Amber #96 - O significado da coragem.
30 de novembro de 1939
15h10
Duas semanas se passaram. Schultz tinha comprado um pouco de macarrão e alguns legumes, artigos simples, porém raros em períodos de guerra. Especialmente na China, um país tão grande, que já naquela época sofria para dar de comer para tantos habitantes. Aquele macarrão seria a janta daquele dia. Especialmente para Li, que já estava praticamente pronta para voltar à ativa.
Ao chegar na porta, Schultz viu duas campainhas em forma de botões circulares. Era uma forma de apenas as pessoas que eram permitidas entrarem na casa. Se fosse alguém de fora, algum soldado japonês em sua ronda, provavelmente tocaria apenas uma vez e iria embora. Ninguém atenderia e a casa pareceria vazia. Schultz olhou para os dois lados e começou a digitar: --. --- -. --. --.. .... ..-
“Puxa, que demora! Entra logo!”, disse Li, ao abrir a porta para Schultz entrar.
“Ei, eu trouxe seu macarrão favorito!”, disse Schultz erguendo o embrulho, e entrando na casa, “Sabe se tem alguma informação sobre o Jin-su?”.
“Nada que a Gongzhu tenha nos falado. Ela está lá em cima conversando com alguns espiões do Kuomintang”, disse Li, que antes de prosseguir, se aproximou do ouvido de Schultz, pois iria dizer algo baixinho para ele, “Seria bem pior se dependessem de espiões comunistas. Eles mal tem o que comer! E se vestem só com trapos. E ainda dizem que vão conquistar esse país... Ah, como eu detesto esses idiotas!”.
Mas nessa hora a porta do corredor se abriu na frente da Li, que levou um susto ao perceber. Dois homens chineses, já um pouco grisalhos, saíram da sala.
“É bom ver que a senhorita Li está bem”, disse um dos homens, sorrindo ao encontrar Li, “Pode deixar que não contarei pro seu pai”. Depois de dizer isso o homem acenou com cabeça para Li, que estava vermelha de vergonha da cabeça aos pés.
“Senhor Hsieh! Não acredito! O que o senhor está fazendo aqui?”, perguntou Li.
“Vim trazer notícias do homem que me mandaram buscar. Choi Jin-su, certo?”, disse o senhor Hsieh, indo até a saída, acompanhado pelo outro chinês. Nesse momento Tsai saiu da sala que estava reunida com os dois e os acompanhou até a saída, “Mas acho melhor vocês ouvirem da própria Gongzhu”.
“Entendi. De qualquer forma foi bom revê-lo, senhor Hsieh. Volte com cuidado!”, disse Li, fazendo uma reverência. Schultz ficou apenas observando sem dizer nada, com um sorriso no rosto. Tsai os acompanhou até a saída e depois voltou até eles. Todos os outros membros do pelotão apareceram para ouvir, incluindo Eunmi e Yamada. Todos estavam curiosos para saber o progresso.
“Bom, infelizmente eles não acharam nada”, iniciou Tsai. A cara de frustração de todos foi instantânea, “Choi Jin-su, primo da Eunmi, simplesmente desapareceu do mapa. Nem mesmo registros japoneses contém algo sobre um coreano chamado assim. Nada, o que dificulta as coisas ainda mais para a gente”.
Todos estavam com os olhares tristes. Olhando para baixo, negando com a cabeça. Exceto Schultz que continuava com o ar esperançoso.
“Não acredito! Já se passaram semanas, Tsai! Eles nem passaram a possibilidade de algo, ou algum detalhe que poderíamos investigar por conta própria? Deve haver um jeito!”, perguntou Schultz, esperando uma resposta da Gongzhu.
A questão é que estranhamente Tsai não estava triste, ou sem esperanças. Ela também não estava sorrindo, mas estava com uma expressão lúcida e clara, como se tivesse ainda algo a dizer.
“Que bom que você tocou nisso, Schultz. Existe uma possibilidade que eles levantaram nessa reunião comigo, e acho que podemos ir a fundo para saber onde raios Jin-su se meteu. Achar Jin-su vai nos levar direto para onde está Chou Xuefeng, então é crucial o encontrarmos vivo”, disse Tsai, e a reação de todos mudou da água para o vinho: a frustração foi substituída por uma expressão de curiosidade no rosto de todos no momento em que ouviram Tsai, que prosseguiu: “Existe a chance de que Jin-su mudou de nome. E é bem possível que seja um nome japonês”.
“Verdade! Ele disse que estava mesmo indo morar no Japão! Mas para se tornar um cidadão japonês pleno, talvez seria necessário uma naturalização. E, se possível, que incluísse também mudança de nome!”, disse Eunmi.
“Bom, tudo bem, mas precisaríamos de alguém lá de dentro para isso”, disse Li, mas na hora que ela terminou de dizer isso viu que Yamada estava do seu lado, e nessa mesma hora seu olhar se pousou sobre o japonês, “E temos alguém aqui perfeito para essa missão!”.
“E-eu?!”, exclamou Yamada, gaguejando, “Mas isso significa que eu terei que voltar a prestar serviços para o exército imperial!”.
“Yamada, é um custo que temos que pagar. Você não pode voltar lá e depois vir com a gente. Isso é deserção. Nesse momento você, embora não perceba, está sob nosso ‘poder’”, disse Tsai, entendendo o que se passava na cabeça do japonês, “Precisamos desse favor seu. Talvez num futuro pode ser que encontremos você de novo, e espero que não seja como ‘inimigo’. Será que pode nos ajudar uma última vez?”.
Yamada ficou cabisbaixo. Apesar de estar em poder de chineses, todas aquelas pessoas nesse curto espaço de tempo lhe ensinaram diversas coisas que jamais ele teria aprendido nas duras e vexatórias penas que sofria no exército imperial japonês. Se apresentar de volta ao quartel poderia ajuda-los a ter acesso a documentos que mostrariam o paradeiro de Jin-su, isso seria uma grande forma de agradecer pelo tanto que fizeram por ele até agora. Não havia dúvidas do que fazer. Apenas o correto era a opção.
“Tudo bem! Eu aceito a missão, Hime-samá”, disse Yamada, se referindo à Gongzhu usando o termo japonês para ‘princesa’, “Me apresentarei de volta ao quartel e colocarei um de vocês lá dentro para acharmos Jin-su, e se ele mudou realmente para um nome japonês”.
“Sim. Talvez deva ter fichas, com fotos, ou qualquer outro tipo de informação útil”, disse Tsai.
“E quem vai com o Yamada?”, perguntou Ho.
“Boa pergunta. Acho que pode ser eu”, disse Chou, se candidatando. Nesse momento ela se virou para a Gongzhu, e percebeu que ela não estava olhando para ela, “Se a Gongzhu, claro, permitir”. Mas nessa hora Chou se virou para ver quem Tsai estava olhando, e percebeu que os olhos da Gongzhu estavam sobre Eunmi.
“Hã? Por que você tá me encarando, Tsai?”, perguntou Eunmi.
“Me desculpa, Chou. Mas acho que a melhor pessoa para essa missão é a Eunmi. Ela conhece o Jin-su, e vai saber melhor do que ninguém distingui-lo no meio de tanta gente. Afinal ninguém aqui o viu, exceto o Schultz”, disse Tsai, se voltando para o alemão. Ao ouvir seu nome ele sorriu.
“É, mas eu não serviria pra isso não! Eunmi é a pessoa ideal. Além disso, vai ser uma grande forma dela colocar em prática toda a habilidade dela! Só precisamos achar um disfarce! Fazer ela parecer homem vai ser bem difícil”, brincou Schultz, dando uma piscadela para a coreana.
“Posso conseguir um traje japonês no quartel sem problema. Eunmi tem o cabelo curto, vai dar pra esconder sob o quepe militar. Vamos dar um jeito!”, disse Yamada, empolgado.
“Certo. Yamada, então amanhã você vai se apresentar ao quartel de volta. Você pode já dar uma olhada de encontra alguém no local com as características do Jin-su. Depois de amanhã marcaremos um local e pegaremos o traje da Eunmi e ela entrará no quartel contigo com a identidade que você providenciar”, explicou Tsai.
“É. Dessa vez vamos fazer isso dar certo”, disse Li, ao fundo, “Sem surpresas como da outra vez”.
“Sim, pode deixar. Obrigado por tudo mais uma vez, Hime-samá”, disse Yamada, fazendo uma reverência. De alguma forma aquilo era uma despedida também para ele.
------
1 de dezembro de 1939
8h01
O ponteiro havia acabado de dar a primeira volta desde que havia entrado nas oito horas. Eunmi conseguia ver o reflexo do seu rosto refletido no vidro do relógio. Por mais que fosse o mesmo rosto que ela já havia visto, era totalmente diferente do que ela estava acostumada.
“Muito bem, está pronta!”, disse Li, pegando um espelho, “Olha só! Você virou um hominho!”.
Eunmi tinha barba. Falsa, óbvio, e por um momento ficou coçando o nariz movendo o bigode, pois não imaginava que pelos faciais coçavam tanto.
“Nossa, isso incomoda assim? Isso coça muito!”, perguntou Eunmi para Schultz.
“É, barba coça sim. Especialmente no pescoço, ou se um fio do bigode entra no nariz. No saco também, ás vezes um pelo do saco entra no pinto e nossa, como isso coça!”, brincou Schultz, passando a mão na barba falsa de Eunmi.
“Ainda bem que não preciso andar com um pinto, então”, brincou Eunmi, se erguendo da cadeira. Yamada nesse momento entrou no quarto e tomou um susto. A coreana estava completamente diferente.
“Nossa, vocês conseguiram realmente estraga-la”, zombou Yamada ao ver Eunmi.
“Vou encarar isso como um elogio, japonês”, disse Eunmi dando um último retoque se vendo no espelho, “Não achou ninguém lá que batesse com a descrição do Jin-su no seu quartel, certo?”.
“Eu lembro do que você havia descrito sobre a aparência dele, sim. Cabelo alto e preto, com um topete jogado para trás. Olhos pequenos e apertados, rosto quadrado, pele morena, algumas rugas e 1,70m de altura”, disse Yamada, se recordando da orientação que havia recebido da coreana, dias atrás, “Algumas coisas até batiam, mas nem todas. Mas posso te mostrar mesmo assim para que você tenha certeza, por via das dúvidas”.
Nessa hora Tsai entrou no quarto. Todos fizeram uma reverência pra ela, e então ela iniciou:
“É apenas um cuidado. É bem pouco provável que Jin-su esteja no quartel disfarçado, mas pode ser uma possibilidade. Afinal, foi muito estranho aquele esquadrão ter nos atacado justo naquele momento. Talvez Jin-su esteja mais ligado com o exército imperial japonês do que imaginávamos. O objetivo é buscar alguma ficha, alguma coisa que fale do seu paradeiro para irmos atrás dele. Muito cuidado lá dentro, Eunmi. Mas ao mesmo tempo, confio muito em você e sei que você é capaz”.
Naquele momento o coração de Eunmi bateu mais forte. Ficou um pouco corada depois do elogio de Tsai. Ela nunca entendeu o que a Gongzhu via nela. A chinesa vivia dizendo que a havia treinado para que ela fosse como ela, mesmo a Tsai tendo um pelotão incrivelmente treinado e capaz de realizar feitos que desafiavam o impossível. Nesse momento ela enfim entendeu. Cada pessoa talvez fosse um membro com uma habilidade única, como uma parte de um corpo. Li, Chou, Ho, Chen, seriam como braços, pernas, coluna, torso, etc. Tsai seria o cérebro. E havia treinado Eunmi para que ela a sucedesse como o “cérebro” do grupo também. Alguém que conseguiria não apenas comandar, mas que conseguisse desempenhar qualquer outra função se necessário.
“Darei meu melhor, Gongzhu. Isso posso te garantir”, disse Eunmi, baixando a cabeça.
Já na porta, Tsai hesitou por um momento antes de abri-la. Yamada e Eunmi que estavam logo atrás dela não entenderam e ficaram de olhando, confusos.
“Yamada, talvez seja uma despedida, mas tenho que te falar uma coisa”, disse Tsai. Yamada nessa hora arregalou os olhos, assustado. Tsai então se virou, ficando de frente para os dois, “Talvez pessoas tenham definições do que é ‘coragem’ como ás vezes sendo algo muito simplório, uma definição muito vazia do que realmente significa”.
Yamada engoliu seco. Não sentia que estavam falando sobre ele.
“Sim. Mas acho que não conheço nenhum significado. Eu sou um grande covarde”, disse Yamada, desviando do olhar de Tsai, com um toque de frustração em sua fala.
“Eu não te acho nem um pouco covarde, japonês”, disse Tsai, com muita franqueza na sua voz. Yamada nessa momento voltou o olhar para ela, “Na verdade tem que ter se ter muita coragem para entrar debaixo do nariz do inimigo e fazer o que você está prestes a fazer”.
“Poxa, agora você tá me deixando nervoso. Será que é a melhor opção mesmo?”, disse Yamada, com uma pequena gota de suor frio deslizando pela testa.
“Não é errado ficar nervoso. Mas fico pensando no quanto você tem crescido desde que tem ficado com a gente. Vendo tudo o que somos, vendo as dificuldades que passamos, vendo que o nosso combustível é apenas um: companheirismo e amizade. Todos nós apoiamos a nós mesmos. Ninguém aqui ridiculariza ou rebaixa o outro. E mesmo tendo pessoas extremamente diferentes, todos estão focados no mesmo objetivo. E isso que é nossa diferença”, disse Tsai.
Todos os outros membros do pelotão estavam logo atrás, ouvindo todo o belo discurso de Tsai. Yamada é, junto de Eunmi, os mais novos do grupo. E embora aquilo tudo fosse uma despedida, era uma forma de fortalecer ainda mais o vínculo que havia sido feito. Tsai então prosseguiu:
“O que quero dizer é que pra uma pessoa que passou pelo péssimo, atrasado e inútil treinamento do exército japonês, em que te humilham, te fazem se sentir um lixo, xingam, entre outras coisas horríveis que baixam a autoestima, seria inevitável você se tornar quem você era”, ela fez uma pausa, para salientar o que havia acabado de dizer, “Sim, eu disse ‘quem você ERA’, pois essa pessoa parece estar no passado. Sempre acreditamos no seu potencial, e você pode ir ainda mais longe, Yamada. Acho que nos esforçamos para mostrar nosso poder como um grupo, sem negar o que existe de único em cada um. Por isso somos cinco que valem por cinquenta. E fico feliz em ver o quanto você tem evoluído desde que se juntou a nós nessa breve jornada”.
“Arigatô gozaimasu, Hime-samá. Juro que levarei pelo resto da minha vida tudo o que vivi aqui com vocês, nesse curto período de tempo”, disse Yamada, fazendo uma revência.
Tsai confirmou com a cabeça e deu um pequeno sorriso com os lábios. Se virou para a porta e abriu. Lá fora estava frio e ventava. Mas os raios de sol apareciam entre as nuvens, e pareciam iluminar o caminho até o destino. Até o quartel do Exército Imperial Japonês, que era possível enxergar numa parte alta de Nanquim.
“Vão em frente. Boa sorte. Qualquer coisa nos comunicaremos pelo comunicador”, disse Tsai, apontando para o ouvido. Yamada e Eunmi saíram e trocaram um olhar antes de prosseguir. Era agora, ou nunca!
15h10
Duas semanas se passaram. Schultz tinha comprado um pouco de macarrão e alguns legumes, artigos simples, porém raros em períodos de guerra. Especialmente na China, um país tão grande, que já naquela época sofria para dar de comer para tantos habitantes. Aquele macarrão seria a janta daquele dia. Especialmente para Li, que já estava praticamente pronta para voltar à ativa.
Ao chegar na porta, Schultz viu duas campainhas em forma de botões circulares. Era uma forma de apenas as pessoas que eram permitidas entrarem na casa. Se fosse alguém de fora, algum soldado japonês em sua ronda, provavelmente tocaria apenas uma vez e iria embora. Ninguém atenderia e a casa pareceria vazia. Schultz olhou para os dois lados e começou a digitar: --. --- -. --. --.. .... ..-
“Puxa, que demora! Entra logo!”, disse Li, ao abrir a porta para Schultz entrar.
“Ei, eu trouxe seu macarrão favorito!”, disse Schultz erguendo o embrulho, e entrando na casa, “Sabe se tem alguma informação sobre o Jin-su?”.
“Nada que a Gongzhu tenha nos falado. Ela está lá em cima conversando com alguns espiões do Kuomintang”, disse Li, que antes de prosseguir, se aproximou do ouvido de Schultz, pois iria dizer algo baixinho para ele, “Seria bem pior se dependessem de espiões comunistas. Eles mal tem o que comer! E se vestem só com trapos. E ainda dizem que vão conquistar esse país... Ah, como eu detesto esses idiotas!”.
Mas nessa hora a porta do corredor se abriu na frente da Li, que levou um susto ao perceber. Dois homens chineses, já um pouco grisalhos, saíram da sala.
“É bom ver que a senhorita Li está bem”, disse um dos homens, sorrindo ao encontrar Li, “Pode deixar que não contarei pro seu pai”. Depois de dizer isso o homem acenou com cabeça para Li, que estava vermelha de vergonha da cabeça aos pés.
“Senhor Hsieh! Não acredito! O que o senhor está fazendo aqui?”, perguntou Li.
“Vim trazer notícias do homem que me mandaram buscar. Choi Jin-su, certo?”, disse o senhor Hsieh, indo até a saída, acompanhado pelo outro chinês. Nesse momento Tsai saiu da sala que estava reunida com os dois e os acompanhou até a saída, “Mas acho melhor vocês ouvirem da própria Gongzhu”.
“Entendi. De qualquer forma foi bom revê-lo, senhor Hsieh. Volte com cuidado!”, disse Li, fazendo uma reverência. Schultz ficou apenas observando sem dizer nada, com um sorriso no rosto. Tsai os acompanhou até a saída e depois voltou até eles. Todos os outros membros do pelotão apareceram para ouvir, incluindo Eunmi e Yamada. Todos estavam curiosos para saber o progresso.
“Bom, infelizmente eles não acharam nada”, iniciou Tsai. A cara de frustração de todos foi instantânea, “Choi Jin-su, primo da Eunmi, simplesmente desapareceu do mapa. Nem mesmo registros japoneses contém algo sobre um coreano chamado assim. Nada, o que dificulta as coisas ainda mais para a gente”.
Todos estavam com os olhares tristes. Olhando para baixo, negando com a cabeça. Exceto Schultz que continuava com o ar esperançoso.
“Não acredito! Já se passaram semanas, Tsai! Eles nem passaram a possibilidade de algo, ou algum detalhe que poderíamos investigar por conta própria? Deve haver um jeito!”, perguntou Schultz, esperando uma resposta da Gongzhu.
A questão é que estranhamente Tsai não estava triste, ou sem esperanças. Ela também não estava sorrindo, mas estava com uma expressão lúcida e clara, como se tivesse ainda algo a dizer.
“Que bom que você tocou nisso, Schultz. Existe uma possibilidade que eles levantaram nessa reunião comigo, e acho que podemos ir a fundo para saber onde raios Jin-su se meteu. Achar Jin-su vai nos levar direto para onde está Chou Xuefeng, então é crucial o encontrarmos vivo”, disse Tsai, e a reação de todos mudou da água para o vinho: a frustração foi substituída por uma expressão de curiosidade no rosto de todos no momento em que ouviram Tsai, que prosseguiu: “Existe a chance de que Jin-su mudou de nome. E é bem possível que seja um nome japonês”.
“Verdade! Ele disse que estava mesmo indo morar no Japão! Mas para se tornar um cidadão japonês pleno, talvez seria necessário uma naturalização. E, se possível, que incluísse também mudança de nome!”, disse Eunmi.
“Bom, tudo bem, mas precisaríamos de alguém lá de dentro para isso”, disse Li, mas na hora que ela terminou de dizer isso viu que Yamada estava do seu lado, e nessa mesma hora seu olhar se pousou sobre o japonês, “E temos alguém aqui perfeito para essa missão!”.
“E-eu?!”, exclamou Yamada, gaguejando, “Mas isso significa que eu terei que voltar a prestar serviços para o exército imperial!”.
“Yamada, é um custo que temos que pagar. Você não pode voltar lá e depois vir com a gente. Isso é deserção. Nesse momento você, embora não perceba, está sob nosso ‘poder’”, disse Tsai, entendendo o que se passava na cabeça do japonês, “Precisamos desse favor seu. Talvez num futuro pode ser que encontremos você de novo, e espero que não seja como ‘inimigo’. Será que pode nos ajudar uma última vez?”.
Yamada ficou cabisbaixo. Apesar de estar em poder de chineses, todas aquelas pessoas nesse curto espaço de tempo lhe ensinaram diversas coisas que jamais ele teria aprendido nas duras e vexatórias penas que sofria no exército imperial japonês. Se apresentar de volta ao quartel poderia ajuda-los a ter acesso a documentos que mostrariam o paradeiro de Jin-su, isso seria uma grande forma de agradecer pelo tanto que fizeram por ele até agora. Não havia dúvidas do que fazer. Apenas o correto era a opção.
“Tudo bem! Eu aceito a missão, Hime-samá”, disse Yamada, se referindo à Gongzhu usando o termo japonês para ‘princesa’, “Me apresentarei de volta ao quartel e colocarei um de vocês lá dentro para acharmos Jin-su, e se ele mudou realmente para um nome japonês”.
“Sim. Talvez deva ter fichas, com fotos, ou qualquer outro tipo de informação útil”, disse Tsai.
“E quem vai com o Yamada?”, perguntou Ho.
“Boa pergunta. Acho que pode ser eu”, disse Chou, se candidatando. Nesse momento ela se virou para a Gongzhu, e percebeu que ela não estava olhando para ela, “Se a Gongzhu, claro, permitir”. Mas nessa hora Chou se virou para ver quem Tsai estava olhando, e percebeu que os olhos da Gongzhu estavam sobre Eunmi.
“Hã? Por que você tá me encarando, Tsai?”, perguntou Eunmi.
“Me desculpa, Chou. Mas acho que a melhor pessoa para essa missão é a Eunmi. Ela conhece o Jin-su, e vai saber melhor do que ninguém distingui-lo no meio de tanta gente. Afinal ninguém aqui o viu, exceto o Schultz”, disse Tsai, se voltando para o alemão. Ao ouvir seu nome ele sorriu.
“É, mas eu não serviria pra isso não! Eunmi é a pessoa ideal. Além disso, vai ser uma grande forma dela colocar em prática toda a habilidade dela! Só precisamos achar um disfarce! Fazer ela parecer homem vai ser bem difícil”, brincou Schultz, dando uma piscadela para a coreana.
“Posso conseguir um traje japonês no quartel sem problema. Eunmi tem o cabelo curto, vai dar pra esconder sob o quepe militar. Vamos dar um jeito!”, disse Yamada, empolgado.
“Certo. Yamada, então amanhã você vai se apresentar ao quartel de volta. Você pode já dar uma olhada de encontra alguém no local com as características do Jin-su. Depois de amanhã marcaremos um local e pegaremos o traje da Eunmi e ela entrará no quartel contigo com a identidade que você providenciar”, explicou Tsai.
“É. Dessa vez vamos fazer isso dar certo”, disse Li, ao fundo, “Sem surpresas como da outra vez”.
“Sim, pode deixar. Obrigado por tudo mais uma vez, Hime-samá”, disse Yamada, fazendo uma reverência. De alguma forma aquilo era uma despedida também para ele.
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1 de dezembro de 1939
8h01
O ponteiro havia acabado de dar a primeira volta desde que havia entrado nas oito horas. Eunmi conseguia ver o reflexo do seu rosto refletido no vidro do relógio. Por mais que fosse o mesmo rosto que ela já havia visto, era totalmente diferente do que ela estava acostumada.
“Muito bem, está pronta!”, disse Li, pegando um espelho, “Olha só! Você virou um hominho!”.
Eunmi tinha barba. Falsa, óbvio, e por um momento ficou coçando o nariz movendo o bigode, pois não imaginava que pelos faciais coçavam tanto.
“Nossa, isso incomoda assim? Isso coça muito!”, perguntou Eunmi para Schultz.
“É, barba coça sim. Especialmente no pescoço, ou se um fio do bigode entra no nariz. No saco também, ás vezes um pelo do saco entra no pinto e nossa, como isso coça!”, brincou Schultz, passando a mão na barba falsa de Eunmi.
“Ainda bem que não preciso andar com um pinto, então”, brincou Eunmi, se erguendo da cadeira. Yamada nesse momento entrou no quarto e tomou um susto. A coreana estava completamente diferente.
“Nossa, vocês conseguiram realmente estraga-la”, zombou Yamada ao ver Eunmi.
“Vou encarar isso como um elogio, japonês”, disse Eunmi dando um último retoque se vendo no espelho, “Não achou ninguém lá que batesse com a descrição do Jin-su no seu quartel, certo?”.
“Eu lembro do que você havia descrito sobre a aparência dele, sim. Cabelo alto e preto, com um topete jogado para trás. Olhos pequenos e apertados, rosto quadrado, pele morena, algumas rugas e 1,70m de altura”, disse Yamada, se recordando da orientação que havia recebido da coreana, dias atrás, “Algumas coisas até batiam, mas nem todas. Mas posso te mostrar mesmo assim para que você tenha certeza, por via das dúvidas”.
Nessa hora Tsai entrou no quarto. Todos fizeram uma reverência pra ela, e então ela iniciou:
“É apenas um cuidado. É bem pouco provável que Jin-su esteja no quartel disfarçado, mas pode ser uma possibilidade. Afinal, foi muito estranho aquele esquadrão ter nos atacado justo naquele momento. Talvez Jin-su esteja mais ligado com o exército imperial japonês do que imaginávamos. O objetivo é buscar alguma ficha, alguma coisa que fale do seu paradeiro para irmos atrás dele. Muito cuidado lá dentro, Eunmi. Mas ao mesmo tempo, confio muito em você e sei que você é capaz”.
Naquele momento o coração de Eunmi bateu mais forte. Ficou um pouco corada depois do elogio de Tsai. Ela nunca entendeu o que a Gongzhu via nela. A chinesa vivia dizendo que a havia treinado para que ela fosse como ela, mesmo a Tsai tendo um pelotão incrivelmente treinado e capaz de realizar feitos que desafiavam o impossível. Nesse momento ela enfim entendeu. Cada pessoa talvez fosse um membro com uma habilidade única, como uma parte de um corpo. Li, Chou, Ho, Chen, seriam como braços, pernas, coluna, torso, etc. Tsai seria o cérebro. E havia treinado Eunmi para que ela a sucedesse como o “cérebro” do grupo também. Alguém que conseguiria não apenas comandar, mas que conseguisse desempenhar qualquer outra função se necessário.
“Darei meu melhor, Gongzhu. Isso posso te garantir”, disse Eunmi, baixando a cabeça.
Já na porta, Tsai hesitou por um momento antes de abri-la. Yamada e Eunmi que estavam logo atrás dela não entenderam e ficaram de olhando, confusos.
“Yamada, talvez seja uma despedida, mas tenho que te falar uma coisa”, disse Tsai. Yamada nessa hora arregalou os olhos, assustado. Tsai então se virou, ficando de frente para os dois, “Talvez pessoas tenham definições do que é ‘coragem’ como ás vezes sendo algo muito simplório, uma definição muito vazia do que realmente significa”.
Yamada engoliu seco. Não sentia que estavam falando sobre ele.
“Sim. Mas acho que não conheço nenhum significado. Eu sou um grande covarde”, disse Yamada, desviando do olhar de Tsai, com um toque de frustração em sua fala.
“Eu não te acho nem um pouco covarde, japonês”, disse Tsai, com muita franqueza na sua voz. Yamada nessa momento voltou o olhar para ela, “Na verdade tem que ter se ter muita coragem para entrar debaixo do nariz do inimigo e fazer o que você está prestes a fazer”.
“Poxa, agora você tá me deixando nervoso. Será que é a melhor opção mesmo?”, disse Yamada, com uma pequena gota de suor frio deslizando pela testa.
“Não é errado ficar nervoso. Mas fico pensando no quanto você tem crescido desde que tem ficado com a gente. Vendo tudo o que somos, vendo as dificuldades que passamos, vendo que o nosso combustível é apenas um: companheirismo e amizade. Todos nós apoiamos a nós mesmos. Ninguém aqui ridiculariza ou rebaixa o outro. E mesmo tendo pessoas extremamente diferentes, todos estão focados no mesmo objetivo. E isso que é nossa diferença”, disse Tsai.
Todos os outros membros do pelotão estavam logo atrás, ouvindo todo o belo discurso de Tsai. Yamada é, junto de Eunmi, os mais novos do grupo. E embora aquilo tudo fosse uma despedida, era uma forma de fortalecer ainda mais o vínculo que havia sido feito. Tsai então prosseguiu:
“O que quero dizer é que pra uma pessoa que passou pelo péssimo, atrasado e inútil treinamento do exército japonês, em que te humilham, te fazem se sentir um lixo, xingam, entre outras coisas horríveis que baixam a autoestima, seria inevitável você se tornar quem você era”, ela fez uma pausa, para salientar o que havia acabado de dizer, “Sim, eu disse ‘quem você ERA’, pois essa pessoa parece estar no passado. Sempre acreditamos no seu potencial, e você pode ir ainda mais longe, Yamada. Acho que nos esforçamos para mostrar nosso poder como um grupo, sem negar o que existe de único em cada um. Por isso somos cinco que valem por cinquenta. E fico feliz em ver o quanto você tem evoluído desde que se juntou a nós nessa breve jornada”.
“Arigatô gozaimasu, Hime-samá. Juro que levarei pelo resto da minha vida tudo o que vivi aqui com vocês, nesse curto período de tempo”, disse Yamada, fazendo uma revência.
Tsai confirmou com a cabeça e deu um pequeno sorriso com os lábios. Se virou para a porta e abriu. Lá fora estava frio e ventava. Mas os raios de sol apareciam entre as nuvens, e pareciam iluminar o caminho até o destino. Até o quartel do Exército Imperial Japonês, que era possível enxergar numa parte alta de Nanquim.
“Vão em frente. Boa sorte. Qualquer coisa nos comunicaremos pelo comunicador”, disse Tsai, apontando para o ouvido. Yamada e Eunmi saíram e trocaram um olhar antes de prosseguir. Era agora, ou nunca!
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