Amber #74 - Afogada na lagoa de lágrimas, Alice foi salva por um ratinho que a levou pra fora de lá.

Liesl corria entre os corredores da imensa Universidade de Varsóvia sozinha. Naquele dia não parecia haver quase ninguém. E numa cidade sendo alvo constante de bombardeios inimigos seria ainda mais difícil que a população universitária conseguisse estudar. Pouquíssimas pessoas estavam lá, e Liesl ainda assim evitava ao máximo que eles a vissem, passando sempre despercebida por detrás, pelo lado ou eventualmente até tomando rotas alternativas enquanto buscava por Tomaz Kovač.

Mas parecia que aquele era seu dia de sorte. Ouviu um trio de alunos que caminhava num dos corredores da universidade comentando algo sobre “Kovač” em polonês. Liesl percebera que eles haviam saído de uma sala isolada no segundo andar do prédio da reitoria. Era exatamente lá que ela procuraria.

Abrindo a porta lentamente, Liesl foi entrando numa aconchegante sala, muito bem decorada, grandes janelas, lindas cortinas e carpetes a se perder de vista. Sofás, mesas, e estantes que se perdiam até o topo, e uma imensa lareira, que estava com seu fogo aceso. Na sua frente havia um homem calvo, com cabelos grisalhos, que parecia alimentar aquele fogo jogando calhamaços de folhas nas labaredas. Ela não havia visto seu rosto, mas pelas características batia muito com a foto de Kovač do dossiê que Briegel havia deixado.

“Você deve ser Kovač”, disse Liesl, se aproximando com a sua Frommer stop mirada nele. O homem ao ouvir se assustou e olhou para Liesl, jogando os três últimos calhamaços de papéis de uma vez só na lareira, fazendo uma chama subir quase que instantaneamente.

“Por deus, um nazista!”, disse o homem, colocando suas mãos na cabeça, “Não vão, não vão levar nada de mim! Eu queimei tudo!”.

Liesl nessa hora também ergueu as mãos, mostrando que não estava lá para prendê-lo ou algo do gênero. O tcheco olhou pra ela sem acreditar. Ainda precisava de mais respostas.

“Não sou uma nazista, se bem que esse uniforme não ajuda muito”, disse Liesl, tentando ganhar sua confiança, “Meu nome é Liesl Pfeiffer, e embora eu pareça ser uma nazista, acredite, estou do lado dos bonzinhos. O senhor é Tomaz Kovač?”.

“Sim, sou eu sim. Mas o que diabos você veio fazer aqui? Se os poloneses te pegarem você vai ser...”, disse Kovač.

“Eu sei disso, senhor. Vou explicar de maneira bem resumida. Vim de Berlim, sou discípula de Roland Briegel, e eu—“, disse Liesl, que foi interrompida por Kovač:

“Briegel?!”, disse Kovač, alto. Ele parecia realmente surpreso, mas Liesl não entendia o motivo.

“O senhor o conhece? O senhor o viu?”, disse Liesl, se aproximando dele, cheia de esperanças de que ele soubesse algo sobre o paradeiro do seu amado.

“Não, na verdade um senhor me pediu para que eu procurasse por um tal de Briegel, que essa pessoa me levaria em segurança daqui. Se você está aqui com certeza pode me levar até esse tal Briegel, não?”, disse Kovač, com um misto de desespero e esperança no olhar. Mas Liesl ao ouvir ficou cabisbaixa, como se não soubesse nem por onde começar a explicar a situação em que estavam.

“Senhor Kovač, quem por acaso disse que era pro senhor procurar o coronel Briegel?”, perguntou Liesl, tentando buscar pistas, “O senhor lembra quem foi, o nome dessa pessoa, como ele era?”.

Kovač por alguns segundos ficou parado, buscando na sua memória quem foi a pessoa que havia lhe dito para buscar Briegel.

“Sim, mais ou menos. Era um senhor meio velho, eu não lembro muita coisa. Acho que se chamava Heiliger, ou algo assim”, disse Kovač, e Liesl anotou num pequeno bloco de notas que tinha no bolso.

“Professor Kovač, como eu disse eu sou pupila do coronel Briegel, e na verdade achamos sua ficha no meio das coisas dele, e achamos que ele eventualmente viria até a Polônia atrás do senhor. Achamos que se encontrássemos o senhor isso nos levaria ao coronel Briegel, pois acreditávamos que ele já estaria aqui com o senhor em Varsóvia”, explicou Liesl, com um ar de certa frustração nas palavras, “Mas o senhor disse que na verdade recebeu ordens para encontrar Briegel, então agora eu não sei. Não sei se espero aqui, ou se levo o senhor em segurança daqui, ou se simplesmente jogo tudo pra cima e volto para casa. Lá fora está um inferno e a cidade vai ser a qualquer momento subjugada pelos nazistas”.

“Então você, apesar de estar dentro das forças nazistas você quer se rebelar contra o regime?”, disse Kovač, “Vocês devem estar malucos! Se bem que faz sentido de alguma forma. O local mais seguro seria exatamente debaixo do nariz deles”.

“Sim. Eu sou judia. Hitler mandou meus pais para Dachau há alguns anos, e em Guernica eu perdi minha prima, a pessoa que eu mais amava e que sempre me protegeu”, nessa hora que Liesl citou sua prima uma memória veio até sua mente. E talvez esse encontro com Kovač não precisava ser algo perdido, especialmente se o tcheco soubesse responder a sua próxima pergunta: “É verdade! Como eu pude esquecer! Acho que só pode ser por isso mesmo que o coronel Briegel estava atrás do senhor, pois o senhor deve ter pistas do que aconteceu com minha prima! Quem estava por detrás do assassinato dela!”, nessa hora Liesl se aproximou de Kovač, colocando suas mãos nos ombros do professor, olhando com muita firmeza nos olhos do velho antes de perguntar, “Por favor, me diga uma coisa: o senhor conhecia uma cientista bélica chamada Margaret Braun?”

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“Minha nossa, tá funcionando!”, disse Anastazja, quando enfim conseguiu colocar as pilhas no seu rádio espião e liga-lo corretamente. O som que ele estava captando pareciam bips perdidos, não parecia sons de vozes nem nada do gênero, “Olha Alice, olha! A-há! Funcionou, funcionou, funcionou!”.

Kabanos estava sentado em cima da mesa, esfregando suas mãos e as cheirando, como se costume. Ficava fazendo esse ritual de maneira repetitiva e exaustivamente, soltando apenas alguns grunhidos enquanto seu nariz soltava uma secreção esverdeada nojenta. Alice ainda estava sentada na poltrona com os olhos fundos e vermelhos, mas ao menos parecia que havia parado de chorar. Era possível ver as gotas das suas lágrimas em sua roupa. Os únicos que realmente pareciam prestar atenção em Anastazja eram seus pais, que ao se aproximarem do rádio não entenderam muito bem o que ele estava captando.

“Filha, não dá pra entender nada do que está saindo. São apenas bips e mais bips, não consigo ouvir a voz de nenhum general ou algo do gênero!”, disse o senhor Maslak. Anastazja parecia ignora-lo, buscando um pedaço de papel de um lápis para poder escrever.

“É código morse, pai. Deixa eu ver se consigo pegar algum trecho do que eles estão falando”, disse Anastazja enquanto anotava as letras que conseguia distinguir de dentro dos bips do morse, “Vamos ver se eu ainda consigo fazer isso”.

Anastazja começou então a escrever várias letras que conseguia captar dos trechos de código morse que estava ouvindo a partir daquele momento. Durante aproximadamente uns cinco minutos ela escreveu tudo o que captava, apesar das longas pausas que eles faziam na comunicação entre si. Seu pai observava o que a filha escrevia no papel, mas não conseguia entender nada. Nada ali parecia ter nexo, vogais faltando em lugares e excessivamente presentes em outros, junções de consoantes que teoricamente não pareciam ter nenhum som, e não conseguia formar nenhuma única palavra com lógica no meio daquela salada de letras.

“Filha, isso é alemão? Pois não tô entendendo é nada!”, confessou o senhor Maslak.

“Não, papai! Isso tudo está em código! Mas eu consigo decifrar, só preciso de tempo. Escuta, vocês teriam um comptômetro aqui?”, perguntou Anastazja, se referindo a uma antiga calculadora mecânica que existia na época. Seu pai, abismado, apenas balançou a cabeça, sem nem entender direito o que a filha estava falando. Após suspirar e balançar a cabeça olhando pro código Anastazja tentou uma segunda opção: “Tá, certo. E aquele ábaco que eu brincava quando era criança? Ele ainda tá por aí?”.

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“Margaret Braun? Engenheira bélica?”, repetiu Kovač ao ouvir a pergunta de Liesl, “Não, infelizmente eu nunca ouvi falar de nenhuma Margaret Braun”.

Aquilo foi como um imenso balde de água fria sobre Liesl. Não havia nenhuma evidência direta entre Kovač e sua prima Margaret, mas acreditava que poderia ser esse o motivo que fez Briegel se debruçar sobre quem era o cientista tcheco. Mas as deduções de Liesl estavam erradas. Kovač não conhecia Margaret, por mais que Liesl perguntasse de novo e de novo não havia nada que ligasse os dois.

“Tá bom, então deve ser por outro motivo então que o coronel Briegel estava te investigando. Tem ideia?”, perguntou Liesl.

“Talvez esse Briegel queria me entregar a Hitler. É o que nazistas fazem!”, respondeu Kovač, rispidamente.

“O coronel Briegel nunca faria isso! Ele está do lado oposto de Adolf Hitler, ele jamais trairia esse ideal!”, disse Liesl, raciocinando, “Mas você disse que existem nazistas atrás do senhor? O que o senhor tem? Tem algo a ver com os papéis que o senhor estava queimando ali?”.

Kovač suspirou. Depois dessa última fala de Liesl dava pra ver que ela realmente não devia saber muita coisa.

“Aquilo que queimei eram estudos. Perigosos demais se caírem nas mãos de nazistas. Se eles tivessem acesso aqueles papéis com os estudos que eu estava fazendo sem dúvida eles venceriam a guerra”, disse Kovač, explicando. Liesl nessa hora arregalou os olhos, incrédula com o que ele falava, mas ainda assim ouvia atentamente, “Me diga, garota, você sabe o que é fissão nuclear?”.

“Não, não a mínima tenho ideia”, respondeu Liesl, “Nunca ouvi falar disso”.

“Assim como muitas descobertas da ciência, foi descoberta por acidente. Dois físicos, e meus amigos, os professores Otto Hans e Fritz Strassmann bombardearam átomos de urânio com nêutrons, e depois viram que haviam aparecido partículas de Bário. Foi uma outra física, chamada Lise Meitner que entendeu o que havia acontecido: o bário é muito menor que o núcleo do átomo de urânio. E se o Bário surgiu é porque o núcleo do urânio explodiu”, disse Kovač, nessa hora com uma imensa empolgação na sua voz, “Desde a antiguidade diziam que átomos não poderiam ser divididos, e o que fizeram poderia revolucionar o mundo! Poderíamos criar energia, tratamentos médicos, melhorar a vida dos seres humanos ou...”, nessa hora o rosto de Kovač ficou com uma expressão cansada e triste.

“Ou o quê?”, perguntou Liesl.

“Armas tão poderosas que a humanidade jamais poderia imaginar que existiriam”, disse Kovač, com um ar tristonho.

“O quão poderosas?”, perguntou Liesl assustada, “Poder de dez, vinte, trinta toneladas de TNT?”.

Kovač se aproximou de um quadro negro da sala. Lá ele escreveu 6.5 com um giz.

“Acredito que conheça a maior bomba já produzida, a Grand Slam”, disse Kovač, apontando para o que ele havia escrito no quadro, “Ela tem o poder de 6.5 toneladas de TNT. O poder de destruição que estamos falando que podemos alcançar com a fissão nuclear é um pouco maior que isso”, disse Kovač escrevendo no quadro.

Liesl ao ver o número que ele escreveu se assustou tanto que ao andar pra trás quase tropeçou.

“Acreditamos que a destruição seria a de aproximadamente dez mil toneladas de TNT”, disse Kovač, apontando pro número dez mil no quadro que ele havia acabado de escrever.

“Impossível! Isso destruiria uma cidade inteira, ou até mais!”, disse Liesl, “Quem mais tem o conhecimento para fazer tal armamento?”.

“Umas poucas pessoas. Eu sou muito amigo de Leo Szilard e também de Albert Einstein. Mas eles conseguiram fugir, assim como tantos outros. Infelizmente conforme as opções de quem poderia construir foram buscando refúgio, os que não eram tão proeminentes no assunto foram ficando para trás. Mas ainda assim eu tenho um conhecimento que poderia ser valioso para o Führer”, disse Kovač, com um ar de tristeza na sua voz, “Ouvi falar por aí que Hitler queria invadir a Polônia pra agregar territórios ao Reich, mas isso na minha opinião é uma grande mentira”.

“Impossível”, disse Liesl, sem acreditar, “Quer dizer que você é...”.

“Sim. Acredito que um dos motivos de Adolf Hitler ter invadido a Polônia era pra me capturar, antes que eu assim como tantos outros fujam e busquem refúgio da Alemanha nazista”, disse Kovač.

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Havia passando já quase meia hora. Anastazja estava com várias folhas, todas cheias de cálculos e números que ela anotava depois de consultar o ábaco e mexer suas pedras pra fazer as contas. O pai dela não entendia como aquele monte de números se tornariam letras, mas acreditava no que a filha parecia fazer, pois ela parecia estar completamente compenetrada. Kabanos sentou ao lado de Alice, ele parecia estar com coceira nas costas. Alice, mesmo em prantos, esticou suas mãos e começou a coçar as costas de Kabanos, que gemia de felicidade ao sentir o alívio da coceira que estava sentindo nas costas.

“Filha, tem um pouquinho de sopa aqui. É típico daqui, você vai gostar e te dar uma animada!”, disse a senhora Maslak, mãe de Anastazja, entregando uma pequeno pote de vidro com uma sopa que mais parecia um vinho, de tão vermelha.

“Desculpa, senhora. Acho que não quero nada alcoólico agora”, disse Alice negando cordialmente a sopa.

“Ah, não é vinho! É vermelha assim pois é feito de beterraba. É até um pouquinho doce, você vai gostar!”, disse a senhora Maslak, colocando uma colher para Alice provar. Ao colocar na boca Alice achou aquilo extremamente revigorante. Anos mais tarde descobrira que o nome daquela receita era “barszcz”, e era típica e muito popular naquele país. Alice ficou quietinha ao lado de Kabanos, que estava praticamente cochilando enquanto recebia as gentis coçadas nas costas de Alice. Quando já estava quase no fim do pote deixou do lado e se aproximou de Anastazja, que estava completamente imersa naquele monte de papéis e cálculos.

“E então, Anastazja? Você parece compenetrada”, disse Alice, chegando por trás de Anastazja. Seu pai estava ao lado da filha, e quando viu Alice arregalou os olhos e olhou pra filha, como se estivesse surpreso com o que a garota sabia fazer, “Conseguiu decifrar alguma letra?”.

De início Anastazja não respondeu. Alguns segundos se passaram dela focada nas suas contas e ela enfim conseguiu decifrar uma letra.

“Na verdade sim! Só preciso juntar as letras que eu consegui aqui, e aqui, e aqui, e aqui...”, disse Anastazja, tirando sempre uma letra que saía da conclusão de uma folha de cálculos que ela fazia. Alice observava cada uma das letras se unirem e formarem sílabas. E depois o conjunto de sílabas formarem palavras. E o conjunto de palavras formarem frases, “Chega de ficar nesse mar de lágrimas! Isso aqui vai ser como uma brisa de esperança no meio dessa tristeza! Mesmo que seja uma brisa fraca como a de um mero leque”.

Alice se aproximou das anotações de Anastazja e quase caiu de costas, tamanho o susto que levou com que leu:

-IQUEM-ATENTOS-AO-SUL-BRIEGEL-FOI-ENCONTRAD-

“Briegel?”, disse Alice, baixinho sem acreditar. Enfim seu rosto não estava mais com aquela cara tão abatida, e ela parecia enfim ter recobrado a esperança, “Papai está indo ao sul? Vamos pra lá então o mais rápido possível!”.

Alice então escreveu em um papel as instruções de onde iria para Liesl caso voltasse para aquela casa. Elas não poderiam perder mais nenhum segundo. Era possível ver ao longe que o exército nazista estava se aproximando, e que os aviões de Luftwaffe já eram visíveis, prontos para tornar Varsóvia o inferno na Terra.

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