são os japoneses matando e torturando chineses, são o pessoal do Kuomintang querendo matar os comunistas. Sobreviver no meio dessa bagunça é uma vitória que celebramos todos os dias!”, disse Jin-su.
Eunmi tinha muitas perguntas. Mas estava tão chocada, que seu lado humano falou mais alto. Queria levar Jin-su para Tsai, mas esse não era o objetivo. Seu primo e o que ele fazia naquela casa das mulheres de conforto era algo particular que ela devia resolver. Ficou encarando Jin-su, querendo apontar o dedo pra ele e falar um monte, mas a coreana não conseguia. Apenas mantinha seus olhos cerrados olhando fixamente para seu primo, que vendo que ela não falaria nada, continuou conversando:
“Por onde você andou? Você parece mais forte, Eunmi-ya”, disse Jin-su, apertando com os dedos o braço dela, sentindo seus músculos, “O que você andou fazendo?”
“Não toca em mim”, disse Eunmi, puxando seu braço.
“Não me diga que você se juntou com aqueles chineses?”, perguntou Jin-su. Eunmi não respondeu nada, ficou calada ainda o encarando, e Jin-su interpretou isso como uma confirmação, “Eles devem ter feito uma lavagem cerebral em você, Eunmi! Me diga, onde eles estão? Vai, me diga!”.
“Não vou dizer nada, me deixa em paz!”, disse Eunmi, empurrando Jin-su, que tomou um susto ao ver a força da garota. Não era mais a frágil priminha de outrora.
“Eunmi-ya, me escuta!”, disse Jin-su, se colocando na frente dela. Eunmi virou o rosto, evitando seu olhar, mas o coreano era insistente, “Olha, não quero saber se você está envolvida em algum grupo ou algo do gênero. Não precisa me dizer nada sobre isso também, apenas me escuta”, nessa hora Eunmi virou o olhar pra ele, ainda na defensiva, tentando tirar ele da sua frente, “Olha, eu tenho uns contatos aí, uns japoneses vão nos conseguir uma nova vida no Japão! Vamos poder recomeçar lá, com um sobrenome japonês, e tudo mais! Vamos ter de volta nossa dignidade, Eunmi! Vamos deixar essa coisa ingrata que é ser coreano e vamos nos tornar cidadãos japoneses!”.
Aquilo deixou Eunmi profundamente ofendida. Era visível em seu rosto.
“Jin-su, como você ousa me propor uma coisa dessas? Eu tenho orgulho de quem eu sou! Eu não sou japonesa! Nós somos coreanos, um país milenar, com história, cultura, etnia, e um povo único que está nesse momento sofrendo na mão de japoneses! Você deveria ser a última pessoa a me propor uma insanidade dessas!”, disse Eunmi, indignada.
“Eunmi-ya, estou pensando em nossa sobrevivência! A gente tem é que sobreviver! Ser coreano nunca nos trouxe nada, exceto desgraça. Nossa língua, nossa história, nossa cultura, serão todos substituídos pela japonesa, e eu não pensaria duas vezes se isso significasse sobreviver!”, disse Jin-su, que começou a elevar a sua voz pra tentar ser ainda mais incisivo ao falar com Eunmi, “Pare de viver esse sonho, Eunmi! A Coréia nunca vai ser livre, vamos ficar pra sempre sob domínio japonês, quanto antes nos adaptarmos, mais longe conseguiremos sobreviver!”.
“Jamais, Jin-su! Eu prefiro morrer lutando para ter meu país de volta, sem domínio japonês, chinês, nem de ninguém, do que entregar e perder tudo o que significa pra mim, tudo o que amo, tudo o que me faz ser quem eu sou!”, disse Eunmi, dando um novo empurrão em Jin-su, e virando as costas pra ele, caminhando de volta pra onde estava Tsai e os outros.
“Eunmi. Essa sua escolha pode ter graves consequências. Você tem certeza que essa é a sua decisão final?”, perguntou Jin-su, num tom ameaçador.
Eunmi apenas virou o rosto e o encarou de lado. Seu rosto tinha um misto de raiva com tristeza. Não acreditava que uma pessoa poderia se vender por tão pouco. E menos ainda que seria alguém como seu primo, que ela tanto amou.
A guerra muda as pessoas. Não dá pra se negar que existiam muitas pessoas que tinham o mesmo pensamento de Jin-su. Pessoas com medo, pessoas com incerteza. Pessoas que trocariam o sonho de um futuro livre, para viver numa mentira enclausurada. Era assim que Eunmi via seu primo. Mas não havia nada que ela poderia fazer. Era a decisão dele. E ela trilharia sua verdade, não importasse as consequências disso.
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21h28
“Ele acabou de entrar, Gongzhu”, disse Li, ao ver Chou Xuefeng entrando em sua casa.
O pelotão de Tsai invadiram uma casa abandonada na mesma quadra do local onde Chou Xuefeng morava. Durante o dia inteiro ficaram observando todos os movimentos do local: as vezes que Chou saía de casa, as pessoas que encontrava, o que era possível ver através do visor do rifle de Li do que ele fazia dentro de casa, tudo. Conforme adentravam na noite, menor o movimento era nas ruas. O clima estava propício para fazerem enfim o que haviam planejado.
“Gongzhu, os soldados que estavam fazendo ronda duas quadras daqui já foram embora. O arredor está limpo”, disse Ho, fazendo o relatório à Gongzhu.
“Ótimo. Acho que podemos seguir em frente e invadir”, disse Tsai, se voltando para todos, “Lembrem-se que o objetivo é que Chou fique vivo. Eu entrarei na casa com Schultz, e Chou. Eunmi quero que você vigie os fundos da casa, Ho e Chen ficam na parte da frente para nos dar apoio. Li, fique como batedora se olho em qualquer coisa. Yamada fica aqui dando suporte a ela. Não hesite em abater se acreditar que é uma ameaça”.
Todos confirmaram, até que com uma certa euforia. A captura de Chou Xuefeng seria rápida e fácil.
Pelo menos era isso que todos imaginavam...
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