Livros 2024 #2 - Oração para desaparecer (2023)


A Paula não está pra brincadeira esse ano mesmo! Começar janeiro com clube do livro desse jeito não é pra qualquer um! Eu tava com saudade de ler um bom livro de autora brasileira, e eis que me deparo com Socorro Acioli, que já virei fã de carteirinha!

O livro conta a história de uma mulher que foi desenterrada viva em Portugal e não se lembra de quase nada. Nem mesmo o seu nome. A partir daí começa sua busca por respostas, já que não há dúvidas de que ela seja brasileira, por conta de seu sotaque. Mas o resto, é uma grande incógnita que ela vai encontrando respostas ao longo da obra.

Um romance com uma pitada generosa de fantasia, todo narrado em primeira pessoa, tem toda essa coisa fantástica misturada com realidade. Se passando tanto em Portugal, quanto no Brasil, tem uma história que tem potencial de ser no mínimo uma trilogia!

O jeito que ela conta a história nos prende muito. E para escrever fantasia assim para um público longe do infanto-juvenil e nos fazer querer ler mais e mais é uma tarefa para poucos. E Socorro Acioli é uma dessas poucas que conseguem. Conforme o mistério da brasileira em Portugal vai sendo respondido, vamos tentando em nossas cabeças juntar as pistas. Eu mesmo pensei numa coisa totalmente diferente, achei que ela tinha sido vítima de algum tipo de abuso sexual, mas me surpreendeu o desenrolar de tudo!

Saber revelar esse mistério aos poucos nos prende, mas não é apenas isso. A protagonista é muito bem construída, e em sua busca pela sua identidade ela vai juntando os resquícios de sua personalidade com a história dela própria conforme vai se descobrindo. Entendemos o quanto é doloroso esse vazio dentro dela, ao mesmo tempo que ela está numa situação extremamente vulnerável, onde ficamos com medo que o pior aconteça a qualquer momento.

Além do mistério, e do excelente desenvolvimento da protagonista, outro fator que faz com que a gente não consiga parar de ler é o plano de fundo do livro. A vantagem de escrever um romance com fantasia é fazer uma abordagem de temas sensíveis sem precisar recorrer tanto a algo verossímil. São nessas coisas fora da realidade que conseguimos material para justamente refletir sobre nossa própria realidade. E o tema delicado que é colocado na mesa é o colonialismo.

Durante a leitura lá no grupo do Whatsapp do clube, eu disse que achei bacana que o livro "mostrava a relação do Brasil com nosso papi", me referindo ao "papi" como Portugal. Mas aí minha grande amiga Juliana gentilmente puxou minha orelha sobre chamar Portugal de "papi" pois não foi assim que as coisas ocorreram. Que houve uma colonização extrativista, muita escravidão, genocídios, roubo de riquezas, e tudo mais. Que esse distanciamento tem que existir, e nisso ela está completamente certa.

E na busca da protagonista pela sua identidade, esbarramos nessa temática do colonialismo. Em como costumes, aparência, valores, fé, e outras diversas coisas de nossos povos originários foram desprezadas para que tudo o que fosse europeu e branco acabasse sobrepujando nossas tradições. E apesar do livro ter toda esse pé na fantasia, existe essa crítica trazida do mundo real, muito pertinente.

E acho que ela aborda de um jeito muito responsável e lúcida. Nosso problema não são com os portugueses, os habitantes. A quantidade de imigrantes que fugiram da pobreza, do salazarismo, e de tantas outras coisas para o Brasil são imensas. Nosso problema é com a reparação história, com o reconhecimento das injustiças, respeito por quem nos tornamos, nosso ouro e recuperação da nossa identidade que foi praticamente perdida. E a Socorro acerta ainda mais quando é um personagem moçambicano (o Jorge) que se junta à protagonista Cida. Dois oriundos de países que foram colonizados, buscando não apenas o que os identifica como colonizados, mas também buscando as tradições perdidas de nossos antepassados.

Um livro ótimo, maravilhoso! Recomendo de boca cheia, vá ler que você vai amar! 

SPOILERS ABAIXO
Depois não diga que eu não avisei!

Socorro cria o mundo dos "ressurrectos", que são essas pessoas que desaparecem de um lugar, e reaparecem em outro canto do mundo. Existe grupos de pessoas que as resgatam, e nesse novo local essas pessoas tentam refazer suas vidas. Florice e Fernando contam como eles se estabeleceram fazendo o que fazem, e até sendo atores importantes no encontro entre Cida/Joana e Jorge.

Existem até histórias de outros desses ressurrectos que enquanto eu lia, ficava imaginando que ótimos livros poderiam dar.

Minha primeira teoria quando comecei a ler, e vi os ferimentos da Cida/Joana foi que ela foi vítima de algum abuso sexual. E aí, com a ajuda de algum poder místico, ao invés de morrer apareceu enterrada em outro lugar do mundo. Não sei o porquê, mas me veio à cabeça o mangá Gantz, essa coisa de morrer e aparecer vivo em outro lugar, mas foi a primeira viagem que eu tive!

Todos aqueles sonhos e a busca por sua personalidade eu achei um negócio magnífico. Essa coisa de ficar juntando peças para solucionar um mistério maior é algo que sempre me agrada, me prende muito na leitura. Tudo, aliás, fica redondinho quando a gente sabe de todo o rolo da Joana no Brasil, sua relação com os Tremembés, e o rolo com a igreja que desapareceu na areia.

Em uma conversa que tivemos com a Socorro na reunião do clube, ela disse que achou várias histórias, dessas que o povo conta, e amarrou tudo na sua obra. Essa história da igreja de Almofala, hoje distrito de Itarema, no norte do Ceará aconteceu mesmo. Inclusive a tal Joana Camelo que roubou a imagem da Nossa Senhora da Conceição. Através do conto, Socorro aumentou a história, adicionando o sumiço dela, ressurrectos, e a viagem no tempo. Sensacional, hein! É tudo o que o Alain gosta, hahaha.

Quando a então Cida viaja ao Brasil, seu companheiro, o Jorge, faz uma entrevista com Miguel: o amor dos tempos em que ela era Joana. Agora bem mais velho, dizendo que "pensou nela por todos esses dias", mas não engoli muito essa saudade, pois ele aproveitou, se casou de novo e sua vida seguiu em frente. Apesar de todo o sofrimento, e rever a sua antiga amada depois de décadas sem contato, ele me deu um certo ranço por ele ser muito preconceituoso — especialmente com o povo Tremembé.

No Brasil, Joana (que foi Cida) tem um encontro com sua mãe adotiva, a dona Malba. E lá descobrimos que a imagem da Labareda (a Nossa Senhora da Conceição) havia sido encontrada por um pajé Tremembé, e os próprios indígenas frequentavam a igreja para venera-la. E foi por conta do boato de que ela seria retirada de lá que causou a revolta, que terminou no rapto da imagem mariana por Joana, e seu posterior desaparecimento ao entoar a "oração para desaparecer".

Eu adorei essa mistura doida. Acima de tudo a Socorro entrega uma história que, embora sendo uma costura de diversas coisas diferentes, vai manter viva tudo o que de real está por detrás dela, como a igreja lá de Almofada. Fico pensando em como isso foi tão usado em tantos contos e lendas de todas as épocas e lugares do mundo. E ver alguém como a Socorro, que faz isso com coisas atuais, é como ver a corrente dos bons contos encontrando alguém que as continue em nosso tempo. Isso faz parte da nossa identidade como povo, e essas tradições não podemos perder nunca!

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