Livros 2024 #3 - Amada (1987)


Acho que depois que eu encarei "Grande Sertão: Veredas" fiquei me achando. Como se não houvesse livros difíceis o suficiente. Virei o valentão da literatura. Mas aí no nosso grupo particular de amigas leitoras, decidimos começar a ler o clássico "Amada", da vencedora do Nobel de literatura, Toni Morrisson. Eu sempre tive um pé atrás com vencedores do Nobel, já tive algumas experiências não muito boas. E vou confessar que por muito pouco esse livro não entrou nesse grupo também.

Dar uma de valentão da literatura não me valeu de nada. Amada é um livro difícil, bem difícil mesmo. Se Grande Sertão você deve tentar sobreviver até a página 30 pro livro começar a fazer sentido, no caso de Amada são pelo menos duzentas páginas que você não sabe onde você tá. São sempre histórias soltas, sem nenhuma determinação clara do tempo onde se passam, nomes que te confundem — pra mim Denver era um homem, Baby Suggs era uma criança, e Halle era uma mulher, mas são respectivamente uma mulher, uma idosa, e um homem — mas você vai lendo.

Várias páginas eu passava sem entender nada. Pois como eu disse, essa primeira parte do livro é extremamente não linear. Mas as estórias vão ficando na sua cabeça, como se cada uma ali fosse um ingrediente de um bolo que deixamos reservado. Apesar da confusão, e tentando achar determinação para continuar lendo, fui seguindo. Minhas amigas me falaram que faria sentido.

E fez.

Todos esses fragmentos se juntam magicamente na segunda parte do livro, que traça uma linha do tempo bem linear e redondinha, juntando os factos x, y, z, na ordem, e tudo faz sentido.

Então seria melhor eventualmente começar a ler pela parte dois? Não! Pois como eu disse, a segunda parte é mais juntar os ingredientes reservados para fazer o bolo. As histórias que são contadas na primeira parte são a vivência, a perspectiva, e os sentimentos mais profundos que todos os personagens ali sentem, dessa maneira desordenada mesmo, mas quando são novamente citados na segunda parte do livro, as informações vêm junto daquela enxurrada de sentimentos, e tudo faz sentido.

O livro conta a história de uma família que vive numa casa (a tal 124 citada no livro), numa época bastante conturbada da história estadunidense: logo após a Guerra Civil Americana, aquela onde o sul confederado queria continuar escravizando pessoas negras, enquanto o norte queria a abolição da escravatura. Muitos ali dos personagens, aliás, foram escravos da "Doce lar", que obviamente que de "doce" não havia nada.

Um dia essa casa recebe uma visita de uma menina muito estranha, bem vestida, pedindo água, que é prontamente sanada por Sethe, a protagonista do livro. Ela se apresenta apenas como "Amada", sem sobrenome, sem passado, sem nada. Ela começa a então viver em meio aquela família, mas ela é pra lá de esquisita. Acaba semeando a discórdia e causando altas confusões na sessão da tarde.

Teve uma coisa que me dificultou muito na leitura foi além das quebras da linha do tempo, foi a linguagem difícil da autora. Entre a narração dos acontecimentos, existem divagações que eu tentava ler duas, três, quatro vezes, e nada parecia entrar na minha cabeça, pois houve essa quebra da linha dos acontecimentos. E normalmente sempre depois dessas divagações, entrava uma outra linha do tempo, com outros personagens, e eu ficava extremamente confuso. Acho que essa é a maior dificuldade de se ler esse livro.

Mas como eu disse, são de uma família que havia recém saído de um regime de escravidão. E muitas vezes eu ficava pensando em como essa família era impedida até mesmo de amar — nem mesmo os filhos eram deles, normalmente sempre levados para serem vendidos depois de nascidos — e a vida de escravidão, a luta pela alforria, a pobreza desumana onde são jogadas, e o constante medo de assalto por parte dos brancos: a história se passa em Cincinnati, no estado livre de Ohio, que durante a Guerra Civil foi um estado que avizinhava o Kentucky confederado e escravocrata.

Com essa vida cheia de sofrimento, e todas ali tentando construir suas vidas, afinal não tiveram nunca a chance de terem uma vida enquanto eram escravizadas, já torna a vida que é tão difícil por si só, em algo ainda mais complicado.

Acho que é por isso que o livro no começo é tão confuso. Eu tive a impressão que a narração toda torta é fruto precisamente de todos esses traumas e preconceito que todas ali foram alvo. Enquanto eu lia Amada era algo como se a pessoa estivesse contando uma história, mas ela chegasse num ponto que machucasse, transferindo o foco para essa, e depois ao chegar em outro ponto de dor passando para outro pedaço da vida, e assim por diante. Para mim parecia meio que contar a história indo de dor em dor, pois aquela família negra, vivendo no retrógado e racista Estados Unidos, nunca conheceu algo que não fosse sofrimento.

No entanto, como eu disse, tudo vai se encaixando. Até relendo aqui algumas partes para escrever essa resenha, eu percebi como as coisas fazem muito mais sentido depois dos pingos nos is. Fico pensando na genialidade da Toni Morrisson, pois além de ter pesquisado todo o plano de fundo histórico para seu romance, ainda escancarou todo o racismo, e como é a vida sempre com medo de uma pessoa negra.

Apesar do livro ter sido escrito 124 anos depois da abolição da escravidão estadunidense, viver sem ter oportunidades, sendo observadas e ameaçadas por pessoas brancas na vizinhança, excluídas do convívio social, com sua aparência e valores sendo constantemente injuriados, como é mostrado pelos habitantes da 124, continuou uma infeliz regra na época da Toni, e ainda hoje pessoas negras continuam vivendo sob essa triste realidade.

Nessas partes, infelizmente, o único esforço da Toni era replicar o racismo que ela via ao seu redor. E se isso não te entristece e te revolta, você já perdeu a humanidade faz tempo.

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