Amber #69 - É a noite, é a morte, é o laço, é o anzol.

“Eu não aceito... Eu não aceito... Eu não aceito!”, disse Sundermann, encarando Liesl com fúria. Alice já havia deixado o local, levando a polonesa com ela. O rosto de Sundermann era intragável, ele realmente parecia alguém transtornado. Não por ter perdido para uma mulher altamente treinada em artes marciais. Mas por ter perdido de uma judia.

“Sundermann, só queremos um acordo. Nenhuma de nós quer o seu mal. Você já vive num dilema horrível, caçando até mesmo outros homossexuais a mando do exército enquanto você mesmo é um deles. Ninguém aqui quer piorar a situação pra você, por favor, vamos parar com isso?”, pediu Liesl, pausadamente.

“Cala essa sua boca, sua desgraçada, eu vou te matar, e vai ser agora!!”, disse Sundermann baixinho, mas profundamente enfurecido. Olhou pra sua mão esquerda e viu que ali estava o cinto que segurava suas calças, que ele havia tirado depois que Liesl o desafiou, mandando estupra-la. As ideias fervilhavam na sua cabeça a cada segundo, mas ele resolveu que talvez o mais lógico poderia ser o mais efetivo.

Ele jogou seu cinto ao redor do pescoço de Liesl e começou a enforca-la com toda sua força. Liesl deu um grito chamando por ajuda (o mesmo que Alice ouviu, do lado de fora do celeiro), enquanto tentava se soltar de Sundermann. Seu reflexo a fez levar as mãos na cinta, tentando soltar do seu pescoço, mas a força do alemão era maior. Seu objetivo era apenas um: mata-la a todo custo.

Sundermann estava com a cara ainda mais distorcida. Era curioso ver o que a guerra fazia com as pessoas. Ele havia perdido totalmente a humanidade e qualquer controle que tinha sob sua mente. Seus olhos estavam vermelhos, esbugalhados. Transpirava por todos os poros possíveis da sua pele. Bufava um hálito pesado e fétido. Da sua boca caía uma baba esbranquiçada, que era expelida cada vez mais que ele bufava em cima do rosto de Liesl.

“É agora que você vai morrer!”, dizia Sundermann fora de si, “Você vai morrer agora!”, repetindo a mesma frase várias e várias vezes baixinho, como se recitasse um estranho mantra enquanto tentava matar Liesl.

Liesl não sabia o que fazer. Ela havia lutado, e ela ainda estava se recuperando dos últimos golpes dele. Golpes esses que, embora ela tivesse passado por um intenso treinamento, não deixavam de ser dolorosos e causar algum dano nela. Debilitada, puxava com toda sua força tentando folgar aquela cinta que estava atada cada vez mais forte no seu pescoço.

Eu tenho que tirar isso de mim, nossa, que força! Esse homem tá completamente fora de si! Vamos Liesl, força, força, força!, pensou Liesl, mas cada vez mais ficava mais e mais apertado.

Respirar ficou difícil logo naqueles primeiros segundos. Tentava puxar ar pela sua boca mas parecia que havia algo dentro da garganta dela, como se estivesse esmigalhando os ossos do seu pescoço entre eles. Nessas horas o desespero é tão grande que ela imaginou que sequer conseguiria voltar a respirar depois disso, de tão desesperador que era aquele sufocamento. Seu rosto começou a ficar mais e mais quente, ela estava completamente vermelha.

Vamos, força! Eu tenho que dar um jeito! Vou tentar golpear ele com as minhas pernas, talvez ele sinta e dor e comece a soltar!, pensou Liesl desferindo três chutes no peitoral de Sundermann. Porém não funcionaram, o alemão parecia uma rocha. Não apenas era resistente, como estava tão fora de si que nem mesmo a dor dos potentes chutes dela ele conseguia sentir.

Sentiu que suas forças estavam se esvaindo. Ela não conseguia mais puxar com a força inicial o cinto no pescoço que a estava enforcando, simplesmente os braços não respondiam. Tentava manter a atenção para ver se recuperava a força, mas cada vez mais e mais a visão que ela tinha de Sundermann ficava mais e mais embaçada e turva.

Coronel, coronel, não posso morrer aqui. Não agora! A gente começou essa busca por você agora, dias atrás! Por favor, se você consegue me ouvir, ouça o meu coração. Não deixe que nada aconteça!!, pensou Liesl, já começando a ser tomada pelo desespero.

Seu corpo estava se apagando. Já não sentia mais dor no seu pescoço, parecia que tudo estava caindo num imenso torpor.

Não, minhas forças estão se esvaindo... Coronel, seja meu cavaleiro e me salve. Apenas você pode fazer isso! Eu não sei onde você está, mas por favor, me ouça. Eu te peço! Não! Eu imploro! Saia da onde você está, ouça meu grito e venha me ajudar!, pensou Liesl, e como se mergulhada num mundo de alucinações via o coronel Briegel na sua frente. Mas obviamente ele não estava lá. Era algo da sua mente.

Pela primeira vez desviou o olhar, e seus olhos foram pra cima. Não havia mais Sundermann. Não havia mais os sussurros dele intermináveis dizendo que a iria matar. Francamente tudo estava sumindo, cada vez mais perdendo suas texturas, suas cores, sua luz.

Eu estou morrendo? Não acredito, justo aqui, justo agora?! Quer dizer que tudo aquilo que eu passei não valeu de nada? A vida humana realmente é tão frágil assim? Eu derrotei o Sundermann na luta. Eu sou mais forte que ele. Então porque ele está fazendo isso comigo? Coronel, porque você não me salva? Coronel, porque você está... Sumindo?, pensou Liesl, e tão rápido a alucinação apareceu, sumiu. Não havia Briegel, e tampouco havia antes. Tudo o que havia eram sombras que cada vez mais dominavam seu campo de visão, deixando-o mais e mais estreito.

Liesl estava imergindo num mundo de profunda escuridão e silêncio. E o pior disso tudo é que tudo parecia uma experiência viva, algo real, como se aquelas sombras toda a engolissem, ela perdesse os sentidos, mas ainda conseguia perceber isso, como se estivesse sendo tragada por algo mais forte que ela.

Coronel, me salva. Por favor, me salva. Apareça agora, saia da onde estiver e me salva, pensou Liesl, num último implorar.

Esse algo mais forte que ela era a própria morte.

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“Ei, olha, ela acordou!”.

A primeira coisa que Liesl viu ao abrir os olhos era um céu colorido. Na direção dos seus pés estava escuro, e era possível até mesmo ver algumas estrelas. Na sua frente havia um azul médio, que se tornava amarelo, laranja e vermelho conforme ela voltava o olhar pra cima. Deduziu que estava deitada, e pelo barulho do motor, estava deitada dentro de um jipe. O mesmo carro militar que as havia levado até lá. E estavam cobertas pelo lindo manto colorido do pôr-do-sol acima delas.

“Coronel!”, disse Liesl, se erguendo depois de despertar, “Você viu? Era ele! Ele que me salvou!”.

Do seu lado estava a jovem Anastazja. Liesl ao lembrar dela virou o rosto, mas sentiu uma dor imensa no pescoço ao fazê-lo. Estava repleto de hematomas, por conta do estrangulamento. Ao virar o corpo para tentar manter o pescoço reto viu que quem estava na direção do carro era Alice, que ao olhar pelo retrovisor viu que Liesl havia acordado.

“De quem ela tá falando?”, perguntou Anastazja para Alice, sem entender.

“Espera um pouco, vamos parar um pouco aqui. Precisamos acampar e comer alguma coisa”, disse Alice, virando o carro e o parando numa estrada de terra no meio do nada, em território polonês. Ela tirou a chave do contato, e com o rosto ainda iluminado pelo pôr-do-sol virou para o babageiro do jipe onde Liesl e Anastazja estava, e prosseguiu: “Você viu coisas, Liesl. Papai não apareceu. Eu sinto muito”.

“Mas eu o vi, Alice! Eu estava lá, sendo enforcada, eu vi claramente! Eu pedi ajuda pra ele e ele veio!”, disse Liesl, como se não pudesse entender que aquilo tudo havia sido uma alucinação. Alice olhou e baixou os olhos pesadamente, como se aquelas lembranças do que havia ocorrido há algumas horas a machucasse muito. Tanto a ponto dela não conseguir nem mesmo explicar o que havia acontecido.

“Foi a senhora Alice que te salvou”, disse Anastazja, explicando, “Ela ouviu seu grito, me deixou fora do celeiro e foi correndo até onde você estava, voltou, buscou uma pedra bem pesada e jogou na cabeça do nazista. Ele caiu desacordado, mas você também estava quase morta. Seu pulso estava muito fraco, e aí ela nos levou pro carro, já que você estava desacordada. Ainda bem que aquele outro nazista não nos fez nada! Quando eu o vi junto do outro que estava batendo em você pensei que estávamos perdidas”.

“Outro nazista? Havia mais um?”, disse Liesl assustada.

“Era o marido do Sundermann, o Goldberg”, explicou Alice, quebrando seu silêncio, “Acho que ele no fundo tem algo na cabeça. Com certeza ouviu tudo aquilo que você disse, que não fazia sentido um militar homossexual nazista caçando outros homossexuais só por que admira e segue Adolf Hitler. Eu disse a ele que o Sundermann estava só desacordado, e ele olhou pra mim com uma cara de quem estava profundamente envergonhado, como se havia se questionado internamente o motivo daquilo tudo. Ele não me disse nada, apenas me olhou com cara de tristeza e foi até Sundermann, para ampara-lo. Ele nem sequer participou do embate entre vocês. Curioso, não?”.

Liesl permaneceu no bagageiro do jipe. Anastazja desceu e ajudou Alice a montar uma barraca militar que estava junto das coisas do carro para que as três pudessem passar a noite. Por dentro ela estava destroçada. O que mais a machucava era que ela achou realmente que o coronel Briegel a salvaria, como ele sempre disse que faria, como ele sempre prometeu pra ela.

Mas não havia mais ele.

A pobre Liesl sentiu uma melancolia imensa dentro dela. Como ela, que era a pessoa que havia tomado a iniciativa e a responsabilidade da proteção de todos falhou miseravelmente dessa maneira? Se Alice não estivesse ali, com certeza ela morreria enforcada e Anastazja também já estaria mais do que morta também. Achou que Briegel surgiria montado em um cavalo branco e a salvaria de tudo e de todos, como um herói que aparecesse sempre que a donzela estivesse em perigo, mas isso nunca iria acontecer. Aquela era a vida real. E a vida real não tinha desses acontecimentos fantasiosos que ela via nos livros que tanto gostava de ler. Sentiu um medo tremendo, que se não fosse por Alice com certeza ela não estaria lá, apesar de toda machucada.

A tristeza era tanta, que ela sequer conseguia chorar. Aquele sentimento de culpa a estraçalhava por dentro, mas a vergonha de ter falhado a impedia de derrubar uma única lágrima. O jeito era prosseguir. Olhou para a polonesa e viu que não havia se apresentado formalmente a ela. Era a hora de enfim fazê-lo:

“Me desculpe, acho que agora que estamos mais tranquilas posso me apresentar. Meu nome é Liesl Pfeiffer, muito prazer”, disse Liesl, estendendo a mão para a polonesa.

Anastazja ficou completamente ruborizada, de tão tímida que ela era. Liesl por um segundo estranhou, mas prontamente abriu um sorriso para fazer a polonesa se sentir mais confortável.

“A-a-Anastazja... Maslak”, disse Anastazja, baixinho.

“Igual Anastásia, a filha do tsar russo?”, brincou Liesl para quebrar o gelo.

“Sim. Apenas se escreve diferente, mas o som é o mesmo”, disse Anastazja, já mais tranquila, soletrando seu nome.

“Prazer em conhece-la”, disse Liesl, estendendo a mão para cumprimenta-la, “Já conhece a Alice, certo?”.

“Sim!”, disse Anastazja, ainda com o rosto pra baixo, bem tímida. Ao se virar para ver Alice ela acabou tropeçando na cabana, derrubando ela toda.

“Oh, perdão, eu não vi...!”, disse Anastazja se erguendo. Mas as três deram muitas risadas pelo jeito atrapalhado e nerd da menina.

“Tem certeza que ela vai vir conosco, Alice? Essa aí vai dar muito trabalho!”, brincou Liesl. Anastazja nessa hora não entendeu a brincadeira e ficou com os olhos esbugalhados, como se elas fossem abandonar ela ali mesmo.

“Não liga pra ela, Anastazja!”, respondeu Alice, voltando sorridente a montar de novo a cabana, “Acho que é a gente quem vai te dar mais trabalho, isso sim!”.

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