Livros 2023 #17 - 1Q84: Livro 2 (2009)


Eu sou da teoria de que sempre o segundo de uma trilogia é o melhor. E não faltam evidências que suportam meu argumento: "O Império contra-ataca", "Donkey Kong Country 2", e "A menina que brincava com fogo" estão aí pra endossar o que digo. E não é diferente com a trilogia 1Q84 do Murakami: o segundo é realmente superior.

No entanto não dá pra negar que o segundo volume nada seria sem o primeiro servindo de escada. Gastar um livro para criar todo um ambiente para depois vir no segundo adicionando muita ação — sem a necessidade de apresentar todos os personagens, ou mostrar o meio onde a ação se desenrola — é uma fórmula bastante clichê, mas que é difícil errar.

Ao mesmo tempo o segundo volume responde vários dos mistérios do primeiro. Achei isso bastante ousado por parte do Murakami, pois isso o dá liberdade para focar em desenvolver a história. E quando dão essa liberdade pro Murakami, o livro cria diversas partes que prendem muito o leitor. Isso sem contar algumas partes que eu fui levado a prantos.

Eu sempre achei que 1Q84 foi um livro muito focado em ser um sucesso internacional. E digo isso pelas várias referências de conhecimento mundial: desde Sonny e Cher, até Faye Dunaway. Não que eu duvide que japoneses não conheçam, ou até admirem tanto quanto nós, ocidentais, mas senti falta de referências nipônicas, sabe? Como se o Tengo assistisse Doraemon quando criança, ou Aomame comentando o novo álbum da Miki Matsubara. Mas como eu disse, acho que foi escolha do Murakami usar essas referências internacionais para que o livro não ficasse algo muito nichado na cultura japonesa, ampliando o público.

Mas, contrariando isso que eu disse acima, o livro toca em outro assunto muito pertinente na sociedade japonesa: o suicídio. Isso mostra que não é algo atual essa preocupação, é algo que remonta ali dos anos oitenta (se não for mais antigo). E como o Murakami sabe desenvolver como ninguém os personagens, eu recomendo que prestem atenção nos motivos por detrás das decisões. Não tô dizendo que tal ato seja justificável, mas é tão bem estruturado que a gente no mínimo compreende.

A solidão é outro ponto bem mais explorado no segundo livro. Especialmente essa solidão das pessoas adultas, num tempo onde já perdemos contato com grande parte das pessoas que estudaram com a gente, no emprego só temos colegas, e a família se afastou (ou é ausente mesmo). Embora a solidão seja algo vivido por grande parte da humanidade, independente de que país seja, Murakami mostra como é ainda mais doloroso na sociedade japonesa — um país onde as pessoas são mais reservadas e frias, tendo talvez um ou dois amigos por toda a vida, isso quando eventualmente eles não partem dela, por exemplo. Isso explica o porquê de tanto sucesso de animes como One Piece, por exemplo, onde o foco é justamente na amizade. Uma coisa que talvez muitos japoneses sempre quiseram, mas que ainda é um desafio para muitos.

Mas ao mesmo tempo a obra fala do amor dentro da cultura nipônica. Eu tenho amigos japoneses (gente nascida lá no Japão mesmo), e já calhou de conversar com eles como funcionam os relacionamentos lá. Eu achava que, por exemplo, ainda existiam muitos casamentos arranjados. Mas me explicaram que isso hoje em dia não existe mais. No entanto isso não existir, não quer dizer que a maneira em que eles expressam o amor seja algo parecido do ocidente.

Existe lá uma valorização, como colocar num pedestal mesmo, o "amor puro da juventude". E até pelo que é mostrado na própria obra do Murakami, existe uma separação bem clara de "parceiros para sexo" e "parceiros para amor". Para algum ocidental desavisado, vai parecer forçado ou um amor idealizado e muito platônico, mas a pessoa tem que entender que é assim que funcionam relacionamentos por lá. Eu conheci uma japonesa, que trabalhava no consulado, há alguns anos. A gente até chegou a trocar contatos, até a chamei para sair, mas nunca deu em nada. Ela mesma disse que não estava afim de nada por estar prestes a voltar ao Japão. Alguns meses depois dela voltar para o Japão ela meio que achou um cara, casou, e hoje está com filho! Meio que do nada mesmo, não teve a coisa de conhecer direito, foi tudo bem rápido. 

Porém já ouvi também de outros amigos asiáticos que isso tudo é muito mais "como os asiáticos querem ser vistos" do que como realmente são. Já ouvi também eles comentando que relacionamentos amorosos são como aqui também, onde saímos com quem estamos interessados, rola beijo, sexo, e depois decidem se vão ficar juntos ou não. E que isso é o que acontece na vida real, não o que é mostrado nas séries, livros ou doramas. É uma idealização. 

E óbvio, não quer dizer que uma abordagem romântica seja melhor que a outra. O amor tem muitos encontros e desencontros nesse livro, eu que sou uma pessoa que adora um romantismo, achei muito fofinho!

Existem também coisas bem interessantes que o Murakami cria, desde o conto "Cidade dos Gatos" (e não, não é um conto alemão como é dito), uma coisa bem central nesse livro da trilogia, como algumas coisas que eu não vi referência alguma em outra obra, como os conceitos de "maza" e "dohta". 

Murakami é uma das minhas maiores inspirações. É para mim dos melhores autores que escrevem em terceira pessoa, e esse estilo eu aprecio muito. Ele não tem aquela mania de estadunidense de fazer aquelas descrições chatíssimas do cenário, e ao mesmo tempo não deixa a gente perdido sem entender onde o negócio todo se desenrola. O narrador é muito bom em fazer isso. É difícil achar o que criticar, talvez a passagem de tempo, eventualmente? A trilogia inteira se passa ao longo de oito meses, e exceto algumas pequenas referências ao clima aqui e ali, é meio irrelevante saber mais ou menos onde estamos no calendário de 1984.

Eu ouvi algumas críticas acerca do livro ser muito parado, mas pessoalmente não achei isso. Talvez houvesse um ou outro capítulo onde acontece aparentemente pouca coisa, mas mesmo esses capítulos se mostram úteis mais pra frente, pra mostrar exatamente que algo ali foi perdido. Acredito que muita gente que lê livros longos podem ter essas críticas de "coisas que poderiam ser cortadas", mas eu acho que é exatamente esse o diferencial que livros grandes conseguem explorar: essa passagem do tempo, nós lermos tanto os personagens que nos tornamos íntimos deles, sofrermos juntos enquanto lemos, para lá na frente nos emocionarmos e nos acabarmos em lágrimas. E isso a gente só acontece quando os personagens vão ganhando espaço em nossos corações, e isso só é possível nesses calhamaços.

E por fim, e não menos importante, foi excelente ler novamente junto da minha amiga, Leticia Oliveira. A gente foi mais ou menos na mesma velocidade, terminamos em mais ou menos dez fucking dias! E no meio tempo íamos trocando impressões, teorias, ou nem que fossem apenas partes que nos deixaram atônitos. Como eu disse em uma rede social: "É muito bem ler com um amigo. Melhor ainda é ler Murakami junto de alguém". Muito obrigado, Lê!!

SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei

Eu acho tão legal essa brincadeira com o sobrenatural que o Murakami faz! Eu sou uma pessoa religiosa, sou budista há quase quinze anos, então não tenho muita dificuldade em me inserir nesse contexto de "coisas que os olhos não podem ver". Me refiro aqui ao Povo Pequenino.

Enquanto eu lia todas as aparições do Povo Pequenino, me lembrava a crença japonesa que eles tem em kami. Kami são traduzidos como "deuses", mas é algo mais abrangente, que vão desde espíritos, entidades, até fenômenos da natureza. Isso foi muito difundido no xintoísmo, mas por conta do sincretismo religioso foram abraçadas pelo budismo japonês também. É através delas que japoneses agradecem às colheitas, pedem por proteção e cura, e estão presentes em diversos setores de sua cultura.

Nesse segundo livro, o Povo Pequenino tem um papel importante. No primeiro livro, além de apenas citados, eles só apareciam numa curta passagem (antes do desaparecimento da Tsubasa). O capítulo onde Aomame vai matar o líder da Sakigake, eu grifei muita coisa, pois ali ele dá um aulão de como funciona tudo. É bem mais aprofundado do que as explicações que o Professor Ebisuno dá para Tengo no primeiro livro.

Havia tanto Povo Pequenino que isso me lembrava de uma vez um camarada meu que dizia que acreditava em gnomos. E ele dizia que eles estavam sempre aparecendo para ele, e faziam traquinagens, e que conhecia pessoas que as viam também, e enfim. Eu tenho lá minha visão religiosa sobre isso, mas acho que não é o caso de expor aqui. Mas peguei a referência!

O dilema da Aomame em matar o líder é algo muito real. A gente obviamente começa o livro querendo matar, por ele ser um estuprador, e tudo mais. Mas aí ele conta essa história — que depois é também contada pelo ponto de vista da Fuka-eri — dos clones das meninas, as "dohta", criadas nas crisálidas de ar, sem essência ou espíritos humanos, que servem para que o líder ejacule dentro delas, e assim sirva de receptor para o Povo Pequenino. Parece bem difícil de se entender explicando, mas quando é contado no livro faz até que certo sentido. Então tecnicamente ele não estuprava as meninas, e sim as "cópias sem espírito" delas? Então não seria estupro? Cara, é muito doido. Deu nó na minha cabeça também.

Tanto que esse dilema passa na cabeça da Aomame também. Mas o que a move a matar o líder é proteger o Tengo. Se ela não matar o líder, os líderes da seita irão atrás de Tengo para que ele seja o novo observador (não sei como traduziram "perceiver"). Mas se se ela matar o líder, eles deixarão o Tengo atrás e virão atrás dela. Obviamente ela escolheu essa segunda opção. 

Teve, aliás, algo no Tengo que me chamou a atenção: é que desde o outro livro, claramente ele está no mundo real de 1984, pois existe apenas uma Lua. Mas nesse segundo ele finalmente passa para o mundo de 1Q84, depois que ele ejacula dentro da Fuka-eri. Essa cena é marcada quando ele olha pro céu e vê duas luas.

Existem duas mortes que destacam ainda mais a solidão dos protagonistas, a morte da Ayumi e desaparecimento de Kyoko, a melhor amiga da Aomame e a namorada mais velha do Tengo, respectivamente. Fiquei pensando em como talvez a presença de ambas fosse o que ainda impedisse o casal de se unir: embora ambas tenham um desfecho sombrio e brutal. Como se a perda da amizade repentina fosse o pontapé para que ambos (Aomame & Tengo) começassem a procurar um pelo outro.

A parte que mais me emocionou, sem dúvidas, foi quando a Aomame decide matar o líder para proteger o seu amor. Eu senti um misto de sentimentos naquele momento: o medo de ser caçada por toda a seita até ser morta, o carinho em querer proteger a pessoa que mais ama, e também a coragem de querer enfrentar tudo e todos para encontrá-lo a todo custo. Depois do desencontro no playground, aquela cena dela descendo a escada de emergência da rodovia para tentar se matar, é triste pra um caramba.

Tem um capítulo excelente onde a Aomame finalmente lê o livro da Fuka-eri, a Crisálida de Ar. E lá a tradução ficou bem curiosa, pois como a Fuka-eri não sabe o que é "capitalismo", nem como se escreve em caracteres chineses (資本主義, shihon shugi) a menina escreve em katakana (シホンシュギ, shihonshugi), que é um silabário, sem o significado que os kanjis possuem na leitura, onde para a pessoa entender tem que se ler meio que em voz alta e sacar que o tal "shihonshugi" tem o som da palavra "Shihon Shugi" de "capitalismo". Na versão em inglês eles adaptaram "capitalism" para "cap-i-tal-izum" pra mostrar justamente que nem escrever o treco ela sabia!

Um Murakami é sempre um Murakami. Não sei o porquê do Japão estar marcando tanta bobeira em não adaptar para uma série ou filme essa obra prima! Demorou pra filmarem, hein!

— Impressões que tive ao reler minha resenha de 2013:

Que resenha merda que escrevi, fala nada com nada. De facto o livro começa a responder algumas coisas do primeiro, mas agora que reli não achei tão chato. Tem uns dois capítulos ali meio encheção de linguiça, mas em suma achei bem movimentado. 

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