Livros 2022 #29 - Torto Arado (2019)
Eu já estava há muito tempo curioso para conhecer essa obra. Enfim ficou disponível na biblioteca, e vou admitir: faz jus à fama, é uma obra magnífica. Itamar nos presenteou com uma obra rara como um diamante, que escancara a miséria, escravidão, injustiça, e óbvio, racismo. Uma obra para refletirmos o Brasil: da onde viemos, onde estamos, e para onde vamos.
No início fiquei um pouco com medo de ter muito palavreado regional ou rural, mas as palavras escolhidas não são tão complicadas, e mesmo que algumas eu não sabia de início, durante o livro descobri do que se tratavam. A escrita de Itamar é ao mesmo tempo fluída, e ao mesmo tempo muito realista. Difícil encontrar um autor que consegue fazer a história ir se abrindo durante as páginas dessa maneira contínua, e conseguir se apegar a detalhes ou detalhar acontecimentos de uma maneira tão perspicaz como ele consegue.
Uma outra coisa que queria destacar é o quão bem ele consegue construir as personagens femininas. Uma mulher escrever personagens masculinos é a coisa mais fácil do mundo, mas o inverso normalmente resulta em tragédias ridículas. Mas Belonísia e Bibiana são um dos poucos exemplos que encontro na literatura de um autor homem que consegue fazê-las com muito mais acertos do que erros. Homens quando escrevem personagens femininas caem fácil na superficialidade, e não vou negar que elas tem diversas passagens bem superficiais. No entanto, as pinceladas de profundidade do caráter delas são precisas.
Os temas que o livro aborda são excelentes também. Depois de anos pesquisando a região da Chapada Diamantina, e os quilombos e tradições locais, Itamar nos presenteia com conhecimentos que são únicos de lá. Um exemplo é o jarê: uma prática religiosa de matriz africana presente apenas ali. O jeito lindo em como Itamar descreve os rituais, a fé, a espiritualidade, são de um respeito e carinho inigualáveis.
O racismo é um tema tratado do começo ao fim, afinal a família inteira de Belonísia e Bibiana são de agricultores pobres e negros. Desses que trabalham na terra de algum latifundiário de domingo a domingo, tem direito a apenas uma pequena parcela de terra para subsistência, sem direito a uma casa de alvenaria, nem mesmo luz elétrica ou água encanada. Presos naquele mundo com trabalho escravo, além de tudo sofrem as duras penas por conta da cor de suas peles, sem direito a ascender socialmente, sempre subordinados ao dono da terra.
Bibiana e Belonísia se alternam na narração do livro. E um terceiro personagem é apresentado na última das três partes. O livro acompanha toda a trajetória de suas vidas de muito sofrimento e poucas vitórias. Ficamos chocados com o quão cruel a vida dessas pessoas pode ser, mostrando que o Brasil ainda deve muito aos membros dessa etnia que, historicamente, tanto construiu esse país com muito suor, sangue e lágrimas.
É muito difícil falar desse livro sem dar spoilers. E eu acho que para muitas pessoas pode tirar um pouco da graça saber o que acontece, mesmo logo no início, onde as duas crianças — Bibiana & Belonísia — encontram a lendária faca da vó Donana, toda prateada e com cabo de marfim, uma coisa que elas nunca tinham visto na igual. Elas colocam a faca na boca, mas levadas pela curiosidade e pressa de experimentar, um acidente acontece: Belonísia tem a língua arrancada pelo fio da faca, e Bibiana também sofre um corte na boca, mas se recupera.
Curioso que a faca aparece nas duas pontas do livro, no começo e no fim. A faca chique foi adquirida em um furto da avó, da época que ainda era jovem e trabalhava em uma fazenda. Ao invés de vendê-la por um preço alto, ela guardou em sua mala. Isso despertou curiosidade das netas. A avó se livra da faca, e ela é achada por Tobias, futuro marido de Belonísia (a muda), onde ela, até onde entendi, a usa para matar Salomão, o novo dono da fazenda, após o mesmo ter assassinado Severo, marido de Bibiana.
A primeira parte, Fio de corte, é narrada toda por Bibiana. Ali vemos como foi a difícil vida de toda a família em meio a toda a pobreza. Seu pai, Zeca Chapéu Grande e sua mãe, Salustiana, trabalhando de sol a sol, e ao mesmo tempo reservando um tempo para praticar sua fé através do jarê. As personagens que eu mais gostei foram as gêmeas Crispina & Crispiniana, com suas gravidezes sempre rendendo ótimos capítulos.
Ótimo ver a chegada do tio Servó em Água Negra, onde seu filho Severo começa a despertar sentimentos amorosos nas duas irmãs. Como uma delas não se comunicava, elas se uniram como unha e carne. Mas a vida estava batendo na porta de uma delas, e é justamente Belonísia quem primeiro tem um romance com Severo. No entanto, no final dessa primeira parte, é com Bibiana que Severo junta os trapos.
Nem mesmo uma escola a população de Água Negra tinha direito. E só conseguiram pois o prefeito tinha uma dívida por conta de um serviço espiritual que Zeca Chapéu Grande havia lhe oferecido. E o pouco dinheiro que conseguiam era graças a venda da massa de buriti na feira local. Vemos o sentimento de Bibiana crescendo por Severo, a gravidez, e o casamento por conseguinte.
A segunda parte, Torto Arado, é narrado por Belonísia. E começa na partida de Bibiana com Severo, onde a irmã muda se sente abandonada. Sozinha, passa por diversas dificuldades na escola. Mas logo chega junto da família de uma certa Maria Cabocla, um homem chamado Tobias, que pede a mão de Belonísia em casamento ao pai. Este, após consultar a vontade da filha, resolve dar o aval para a relação, e Belonísia vai viver com Tobias, um trabalhador rural alcoólatra, que vive em um local que parece um chiqueiro.
Não demora muito para que esse homem se torne alguém violento. E, vizinha dela, outro caso de violência doméstica, onde Maria Cabocla também é sempre espancada pelo marido, Aparecido. Não demora muito para que Tobias acabe sucumbindo e morrendo. E Belonísia começa a proteger Maria Cabocla do marido cheio de cólera, e a faca do início reaparece, e é usada como instrumento para ameaçar a vida de Aparecido, caso ele não deixe Maria Cabocla em paz. Como um belo de um covarde, ele sai com o rabo entre as pernas.
O pai, Zeca Chapéu Grande, começa a ver o final de sua caminhada chegar. Depois de ficar décadas trabalhando sem um descanso, isso tudo cobra seu preço. Por vários capítulos seguimos junto da dor de Belonísia ao ver o fim de seu pai se aproximando. E depois de sua partida, vários capítulos de flashback são apresentados contando a história do próprio Zeca, até como ele adquiriu sua espiritualidade.
Essa parte termina na morte de Severo. Ele estava se envolvendo com sindicatos e movimentos que queriam trazer direitos aqueles trabalhadores rurais. Isso não é bem visto pelos latifundiários, que acabam criando uma emboscada e matando-o. O crime é acobertado, e criam a mentira de que Severo estava envolvido com tráfico de drogas.
A terceira parte que conclui o livro, Rio de Sangue, é narrado por Santa Rita Pescadeira. Uma entidade que faz parte dos rituais do jaré. Vendo tudo por sua perspectiva espiritual, ela narra os acontecimentos derradeiros da obra.
Os novos donos da fazenda chegam, de Sutério é passada para Salomão, que logo se mostra um administrador rígido e ainda mais exigente. Bibiana resolve tomar o lugar do marido a lutar pelo direito dos trabalhadores. E isso, obviamente, é mal visto pelo dono da fazenda. Mas todos seguem firmes, até que a morte de Severo é vingada, e Salomão é encontrado morto.
Essa parte final é muito bonita, pois faz um paralelo com onças, os seres míticos do sertão. Parece que Belonísia meio que encarna o espírito do bicho, e caça Salomão, o matando na frente de uma vala aberta por erosão no chão. Como o próprio Salomão recebia ameaças de morte de todo o canto, o crime acaba não chegando a uma conclusão, e a esposa do dono da fazenda decide administrar a fazenda no lugar do marido — onde imaginamos, que ela não seja tão ruim quanto o predecessor.
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