Livros 2024 #17 - Aos prantos no mercado (2022)

 


Não é interessante julgar o livro pela capa, mas essa arte é uma das coisas mais lindas que eu vi nos últimos anos. É melhor que a capa original, e exprime exatamente toda a atmosfera da obra magistralmente: uma mistura de reminiscências de uma filha sobre sua mãe, com todos os cheiros, sabores, e lembranças que ficaram.

O livro é uma autobiografia da musicista Michelle Zauner, meio coreana e meio estadunidense, onde ela conta tanto das lembranças da infância, quanto a relação que possuía com sua mãe — que logo na primeira linha descobrimos que havia falecido. Suas idas ao H Mart, um mercado especializado em produtos importados coreanos, com todos aqueles aromas e comidas que fizeram parte de sua infância, todas passadas para ela através dos costumes de sua mãe, são o pontapé inicial do livro para ela contar essa relação real, recheada de momentos bons, mas também intensamente conturbada, como qualquer relação humana.

Era difícil escrever sobre alguém que eu achava que conhecia tão bem. As palavras eram rebuscadas, infladas de pretensão. Eu queria descobrir algo especial a respeito dela que só eu pudesse revelar. Que ela era muito mais do que uma dona de casa, do que uma mãe. Que ela era um indivíduo único e espetacular. Talvez eu ainda estivesse diminuindo com hipocrisia os dois papéis de que ela tinha mais orgulho, incapaz de aceitar que o mesmo grau de realização pode estar à disposição tanto daqueles que desejam cuidar e amar quanto daqueles que buscam ganhar e criar. Sua arte era o amor que pulsava nas pessoas que ela amava, uma contribuição ao mundo capaz de ser tão monumental quanto uma música ou um livro. Não dava para um existir sem o outro. Talvez eu só estivesse apavorada por ser a coisa mais próxima que ela tinha deixado: um pedaço dela que ficou para trás.

Não sou muito fã de autores que descrevem muito, mas com Michelle Zauner é diferente. Apesar dela descrever muito as coisas, o segredo para que continue sendo estimulante para nós leitores é colocar pitadas de nostalgia, e de alguma forma estimular nossos sentidos. Quando ela comenta, por exemplo, quando ela criança estava na Coréia e foram assaltar a geladeira da avó, ela descreve não apenas a comida ali, mas o sabor de tudo, o cheiro que ficou em sua memória, e o rosto da sua mãe ao voltar à sua terra natal. Isso tudo é muito bonito!

Nada disso seria possível se a autora não fosse uma excepcional escritora. Michelle sabe pesar tudo, quando precisa fazer um fluxo de pensamento ela faz, quando alguma memória de algo chocante da sua mãe nos faz olhar torto para a falecida, logo depois ela já engata uma boa memória, num eterno morde-e-assopra que só nos faz concluir o quanto as pessoas são complexas no geral: ninguém é cem porcento bom ou ruim nessa vida.

A puberdade foi assim. (...) Um período em que, qualquer coisa que seja única a respeito de nós mesmas, qualquer coisa que faça com que nos afastemos ainda que só um pouquinho da visão coletiva, do protótipo da beleza que faz sucesso, se transforma em uma cicatriz dolorosa, e a auto negação é o único remédio à disposição.

Da mesma maneira que ela relata um dia de fúria da sua mãe, onde ela diz que abortou o filho que ela teria depois da Michelle pois achava a mesma uma criança horrível, não demora muito onde ela compartilha conosco uma lembrança com sua mãe em uma casa de banho onde ela brinca com ela, dizendo que a filha não devia depilar sua virilha, pois isso era "coisa de mulher vagabunda" — asiáticas não têm o costume de depilar as partes íntimas, e quando isso acontece, é mal visto pelas outras mulheres.

A própria vida da Michelle é interessantíssima. Ela comenta o quanto o facto dela ser mestiça era um grande empecilho: para os estadunidenses ela era muito asiática; mas para os coreanos, ela era ocidental demais. Há relatos de racismo que ela sofreu, isso sem contar o bullying escolar.

Durante muito tempo, tinha tentado pertencer aos Estados Unidos, queria e desejava aquilo mais do que qualquer outra coisa, mas, naquele momento, tudo que queria era ser aceita como coreana por duas pessoas que se recusavam a me acolher. Você não é uma de nós, Kye parecia estar dizendo. E nunca vai compreender de verdade o que ela realmente precisa, por mais perfeita que você tente ser.

A parte onde a mãe dela adoece é de destruir o nosso coração. Ela descreve tudo o que ela sentiu, a incapacidade de conseguir fazer algo, e o câncer que vai definhando cada vez sua amada mãe. Ainda no começo da doença da mãe ela resolve se casar, mas nem isso é capaz de fazer a mãe lutar pela cura, tamanha crueldade que deve ser acometida por essa doença maldita.

Foi um dos livros mais gostosos que eu li no ano. É fluido, tem um ótimo ritmo, capítulos bem estruturados, e a escrita da Michelle é tão bem feita que é como se ela nos puxasse pela mão e contasse tudo sobre sua vida. Tinha dias que eu lia sem parar páginas e mais páginas, de tão bacana que achei. Uma das melhores leituras desse ano, sem dúvida alguma. Recomendadíssimo!

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