Livros 2023 #2 - O morro dos ventos uivantes (1847)


O sentimento de revanchismo pode nos levar a plantar o mal em muitas pessoas. Querendo fazer justiça com nossas próprias mãos, ao pensar que estamos praticando o mal, acabamos sofrendo as consequências dele muito mais do que o nosso alvo. É beber o veneno esperando que o outro passe mal. Pode ser até que cause algum sofrimento ao outro, mas o desgosto que se planta na vida pode ser decisivo.

O morro dos ventos uivantes, obra da inglesa Emily Brontë, é uma das obras mais debatidas e discutidas da língua inglesa. Isso muito se dá pela capacidade ímpar da autora criar uma história com muitas camadas, onde ninguém é santo ou vilão. Ninguém no livro é flor que se cheire, assim como nós humanos, os personagens desse romance possuem falhas e virtudes. E quando a gente vê a obra se desenrolando como uma verdadeiro novelão ao longo das páginas, não é difícil criar admiração por tal autora.

O livro começa com a visita do senhor Lockwood, o novo inquilino da sua propriedade na Granja da Cruz dos Tordos, ao dono do local, conhecido apenas como Heathcliff. Este mora numa casa no Morro dos Ventos Uivantes. Depois de ser muito mal recebido, e, a muito custo, conseguir a chance de passar a noite naquele local longíquo, ele passa uma noite bem anormal ali. Ao ler um diário antigo que achou em seu dormitório, ele acaba sonhando com o fantasma de uma tal de Catherine, que implora para que possa entrar pela janela. Esse pesadelo o assusta, e ele acorda gritando.

Isso chama a atenção do dono do lugar, Heathcliff, que ao ouvir o relato do sonho mostra-se muito abalado. Lockwood deixa o local na manhã seguinte, acaba adoecendo, e já hospedado na outra propriedade, ouve a história da família pela testemunha ocular, Ellen Dean, a governanta. E então o livro começa em um mini flashback gigante, contado pela Ellen, mas compilado pelo Lockwood.

Nessa história descobrimos que a família que mora há gerações no Morro dos Ventos Uivantes, os Earnshaw, possuem uma trajetória no mínimo singular. O senhor Earnshaw, pai do casal Hindley e Catherine Earnshaw, traz de uma excursão a Liverpool, um menino órfão que estava abandonado, que mal parecia falar sua língua, mas que chamava a atenção por ter pele escura. Ele o batizou de Heathcliff.

E a chegada dessa criança cria altas confusões naquele lar! Ele é alvo de muito preconceito e menosprezo, mas a Catherine começa a desenvolver um sentimento pelo próprio — sentimento esse que deverá enfrentar duras penas em meio à sociedade da época.

Eu não sei se era costume da época, mas o livro é um pouco confuso. Falo especificamente dos nomes. Muitas vezes me pegava tentando olhar para a árvore genealógica que a editora Antofágica gentilmente ilustrou no começo da edição, para tentar me situar. Existem duas Catherines. E quatro Lintons. Isso sem contar os Earnshaws e Heathcliffs.

A tragédia é o que dita a história. É um livro que ilustra bem o conceito de "colhe-se o que se planta". Pessoas chegam a morrer de desgosto no livro, o que é muito chocante. E a passagem do tempo parece apenas enraizar as cicatrizes deixadas, é uma coisa muito doida. 

O universo é muito limitado, são apenas duas propriedades onde tudo acontece. E embora todo mundo, até a cantora Kate Bush, goste apenas de citar a relação entre Heathcliff e Catherine, eu achei muito mais interessante o enlace que acontece na segunda parte, que vou citar nos spoilers abaixo.

Algumas partes foram arrastadas, mas eu não conseguia deixar de ler. É um livro cheio de informação, e como já ouvi de muitos que resenharam essa obra, é um livro para se ler mais de uma vez. Em suma gostei, gostei muito. Mas exatamente por ter tantas interpretações ali escondidas, vou admitir que só consegui absorver ainda mais com a ajuda dos maravilhosos prefácios e posfácios da Antofágica. Isso sem contar os vídeos para se assistir antes & depois de ler, ambos apresentados pela incrível Sofia Nestrovski.

O livro chama a atenção nas relações muito bem construídas. E como ele é narrado pelo ponto de vista da Ellen, sua importância na história e seus sentimentos são também colocados em cheque. O jeito todo pomposo de descrever os sentimentos e o que se passa na cabeça das personagens é algo que a gente não cansa de ler. A gente entra na cabeça dos personagens, nisso o livro é muito rico.

E acho que a tradução da Stephanie Fernandes é primorosa, usando alguns termos antigos aqui e ali, muito em respeito ao texto original, mas com a adaptação na medida certa para a gente hoje em dia ler. E as ilustrações da Janaina Tokitaka são um deslumbre aos olhos, uma arte entre o abstrato e o figurativo, tão nebuloso e incerto como a própria trama que se passa no morro. 

SPOILERS ABAIXO!
Depois não diga que eu não avisei.

Heathcliff é um personagem muito complexo, pois ele está no livro do começo ao fim. Sua característica principal é a revolta. Li muitas opiniões interessantes sobre a possível origem disso — como sendo sua etnia, por ser negro, em um país que não permite a quem não seja branco e inglês ser aceito na sociedade — mas a impressão que tive é que, além desse percalço étnico óbvio, ele é muito maltratado do começo ao fim.

Muitas vezes me pegava pensando: "coitado, é compreensível que ele se tornou alguém tão azedo, olha como todos o tratam!", pois o Heathcliff não tem uma maldade inerente. Mas é justamente essa vontade de fazer justiça com as próprias mãos que o faz provar do próprio veneno. E então enquanto ele tenta ter sua revanche, devolvendo o mal que todos o direcionavam, ele acaba sofrendo as consequências de suas ações.

Esse amor da Catherine Earnshaw pelo Heathcliff é também cheio de sofrimento. Um misto de ódio com amor. Na minha interpretação isso era muito mais pelas condições do Heathcliff do que por qualquer outra coisa: entre um casamento com um pé rapado (Heathcliff) e uma pessoa com bens (Edgar Linton), ela fez a escolha lógica por esse último. A verdade é que isso lhe causava muita dor, pois ela não sentia amor por Edgar Linton, e sim pelo Heathcliff. E esse dilema constante a faz sofrer do começo ao fim, especialmente com o marido tentando de todas as formas lhe agradar, e o homem que ela mais amava sendo obrigado a viver distante da mesma.

Quando se fala em Morro dos Ventos Uivantes, a gente logo associa ao casal Catherine & Heathcliff. Mas eu achei igualmente interessante e complexo o romance da segunda geração, da Cathy Linton, filha da Catherine Linton (nascida Earnshaw) com o Edgar Linton.

Achei muito bacana o desenvolvimento dela com o Linton Heathcliff. Eles começaram super bem, parecia um negócio promissor. Mas o filho não contava com a dura criação do pai, o Heathcliff, e talvez isso o deixou tão azedo quanto seu progenitor. Fiquei triste pensando se teria sido diferente se a Isabella Linton estivesse viva, é triste perder a mãe assim sem nem mesmo ter tido a chance de conhecer.

Fiquei muito surpreso que no final da história a Cathy acaba ficando justamente com o Hareton! O garoto analfabeto, que tinha dificuldades em sociabilizar, até mesmo não chamava a atenção da própria Cathy, termina se mostrando o parceiro ideal para a mesma. Acho muito fofinho quando a Nelly vem contar como a relação aconteceu, como o amor surgiu entre eles.

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