Amber #33 - Um novo começo de uma nova vida.

25 de agosto de 1939
16h27

Liesl Pfeiffer está na frente de uma lápide, podando os vasos de flores, que praticamente já haviam murchado. O verão estava acabando, e a brisa gelada do outono anunciava o início da próxima estação. Mais de dois anos haviam se passado e logo logo, em dezembro, seria seu aniversário de dezesseis anos. Aquela garotinha já havia se tornado uma mulher. Ela já havia feito suas preces, estava apenas limpando um pouco o túmulo. Percebeu então que Briegel se aproximava, vindo pelo corredor das lápidas, do seu lado. Mas fingiu estar focada na limpeza, mesmo quando ele já estava do seu lado.

“Liesl?”, chamou Briegel. Na mesma hora Liesl virou seu rosto pra ele, permanecendo em silêncio. Briegel prosseguiu: “Sabia que você estaria aqui. Sempre que tem uma folga você vem pra cá, não é mesmo?”.

“Coronel…”, disse Liesl, continuando a limpeza, “Obrigada pela preocupação. Sim, eu vim aqui no cemitério. Achei que não teria problema, espero que minhas taref…”

“Pra você deve ser bem duro, não?”, perguntou Briegel colocando sua mão sobre a mão de Liesl enquanto ela limpava o jazigo. Liesl tomou um susto, e Briegel prosseguiu: “Ter que vir limpar um túmulo mesmo sabendo que ela não está aí”.

Liesl ao ouvir se enrubesceu. O corpo de sua prima, Margaret Braun, foi trazido para a Alemanha, mas, misteriosamente, desapareceu antes do próprio funeral. Aquela lápide apenas havia o nome dela, ‘Margaret Braun’, mas não havia nenhum corpo enterrado ali.

Roland Briegel era uma pessoa muito boa com Liesl. Esta achava que levaria algum tipo de sermão, mas o coronel nunca fazia isso com ela. Seus olhos encheram de lágrimas e ela permaneceu em silêncio, com o rosto pra baixo, enquanto Briegel ainda estava com a mão por cima da dela.

“Eu acho que nunca agradeci, não é mesmo?”, disse Liesl, quebrando o silêncio, “O senhor não apenas me trouxe de volta, como me ajudou até a mudar meu nome, e pra não levantarem suspeitas me colocou até na Liga das Moças Alemãs”.

Briegel tirou lentamente a mão que estava pousada em cima da de Liesl.

“Sim. Pode deixar que você já está fora dessa lavagem cerebral idiota que os nazis fazem. Já faz umas duas semanas que você está comigo na SD, como minha protegida. E você anda se mostrando muito mais forte do que sequer imaginei. Quando a Anschluss aconteceu eu pensei que você ficaria meses ruim, mas você tá aí, firme e forte”, disse Briegel.

Anschluss foi a anexação da Áustria, a nação de Liesl Pfeiffer, pela Alemanha, em março de 1938. Isso deixou Liesl triste por dias, ela sequer conseguia sair da cama ao ver que seu país havia simplesmente se rendido e se deixado ser anexada aquele império de ódio que se formava ali.

“Talvez eu apenas não tenha demonstrado, coronel”, disse Liesl, olhando pra Briegel com os olhos marejados, “Mas o que fazer? Não temos como mudar a mente desse chanceler idiota. O senhor me ajudou a mudar meu nome, eu sou Liesl Braun agora. Pelo menos não precisei mudar meu nome pra ‘Sara’ como outras judias”.

Em agosto do mesmo ano de 1938, Hitler ordenou que todos os judeus alemães mudassem de nome, especialmente os que tinham nomes alemães. Homens judeus teriam que mudar seus nomes para “Israel”, enquanto as mulheres judias deveriam mudar seus nomes para “Sara”. Briegel, com seus contatos na SD, conseguiu dar novos documentos pra Liesl, que começou a usar o sobrenome alemão de sua mãe, Braun. Não apenas a fazia sentir mais próximo da prima que tanto amou, como sua aparência estava também bem parecida com a de uma alemã. Até seus cabelos estavam mais claros.

“Acho que vou pedir pra Alice te ajudar a retocar seu cabelo loiro. Tem uns fios já mais escuros aparecendo”, disse Briegel, com carinho, cuidando de Liesl. E isso encheu o coração de Liesl de ternura.

“Vou sim, pode deixar, coronel”, disse Liesl, novamente com o rosto corado, “Vou pedir pra ela deixar mais natural também. Da última vez ela jogou aquela tinta de louro prateado e eu fiquei a cara da Jean Harlow!”.

Briegel e Liesl caíram na risada. Os risos eram uma forma de descontrair naquele dia nublado dentro do cemitério.

“Puxa, ficou mesmo! Agora tá bem mais natural!”, brincou Briegel, “Vamos visitar a Alice hoje? Faz tempo que não a vemos!”.

“Eu a vi antes de ontem. Fui lá entregar um documento de agradecimento do Führer ao marido dela pelos ‘bons serviços à nação’ pela sua empresa. Nem queira adivinhar o que o Max fez quando viu o papel!”, disse Liesl.

“Puxa, vindo dele eu até consigo imaginar…”, disse Briegel, suspirando no final.

“Ele pegou e rasgou sem dó!”, disse Liesl, “Max é um cara legal e ele com certeza faz a Alice bem feliz. E eles formam um casal lindo! Ele é bem bonitão, loiro, alto, olhos claros. Combina muito com ela. Mesmo que todos os vejam como um casal estranho, pra mim é um casal que eu me espelho bastante. É lindo ver o amor ultrapassando a questão racial, sem preconceitos”, nessa hora Liesl olhou pra Briegel, “E espero um dia poder viver uma vida cheia de amor, igual a Alice e o Max”.

Briegel nessa hora olhou pra Liesl, e o olhar dos dois se encontraram. Briegel ficou meio sem jeito, imaginando coisas, e rapidamente voltou seu olhar pra frente. Um silêncio bem chato dominou a situação entre os dois, até os dois saírem do cemitério, meio falando nada com nada. Mais pra frente voltaram a conversar, jogando conversa fora mesmo, até que chegaram na frente de uma antiga sinagoga. Ou pelo menos o que um dia foi uma.

“Eu costumava vir aqui com papai”, disse Liesl, se recordando, “Mas agora… Está completamente destruída”.

Briegel abraçou de lado Liesl, confortando-a.

“A Kristallnacht, a noite dos cristais, foi mesmo algo terrível. Por uma desculpa esfarrapada de um judeu francês ter matado um oficial nazista eles usam isso pra cometer atrocidades aqui…”, disse Briegel, que também sentia vergonha por aquelas coisas terem acontecido, “Sinceramente não imaginava que em apenas dois anos as coisas mudariam tanto. O tempo passa voando, já estamos em agosto, mas cada vez mais a intolerância e o racismo nesse país está se impregnando cada vez mais”.

A sinagoga na frente dos dois foi queimada, assim como centenas de outras, no evento conhecido como Kristallnacht, ou “noite dos cristais”. A noite do dia 9 de novembro de 1938 vai ficar pra sempre marcada nos anais da história como talvez o princípio do fim. Oficiais nazistas, por ordem de Joseph Goebbels, queimaram diversas sinagogas, destruíram estabelecimentos comerciais de judeus, saquearam casas, além de prender diversos judeus pelo “crime” de serem apenas judeus.

“Um nome tão bonito, Kristallnacht, não é mesmo, coronel?”, perguntou Liesl, mas Briegel apenas olhou pra ela, sem responder, “Noite dos cristais. Mas não cristais como o pó de diamante que cai em forma de neve no inverno. Mas cristais por conta de todos os vidros que foram estilhaçados das casas, comércios, sinagogas e todos os lugares que tinham judeus. Um nome tão bonito, pra um evento tão trágico”.

Terminada a conversa, Briegel deu uma carona pra Liesl ficar na casa de Alice, agora casada, que mora na casa vizinha da do seu pai. Boatos diziam que esse foi o único requisito que o coronel exigiu para dar sua benção ao casamento dos dois.

Mas todos da família negariam isso até o fim.

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